Caso Mari Ferrer: patriarcalismo ou interesse?
A ação foi motivada por estupro de que Mari fora vítima quando trabalhou em evento no Café de La Musique, club bech de luxo, matriz em Florianópolis.
Mídias anexaram trecho do vídeo da audiência com a depreciação à jovem e absolvição do réu. Os indícios materiais do crime foram o esperma e o laudo toxicológico1 da vítima. Daí surge o termo estupro culposo.
Foi a detonação da bomba: a expressão apareceu na mídia como mencionada pelo juiz. Existe estupro culposo, se em circunstância sexual, consentida ou não, sempre há intenção de pelo menos uma das partes?
Em verdade, a matéria em tela envolve pontos polêmicos, indo além dos apresentados acima. É neles que o presente artigo se concentra em analisar, sem se aprofundar em detalhes cronológicos.
-> Circunstâncias do crime e tortura psicológica
Matriz em Florianópolis, o Café de la Musique é restaurante durante o dia, e à noite, beach club luxuoso frequentado por turistas e poderosos. O dono, Álvaro Garnero, é "vassourinha" também entre políticos2. Os seus clientes buscam mulheres que se dispõem a programas sexuais.
Que fique claro: se dispor não significa se obrigar. Via de regra, ao escolher a trabalhadora para a sua noite de prazer, o cliente pode receber uma negativa.
Porém, a exploração sexual de mulheres e menores de idade é mais comum, ministrada pelo gerente, título que só mascara o de cafetão. Sujo, bilionário e reforçado pelo turismo, o negócio é tema recorrente na mídia. E pode ocorrer na citada casa.
Como as redes sociais de Mari Ferrer foram apagadas a mando da justiça, é impossível saber sobre os detalhes do fato. O que se sabe está disponível nas mídias noticiosas, base para as reflexões a seguir.
Em novembro de 2018, Mari Ferrer, então embaixadora do Café, estava em evento no local quando foi levada a um local possivelmente privativo do local, e ali fora dopada e estuprada. Mas, o pior estaria por vir, um ano depois.
Na audiência, o promotor Cláudio Gastão da Rosa Fº classificou as fotos de Mari de "pornogáficas" e a depreciou moralmente pelo trabalho. As palavras ofensivas e a falta de provas materiais3 a comprovar o crime convenceram o juiz Rudson Marcos a absolver o réu, mas sem menção do "estupro culposo".
Mas, como a citada expressão foi usada pela mídia como uma alusão irônica, movimentos feministas e simpatizantes se manifestaram on-line e nas ruas contra a cultura que encoberta os crimes sexuais e por Mari, dada a tortura psicológica sofrida também no decorrer da audiência.
A repercussão surtiu efeito: a OAB-SC solicitou continuidade da apuração do caso, e o CNJ, por sua vez, deseja saber porque o juiz não interrompeu as ofensas. A ausência de respostas indica o andamento dos processos solicitados.
Como já referido o início deste tópico, Álvaro Garnero é referência na alta sociedade - fora do Brasil também, o que ressalta um histórico: a possível relação com hoje falecido Jeffrey Epstein, condenado por crimes de exploração sexual e tráfico de menores e mulheres.
-> Jeffrey Epstein: resumo biográfico
Nato de Nova York, Jeffrey Epstein teve carreira diversificada: de jardineiro, professor e empresário, a várias funções como financista. Inteligente e habilidoso, soube lidar com uma elite rica e complexa, bem como resolver problemas financeiros complicados.
Foi nesse estágio, e na diversificação das relações com a clientela mais alta, que entrou numa carreira paralela: a criminal. A princípio sem despertar suspeitas, apenas contratando mulheres para satisfazer os clientes. E logo passaria à exploração sexual de menores, que envolve gente muito poderosa.
Nessa carreira, Epstein aumentou seu leque de contatos de elite em vários países. Segundo achados do grupo Anonymous, ele conheceu Álvaro Garnero e seu pai Mario, que relataram receber chantagens dele, por um alto dinheiro após filmar os encontros íntimos no lugar.
A chantagem supracitada revela a atividade de Epstein e colegas: escolher, contratar e prostituir as menores, fotografá-las nas casas noturnas e filmar os encontros íntimos, pelos quais chantageia os donos das casas noturnas ou clientes no intuito de extorquir dinheiro.
A carreira de explorador de menores para prostituição turística em locais de luxo continuou até que foi denunciado pelos pais de uma adolescente abusada. Em 2008, foi condenado e ficou preso por 13 meses por tê-la chamado para prostituição.
Por outro lado, investigadores descobriram que Epstein participara de exploração de mais 36 menores, algumas com 14 anos de idade, e foi novamente preso, permanecendo encarcerado até 10/8/2019, quando foi descoberto morto em sua cela, aos 66 anos de idade. Embora não haja conclusão definitiva, a causa mortis oficializada pelos legistas foi suicídio.
-> Reflexões
Tudo isso fornece importantes reflexões.
Primeira: o Café de la Musique ser restaurante de dia e casa noturna à noite não é problema em si. Mas pelo fato de só ricos serem bem tratados e as mulheres importunadas, de acordo com alguns relatos online, já acende uma luzinha de alerta.
Mais do que bonitas, disponíveis ao trabalho à noite e preferencialmente solteiras, as trabalhadoras de casas noturnas aprendem que estarão sempre sujeitas a importunações e humilhações, até por parte de seus chefes. Existem relatos de simples frequentadoras importunadas.
A caixa de Pandora aberta pelo bolsonarismo mostrou um Brasil mais perigoso do que o sabido para as mulheres. Honestos que queiram conhecer casa noturna chique devem pesquisar se podem levar suas companheiras, atentando-se aos valiosos relatos pessoais e online de frequentadoras eventuais.
A segunda: casas noturnas de luxo são conhecidas pelo alto empresariado de todo ramo e de toda índole. E se Mario Garnero foi chantageado por Epstein, é certo que este transitou livremente na casa.
Menores são proibidas por lei oficial, mas não na do submundo. É uma realidade difícil de solucionar por envolver gente muito poderosa. Embora não haja afirmações nesse caso específico, há acusações sobre o Café de la Musique de "dopar garotas e 'vendê-las' a empresários".
A terceira: a legislação brasileira não criminaliza a prostituição voluntária, mas não a regulariza por motivos morais que a permeiam. São crimes o aliciamento e a exploração que legitimam a exploração e as violências sexuais em casas de luxo, quase sempre encobertos por quem deveria combater esses crimes.
Abusos nesse submundo só vem à tona na mídia por denúncia arriscada pela vítima. É quando o "ouvi falar" vira conhecimento do fato. Mariana correu risco temerário por mexer com gente poderosa. Ela nega ser prostituta, mas isso não importa, e sim a sociedade saber da realidade.
A quarta: os movimentos feministas em apoio à Mari Ferrer, que também agregam homens, mandam um recado à sociedade e às autoridades competentes. O recado da mulher violada física e aviltada na psique mais por ser mulher do que pelas suas características étnicas, culturais, origem, fé, etc.
O presente artigo não vitimiza Mari Ferrer, mas mostra que, até prova em contrário, ela é vítima sim. Juridicamente. A vilanização das vítimas de crimes sexuais é uma realidade iniciada na sociedade e instituída nas DPs e, com frequência, nos tribunais.
Uma ruindade à cidadania a partir do ambiente institucional. Ao Estado cabe assegurar aos cidadãos estratégias inteligentes de proteção e combate à violência legitimada pelo moralismo, patriarcalismo, interesses de classe e financeiros. Esse é o recado de Mari Ferrer e de todas as demais vítimas da violência e da exploração sexual.
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Imagens: Google.
Notas da autoria:
1. Tais indícios não podem ser considerados provas por si sós.
2. Garnero tem proximidade com Jeffreu Epstein, família Bolsonaro e Donald Trump.
3. Na audiência só foram exibidos vídeos de câmeras internas sobre Mari, para "provar" sua sobriedade.
Para saber mais:
- https://www.conjur.com.br/2020-nov-05/veja-integra-audiencia-mariana-ferrer-estupro
- https://www.conjur.com.br/2020-nov-09/mp-debate-desamparo-vitima-sistema-justica-mariana-ferrer
- https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/11/10/caso-mari-ferrer.htm
- https://istoe.com.br/caso-mariana-ferrer-mp-diz-que-crime-nao-pode-ser-comprovado-diz-site/
- https://www.poder360.com.br/justica/especialistas-dizem-que-estupro-culposo-nao-foi-citado-no-caso-mariana-ferrer/
- https://paranaportal.uol.com.br/geral/caso-mariana-ferrer-cnmp-investigacao-contra-promotor-omisso/
- https://www.diariodocentrodomundo.com.br/a-suposta-ligacao-entre-o-cafe-de-la-musique-onde-mari-ferrer-foi-estuprada-e-jeffrey-epstein-por-caique-lima/
- http://portalmakingof.com.br/policia-civil-se-manifesta-sobre-denuncia-de-estupro-em-beach-club-de-jurere (maio 2019)
- https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2019/05/21/influenciadora-digital-denuncia-estupro-em-beach-club-em-jurere-internacional.ghtml
- https://falauniversidades.com.br/o-machismo-silencia-influencia-na-denuncia-de-casos-de-estupro/
- https://www.chegadetrabalhoinfantil.org.br/especiais/trabalho-infantil-sp/reportagens/exploracao-sexual-ainda-e-tabu-e-invisivel-no-brasil/
- https://dp-pa.jusbrasil.com.br/noticias/2128891/oficina-debate-papel-da-midia-no-combate-a-violencia-sexual-infanto-juvenil
- https://veja.abril.com.br/brasil/caso-mariana-ferrer-expoe-o-drama-da-vilanizacao-das-vitimas-de-estupro/
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Jeffrey_Epstein
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