"Em primeiro lugar, vai para os municípios que mais precisam. Em segundo, todos são amigos do pastor Gilmar [...] (risos e falas). Este foi um pedido especial do presidente da República sobre a questão de Gilmar, o apoio que ele pede é que seja segredo, não pode ser publicado". Milton Ribeiro, ex-ministro da Educação
Todos os anos, o governo, o ministério da Economia edita e envia a proposta para orçamento da União, esperada para o próximo período. Não é mera tradição política, é lei prevista na Constituição Federal, o que se segue há muito tempo.
Normalmente, as maiores fatias se destinam àqueles ministérios dos serviços essenciais (saúde, educação, C&T e infraestrutura, nessa ordem). Mas, claro, estamos na era Bolsonaro, na qual tudo que é mais atípico pode acontecer, daí a estranheza do orçamento 2022, com prioridade ao criticado orçamento secreto.
E, não bastando a blindagem do bilionário orçamento secreto, explodiu nas mídias o envolvimento de pastores em esquema igualmente bilionário no repasses ilegal de recursos do MEC a prefeituras do interior, especialmente em Goiás, como até o momento sabemos.
Nas redes sociais choveu críticas a apontar corrupção e batizar o esquema de gabinete paralelo do MEC, em analogia ao escândalo de transações ilegais em vacinas no MS, reveladas na histórica CPI da C19, que mesmo sem talvez descobrir tudo, deixou um legado bastante positivo para o público.
Tudo foi descoberto graças ao vazamento de áudio do então chefe da pasta, Milton Ribeiro, acima transcrito nas primeiras linhas. Pastor presbiteriano, foi nomeado por Bolsonaro no lugar do olavista Abraham Weintraub. Uma escolha ideológica indicada pelo também pastor presbiteriano
A escolha ideológica foi indicada por indicação de pastores, como o ministro André Mendonça, no STF, que é presbiteriano como Ribeiro. Este, também, é professor em instituições confessionais em SP.
Os pastores do esquema
Entre servidores de carreira do baixo escalão do MEC, já circulava a ciência de haver uma turma de pastores evangélicos em estreita relação com o ministro Ribeiro, dada a carreira religiosa prévia deste. E, "de bobeira", o que parecia ser apenas um papo de corredor se revelou verídico.
Veio a curiosidade de se saber quem e quantos são os envolvidos. Ainda não sabemos quantos, mas pelo menos dois nomes se destacam: Gilmar Santos, líder da Igreja Cristo para Todos e presidente da Convenção Nacional das Igrejas, e Arilton Moura, da mesma igreja e assessor da citada Convenção.
Sobre suas funções junto a Ribeiro, foi levantado pelo áudio do ministro: ambos capitaneavam o repasse de recursos do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE) para municípios do interior, de preferência de prefeitos aliados de Bolsonaro, do PP, PL e Republicanos.
Se ambos capitaneavam os repasses, havia clara intuição de haver mais pastores no esquema, pois para isso é necessário que os demais envolvidos sejam notoriamente líderes ou fiéis muito influentes em suas respectivas denominações religiosas. Investigação posterior os revelará ao público.
Até porque o dinheiro não era tema exclusivo desse grupo. Os subordinados entrariam em revisões de matérias de certas disciplinas escolares, em especial Ciências/Biologia, Ensino Religioso e História. Todos tinham seus préstimos devidamente (bem) remunerados.
Um prefeito do interior goiano revelou que o pastor Arilton Moura pediu a ele 1 kg de ouro em troca da liberação da verba. Isso sugere que tal solicitação pode ter ocorrido a outras prefeituras. Outro informe é o de que o próprio ministro quis vender, ou vendeu, bíblias com a sua foto.
Ainda no MEC, Milton Ribeiro negou à imprensa haver qualquer irregularidade nas negociações. E, como mostrou o áudio, cuja transcrição inicia este artigo, toda a operação se seguiu de acordo com ordens partidas diretamente do Palácio do Planalto, ou seja, da presidência da República.
Spoiler: nos negócios paralelos do MS estava a Senah1, entidade evangélica com a obscura missão de, via Davati, vender 400 milhões de doses de AstraZeneca e Johnson por US$ 11, acima dos US$ 3,16 da Fiocruz e US$ 5,25 da Sérum. O chefe foi o reverendo2 batista Amilton Gomes de Paula. Conforme revelado por diretor da Davati na CPI, essa carga nunca existiu.
PS: com exceção de Amilton, os demais são da centenária Assembleia de Deus (AD), pioneira do pentecostalismo brasileiro, dentro do qual nasce um ramo ministerial, o neopentecostalismo.
AD e seus reflexos- a AD original veio ao Brasil por uma família missionária dos EUA há mais de 100 anos. Com o tempo moldou-se à vida social e criando vários ministérios, ampliando seu domínio entre a população protestante no país. É a primeira igreja pentecostal, com cultos de revelação.
O pentecostalismo se refere a Pentecostes (derivado de Pessach, antigo rito judaico de transição inverno-primavera). Já a revelação do Espírito Santo é dita pelo pastor ao fiel, sobre o destino deste ou do coletivo. Sua antiga rigidez moral hoje foi flexibilizada pela internet e pelo neopentecostalismo.
Criada nos anos 1960 por Robert McAlister3, a teologia neopentecostal é liberal em costumes, mas preserva a revelação durante a imitação de ritos afrobrasileiros. A primeira sede de sua Vida Nova no interior de SP atraiu os assembleianos locais, curiosos com sua unicidade. A igreja alcança novos locais, principalmente no Rio.
Em 1977, Edir Macedo e seu grupo somaram promessas de riqueza e de cura nos cultos, criando a midiática teologia da prosperidade. Por trás da imitação de sessões afrobrasileiras, a intolerância está presente. Em 1978, eis a IURD, núcleo dessa teologia tão polêmica hoje - em duas razões.
A teologia é favorável ao aborto, opondo-se a vários versículos bíblicos (Êxodo, Salmos, Jeremias, Jó, Gênesis, Zacarias e João) ligados ao tema, sendo criticada por outras igrejas. A ampla infiltração na política criou um partido (Republicanos, antigo PRB), visando poder político além de econômico. O poder econômico alcançado levou várias denominações a assimilar a promessa de prosperidade como forma de garantia de maior influência econômica através dos dízimos quase compulsórios. Dois exemplos são a AD Deus é amor e a AD Vitória em Cristo (ADVC), esta última de Silas Malafaia.
Hoje, no Congresso Nacional, a bancada da bíblia (ou evangélica, como é conhecida) tem mais de 150 deputados e senadores, vários deles bolsonaristas. A maioria são fervorosos assembleianos, alguns políticos veteranos. Como já sabemos, é economicamente liberal e ultraconservadora de costumes.
Como maior bancada temática do Congresso (as demais são a ruralista e a da bala), a evangélica é um reflexo da citada infiltração política que transpassa a tênue linha limítrofe de permissões do Estado laico. Muitos de seus nomes são notoriamente do Centrão, daí se envolverem em escândalos.
Malafaia e o caso MEC - e reflexões finais
A série de escândalos envolvendo o então ministro Ribeiro e o grupo de pastores capitaneados por Gilmar Santos chamou a atenção de nomes proeminentes no protestantismo atual, como o carioca Silas Malafaia, fundador da ADVC.
Segundo mídias ideologicamente diferentes quanto Globo, DW, Poder360 e Carta Capital, ele se manifestou amplamente crítico ao gabinete paralelo de pastores junto a Ribeiro: "somos mais de 200 mil pastores nesse país e não vamos tomar lama por causa de 2 camaradas" (Gilmar e Arilton).
Acrescentou que os pastores "precisam ser investigados", que o ministro tem que "provar que é honesto", considerando "fraca" a argumentação dele no áudio e ainda teve a audácia de salientar sua posição de que suposta inocência de Bolsonaro nessa mixórdia - jogando a culpa, de certa forma, no PT.
Sua manifestação até pode ser sincera em relação à conduta do agora ex-ministro. Porém, ele conta com a falta de memória e de concatenação factual da patuleia quando da indicação de André Mendonça para o STF - além do apoio na própria nomeação de Milton Ribeiro no MEC por ser pastor . E manipula sua patuleia para isso.
Manipula contra a crítica anto-Bolsonaro das eminências do jornalismo brasileiro como Josias de Souza, Jamil Chade, Léo Sakamoto (UOL), Chico Pinheiro (um global à esquerda), o Rovai (Carta Capital), Cora Rónai (Revista Fórum), e outros, rotulando-os de "comprados pelo PT".
O ato de Bolsonaro em nomear pastores à frente de instituições públicas diversas sempre partiu do próprio Malafaia, que atuou como conselheiro e principal influencer do governo, talvez mais do que o escatológico Olavo de Carvalho que, se existe inferno, o tal capiroto luta para expulsar (sarcasmo).
O domínio da nomeação de pastores sobre os descabeçados olavistas indica claramente quem teve mais influência durante todo o governo. Olavo foi criticado pelos militares, em resposta às provocações daquele; Malafaia foi ignorado até por Santos Cruz, hoje na reserva, por criticar o governo.
Tudo isso revela, mais uma vez, como a tentativa de fundir Estado (e talvez a República) e religião é um perigo explosivo. Ela é beligerante dentro e fora do país, mesmo fajuta. Mesmo no Brasil laico, as igrejas continuam próximas da política, mas no bolsonarismo, as evangélicas assumem uma intimidade abusiva. É a teocracia de Malafaia.
Muitos ainda se perguntam por que os evangélicos dominam a política e os católicos não. Bem, a moral não condena o ser político, mas a conduta assumida. O veto do Vaticano a padres terem cargos políticos está em ver a política como "porta aberta ao mal", fora outros motivos canônicos.
Embora a proximidade religião-política-Estado no Brasil ainda persista, a influência de Malafaia revela como a relação de abusiva das igrejas evangélicas com o Estado torna beligerante o governo e aguça o terror interno de Estado contra setores opositores e movimentos pró-povão.
Tal relação abusiva não se iniciou com Bolsonaro, e sim em governos anteriores, embora de forma menos relevante devido ao contexto. A influência de Malafaia ainda era limitada ao seu público, mas nunca escondeu seu sonho de influenciar governos, realizado na era bolsonarista.
Na Carta Magna se prevê o obrigatório paralelismo total entre Estado-política e religião. Já há lei que veta subvenção pública a evento religioso ao ar livre. Todavia, foi descoberto que, antes mesmo de Bolsonaro, as paradas para Jesus eram movidas a grana pública, na cara de pau. E adivinhem quem é o organizador.
Mas cabe saber que a laicidade não impede as instituições religiosas de acompanhar a política, só não podem criar amarras. E Malafaia não só não se contenta com o laço feito com Bolsonaro, já mostra o seu nó - que ainda pode ser desfeito se impedirem a reeleição de Bolsonaro.
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Imagens: Google (fotomontagem: autoria do artigo)
Notas da autoria
1. Sigla de Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários, entidade evangélica tão obscura quanto sua missão no MS.
2. Denominação de tratamento a líderes clericais cristãos: católicos, luteranos, batistas, metodistas e pentecostais.
3. Missionário braso-canadense, autor de Mãe de Santo, obra em que detalha costumes dos fiéis afros, além de citações bíblicas interpretadas em sua visão teológica. Fundador da primeira igreja neopentecostal, a Nova Vida.
4. A principal e maior sede da IURD em cada cidade, liderada pelo bispo, o superior hierárquico entre os pastores.
Para saber mais
- https://www.dw.com/pt-br/a-farra-de-pastores-no-mec/a-61235307
- https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2022/03/24/o-assunto-671-o-esquema-dos-pastores-no-mec.ghtml
- https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2022-03/pgr-pede-abertura-de-inquerito-para-investigar-ministro-da-educacao
- https://apublica.org/2021/07/grupo-evangelico-fez-oferta-paralela-de-vacinas-ao-ministerio-da-saude-e-prefeituras/
- https://www.cartacapital.com.br/politica/malafaia-se-posiciona-sobre-pastores-no-mec-ministro-tem-que-provar-que-e-honesto-com-documentos/
- https://www.poder360.com.br/brasil/malafaia-pede-investigacao-de-pastores-ligados-ao-mec/
- https://www.bibliaon.com/aborto/ (versículos relativos ou sugeridos ao tema aborto).