quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

ANÁLISE: Lula 3, retrospecto 2023 (bônus: Milei)

 

            Ao ser preso em 2018, Lula percebeu o Brasil dividido. Liberto 581 dias depois, viu muita hostilidade política. Ainda assim, sua presença fulminou o cenário político para protagonizar um ineditismo histórico.
            Sua soltura ajudou a selar o fim da era Bolsonaro. Lula virou o 1º presidente da história a obter o 3º mandato por voto popular. Além da popularidade, ele teve ajuda das provas criminais do adversário e de ampla frente suprapartidária para enfrentar novos desafios – e novos inimigos políticos.
            Segue aqui a lista de fatos do 1º ano de governo Lula 3, para análise pelos leitores.
            
            Yanomamis – foram atendidos após muitos apelos antes ignorados. Cenas dramáticas de pessoas desnutridas, doentes, com malária e sequeladas por mercúrio na TV e na internet comoveram o país. Forças do Comando Militar da Amazônia agem lentamente na entrega de suprimentos e água às comunidades.
            Invasões de terras indígenas por fazendeiros e extrativistas ilegais, assassinatos de líderes indígenas, vários povos indígenas vulnerabilizados e meninas e mulheres violadas desafiam o governo na seara.
            Recuperação de políticas sociais – retornam os programas (Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família, Vale-gás, e de Abastecimento alimentar – PAA). Políticas novas como Cozinha Solidária contra a fome e programa Padre Júlio Lancelotti para a população de rua são políticas novas a completar o combo.
            PAC – criado na primeira era Lula, o Programa de Aceleração do Crescimento originou várias obras de infraestrutura como a transposição do São Francisco e melhorias no sistema rodoviário. A nova versão é uma continuidade do que foi parado, mas levou tempo devido à licitação sobre empresa partícipe.
            Salário-mínimo – o aumento acima da inflação retoma a política de impulso à renda e ao consumo básico, bem como investimento em empregabilidade, sobretudo no ramo industrial. Mas seu valor defasado segue abaixo dos R$ 5600 ideais estimados pelo DIEESE ainda em 2022, para 2023.
            Servidores federais¹ – foram atendidos após 7 anos de congelamento salarial e descaso do governo anterior. O baixo aumento deu fôlego para novos diálogos. A luta dos servidores dos baixos escalões do Executivo ainda se segue por planos de carreira equiparáveis aos dos servidores do legislativo e do judiciário.
            Agricultura familiar – retorna após paralisia pelo governo anterior, desta vez ligada ao PAA visando maior facilidade de acesso a hortifrutis às famílias de baixa renda.
            Crime organizado – a apreensão de armas das orcrims foi recorde, bem como algumas descobertas da PF do envolvimento de políticos e milicos no tráfico de armas em MG, RJ, SP e outros estados. A magnitude do problema alerta para novas forças-tarefas nos próximos anos.
            Reforma tributária – foi outorgada após mais de 50 anos de paralisia por trás de ideias, debates, campanhas políticas e nada. Finalmente aprovada, ainda levará algum tempo para valer plenamente.
            
A cada política, um novo desafio 
            Em campanha, Lula disse que “este será o governo de minha vida”, visando combater a destruição pelo governo anterior. Político experiente, ele percebeu que teria que governar antes da posse. Daí a PEC da Transição, fruto bilionário de muitos diálogos com o STF e o Congresso.
            O governo cumpriu as exigências do Centrão para aprove da PEC da Transição e de medidas criadas em 2023. O Arcabouço Fiscal (AF) revoga o teto de gastos de Temer para ser outro texto que limita gastos.
            Agricultura familiar – parte dos mais de R$ 300 bilhões se destina à agricultura familiar. Mas a elite do agro já reclama tudo para si. Além de criminalizar o MST, a CPI do MST visou pressionar o governo a não investir nas famílias integrantes, que contribuem para alimentar 70% dos brasileiros. Mas se ferrou.
            Infraestrutura – além da demora na licitação relativa à empreiteira responsável pelas obras, o PAC sofreu corte de 1/3 da verba para 2024 exigido pelo Congresso para compor emendas impositivas, o que interferirá no andamento das obras.
            Indústria – acordos internacionais à parte, o investimento na indústria nacional, que emprega mais facilmente, ainda engatinha dificultando a competitividade com as estrangeiras.
            Arcabouço Fiscal – é mais qualificado que o Teto de Temer, mas pode interferir em investimentos públicos em desenvolvimento (pesquisa em C&T e inovação, p.e.) e em atenção (educação, saúde e outros, que necessitam de concursos públicos e melhorias materiais e salariais, p. e., para compensar as defasagens).
            Reforma tributária – o governo não gostou do formato final decorrido dos muitos jabutis do agro e do enfraquecimento do “imposto do pecado” que pesaram no ônus final para os segmentos populares. Isso impediu a ocorrência de um caráter realmente progressivo e justo em relação à incidência por faixa de renda.
            Indígenas – yanomamis são mal atendidos pelo Comando Militar da Amazônia. Invasões de terras², assassinatos de lideranças, vulnerabilização de comunidades e violações de meninas e mulheres por gente do crime organizado no campo e na floresta são desafios ao governo nesse campo complexo.
            Centrão – é o pior desafio, com exigência chantagista e ganância mercantilista. Liderado por Lira, cujo perigo Lula conhece bem, o Centrão tem determinado a vida e a morte de governos eleitos. Não à toa, o petista tem dialogado com o STF e indicou Dino para reforçar a estabilidade de seu governo.

            Fria análise– considerando-se o contexto em que o país se encontrava quando o governo se iniciou, bem como um Congresso dominantemente adversário, a efetividade das decisões tomadas e a popularidade em altos e baixos, pode-se dizer que, no geral, o governo mais teve sucessos do que fracassos em seu primeiro ano.
            Os fatos indicaram que a inteligência sagaz de Lula e a lealdade e qualificação de seus aliados contornaram a fragilidade do governo. As ressalvas em alguns ministérios resultam da coalizão que, se ajuda de um lado, de outro interfere na determinação do presidente sobre os rumos de seu governo.
            O domínio de feitos positivos indica que o governo segue uma estrada certa. Asperezas políticas puseram nela um pavimento de qualidade duvidosa, mas essa foi a estrada governamental disponível, e que dá para arrumar. 
            Que a estrada governamental melhore paulatinamente até 2026. Daí para diante não podemos adiantar o futuro - se virá reeleição de fato, se o Legislativo permitir - , ou se entrará novo governo. De qualquer forma, 2027 adiante é só incógnita por enquanto.

Notas da autoria
² por fazendeiros, grileiros e extrativistas ilegais isolados ou associados a organizações criminosas na Amazônia e áreas fronteiriças.

Sal Ross
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Bônus

O Bolsonaro argentino

         
Javier Milei foi eleito presidente da Argentina por já ser previamente profissional da comunicação. Antes um apresentador popular de programa de auditório, ele foi o seu personagem em toda a sua eficiente campanha. Mas, após a posse, ele se revelou naquilo que identificamos por aqui nos últimos 4 anos.
            Agora ele meteu um pacote econômico barra-pesada que no Brasil é considerado de extrema-direita. Mas, Milei pode ser mesmo uma versão hermana de Bolsonaro? Eles são iguais em tudo? Vejamos.
            
            Pontos em comum – não por acaso, a julgar pelos planos de governo, o Brasil identificou a política de Milei como de extrema-direita. Vale ressaltar o que Milei compartilha com Bolsonaro.
            Eficiência comunicativa – os personagens Bolsonaro e Milei foram eleitos graças aos discursos de destruição -> reconstrução, combate à corrupção e aos maus costumes, família tradicional e cristocracia. Igrejas contribuíram na ampla capilaridade dos discursos entre os fiéis.
            Anarcocapitalismo – ambos defendem Estado mínimo e mercado máximo 'autorregulável'. Política social (saúde, educação, abastecimento) e estratégica (energia) privatizadas. Hiperinflação em alimentos e em remédios, desemprego e aprofundamento da pobreza. Poder pessoal para ditames monetários.
            Política de repressão aos populares – maior violência policial contra populares e uso de tecnologia como pretexto de segurança para espionagem e violação de direitos humanos.

            Diferenças – mas Bolsonaro e Milei também têm suas diferenças intrínsecas e em detalhes políticos. São mais sutis, mas vale expô-las para entendimento.
            Personalidades – seus personagens foram eleitos por serem agressivos e ousados. Mas Milei é mais inteligente ou preparado, e quiçá pode ter algum sucesso, mesmo à custa de seu mandato.
            Meio ambiente – embora os dois nomes defendam a gestão ambiental privada, Milei aparenta não ser ambientalmente destrutivo. Aparentemente não há menção de devastação sistemática que tenha incentivo de seu governo.
            Saúde – como servidores argentinos são mais facilmente demissíveis, no povo demitido na semana natalina há gente da saúde pública. Aqui Bolsonaro sucateou mais, mas não conseguiu seu intento de privatizar o SUS, e a reforma administrativa não saiu do papel até hoje – e pode não sair tão cedo.
            Dolarização – essa promessa de campanha é reprovada por economistas. Moeda forte não combina com hiperinflação, pois impõe valor absurdo e impossibilita o consumo popular. Isso pode dar xeque-mate ao governo Milei. E ainda há outro risco ao mandato do novo presidente.
            Banco Central – outra promessa de campanha o põe na contramão do mundo. Será que Milei vai controlar a inflação para incentivar investimentos, emprego e renda, dar paridade cambial e inibir também o valor da dívida pública? Só se criar outro BC, mesmo com a sua cara. E isso pode ter um custo altíssimo.

            Impeachment – presidentes da República são mais facilmente substituíveis na Argentina. No ápice dos 20 anos de crise houve rotatividade no cargo como jamais se viu. Alguns ficaram por poucos dias, outros no máximo alguns meses. Em mandatos inteiros, Macri e Fernandez tentaram resolver a crise e fracassaram.
            Mal começou, o governo Milei já causa miséria e ordenou repressão violenta sobre os populares em protesto. Suprimentos e serviços essenciais estão hiperinflacionados e, com portas se fechando e demissões em massa, já se estima que, até o fim de 2024, cerca de 66% dos argentinos estejam em extrema pobreza.
            Bolsonaro tentou fazer isso tudo com mais êxito, e levou a termo seu mandato a preço altíssimo pago ao Centrão de Arthur Lira. Já Milei pode não ter a mesma sorte. Num país onde presidentes saem mais facilmente, o impeachment já está perto de dobrar a esquina da Casa Rosada.

Sal Ross
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domingo, 24 de dezembro de 2023

CURTAS 54 - ANÁLISES (Dino, sabatina Gonet e Dino)

 

Dino, o comunista

            Flávio Dino já era muito popular no Maranhão. Foi deputado, governador e como senador em 2022, virou ministro de Lula 3 e se tornou um viral comedor de bolsonaristas – e o ministro mais popular. Reflexo do carisma cativante difícil de se ver na esquerda brasileira atual.
            Lula inicialmente não sabia se o lançaria em 2026 ou se o indicaria ao STF: cacife ele tem para tudo. A decisão final se deu mais de 1 mês após a aposentadoria de Rosa Weber.
            Sabatina – nela apareceu um Dino comedido, mas tranquilo diante dos bolsonaristas cuja esperança raivosa virou desespero quando 47 votos o aprovaram. “O STF terá um comunista” ficou viral e temível. Isso tem explicação em uma entrevista pretérita do então governador.
            A uma pergunta Dino explicou: “comunismo é cristão, é partilha”. Ao famoso clichê “comunista de Iphone”, ele respondeu: “mas é claro, tecnologia não deve ser para poucos, mas para todos”.
            Mídias – afirmando que “Dino não é terrivelmente comunista”, as mídias credenciadas definem comunismo como sistema tirânico. O conceito marxista seria inviável em grandes sociedades urbanas. O que funcionou foi um capitalismo estatal autoritário em diferentes nuanças, apesar do intento marxista.
            Resposta a Lula – a afirmação midiática acima citada também foi resposta a um discurso irônico de Lula a jovens militantes, em que deu “graças a Deus que temos um comunista no STF”.
            Saúde à frente – ideologia à parte, Flávio Dino encara sua entrada no STF como forma de aliviar as pressões em sua saúde. Ele já sente os efeitos da obesidade. Ao afirmar que “virou definitivamente a página” ao voltar à Justiça, ele poderá ter menos estresse e se oportunizará se cuidar melhor.
            Por herdar os processos de Rosa Weber e a atribuição do STF de julgar políticos, Dino se ligará à política. Espera-se dele mais progressismo e garantismo, sem perder o legalismo. Pois, ideologias à parte, Dino é fortemente legalista, e isso marcará sua conduta. 
            Se já nos diverte ver o desespero dos bolsonaristas com "um comunista no STF", eles que se preparem mais a partir de agora.

Sal Ross
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Sabatina: um aprove previsível


            Brasília, 13/12/2023. O senado estava em polvorosa, lotado como não se via desde o fim da barulhenta CPMI do 8/1. Mas a data foi especial: era a sabatina de dois juristas, Paulo Gonet para a PGR e Flávio Dino para o STF. Ambos foram indicados por Lula 3.
            Paulo Gonet – servidor de carreira do MPF, ele era praticamente desconhecido do povão. Só veio à luz da mídia meses após a melancólica despedida de Augusto Aras, que manchou sua imagem após 4 anos omitindo os muitos crimes dos Bolsonaro. Discrição à parte, sua indicação foi polêmica nos bastidores do governo.
            Se uma parte elogiava suas qualidades, outra o criticava por ter feito elogio velado à sanguinária ditadura militar e negar indenizações a algumas famílias de militantes mortos pelo regime, e que há décadas aguardavam a restituição do valor judicialmente requerido.
            A sua sabatina foi tão discreta quanto a sua vida pregressa, sem despertar alarde na mídia. Foi mais um aquecimento dos parlamentares para a próxima.
            Flávio Dino – a notoriedade desse maranhense católico e comunista não se deve apenas ao peso de seu CV. Largou a toga de Juiz federal após 12 anos para ser deputado federal e duas vezes governador do MA. Sua popularidade estadual federalizou após “comer” os bolsonaristas nas muitas aparições no parlamento.
            Diferente de Gonet, a sua sabatina de 11 horas foi a mais esperada. Mas não deu alarde, apesar dos achaques bolsonaristas ao cumprimento cordial ao adversário Sérgio Moro antes da arguição, que revelou o Dino jurista, sereno e sério, cujo único toque de humor foi com a ausência do voto de Moro.
            Talvez o povo não tenha gostado do tom comedido, mas Dino fez tirada com Flávio Bolsonaro, Jorge Seif e Eduardo Girão, que alegavam a suposta incongruência de ser cristão e comunista.
            Reflexão – no geral, o resultado das sabatinas foi previsível. Apesar do número final de votos menor do que o previsto (47 pró), Dino foi fortalecido pela campanha contrária. Além do saber jurídico, um reprove seria prejudicial eleitoralmente aos próprios adversários, que já estão com chapa quente na justiça.
            Gonet teve 67 votos, 20 a mais do que Dino. A postura conservadora e o elogio à ditadura sagrada aos bolsonaristas explica. A defesa pela liberdade responsável de expressão não pareceu relevante.
            Enfim, polêmicas e alardes à parte, ambos foram aprovados e ocuparão os novos postos. Então, suas atuações terão atenção da patuleia e dos políticos. Os bolsonaristas já roem as unhas com Dino no STF. Que a legalidade constitucional seja bem superior às fés pessoais que permeiam suas posturas.

Sal Ross
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CURTAS 98 - ANÁLISES (Brasil- Congresso)

  A GUERRA POVO X CONGRESSO                     A derrota inicial do decreto do IOF do governo federal pelo STF foi silenciosamente comemo...