Ao ser preso em 2018, Lula
percebeu o Brasil dividido. Liberto 581 dias depois, viu muita hostilidade
política. Ainda assim, sua presença fulminou o cenário político para
protagonizar um ineditismo histórico.
Sua soltura ajudou a selar
o fim da era Bolsonaro. Lula virou o 1º presidente da história a obter o 3º
mandato por voto popular. Além da popularidade, ele teve ajuda das provas
criminais do adversário e de ampla frente suprapartidária para enfrentar novos
desafios – e novos inimigos políticos.
Segue aqui a lista de fatos
do 1º ano de governo Lula 3, para análise pelos leitores.
Yanomamis – foram atendidos após muitos apelos antes ignorados.
Cenas dramáticas de pessoas desnutridas, doentes, com malária e sequeladas por
mercúrio na TV e na internet comoveram o país. Forças do Comando Militar da
Amazônia agem lentamente na entrega de suprimentos e água às comunidades.
Invasões de terras
indígenas por fazendeiros e extrativistas ilegais, assassinatos de líderes
indígenas, vários povos indígenas vulnerabilizados e meninas e mulheres
violadas desafiam o governo na seara.
Recuperação de políticas
sociais – retornam os programas
(Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família, Vale-gás, e de Abastecimento alimentar –
PAA). Políticas novas como Cozinha Solidária contra a fome e programa Padre
Júlio Lancelotti para a população de rua são políticas novas a completar o
combo.
PAC – criado na primeira era Lula, o Programa de
Aceleração do Crescimento originou várias obras de infraestrutura como a
transposição do São Francisco e melhorias no sistema rodoviário. A nova versão
é uma continuidade do que foi parado, mas levou tempo devido à licitação sobre
empresa partícipe.
Salário-mínimo – o aumento acima da inflação retoma a política de
impulso à renda e ao consumo básico, bem como investimento em empregabilidade, sobretudo no ramo industrial. Mas seu valor defasado segue abaixo dos R$ 5600 ideais estimados
pelo DIEESE ainda em 2022, para 2023.
Servidores federais¹ – foram atendidos após 7 anos de congelamento
salarial e descaso do governo anterior. O baixo aumento deu fôlego para novos
diálogos. A luta dos servidores dos baixos escalões do Executivo ainda se segue
por planos de carreira equiparáveis aos dos servidores do legislativo e do
judiciário.
Agricultura familiar – retorna após paralisia pelo governo anterior, desta
vez ligada ao PAA visando maior facilidade de acesso a hortifrutis às famílias
de baixa renda.
Crime organizado – a apreensão de armas das orcrims foi recorde, bem
como algumas descobertas da PF do envolvimento de políticos e milicos no tráfico de
armas em MG, RJ, SP e outros estados. A magnitude do problema alerta para novas
forças-tarefas nos próximos anos.
Reforma tributária – foi outorgada após mais de 50 anos de paralisia por
trás de ideias, debates, campanhas políticas e nada. Finalmente aprovada, ainda
levará algum tempo para valer plenamente.
A cada política, um novo
desafio
Em campanha, Lula disse
que “este será o governo de minha vida”, visando combater a destruição
pelo governo anterior. Político experiente, ele percebeu que teria que governar
antes da posse. Daí a PEC da Transição, fruto bilionário de muitos diálogos com o
STF e o Congresso.
O governo cumpriu as
exigências do Centrão para aprove da PEC da Transição e de medidas criadas em
2023. O Arcabouço Fiscal (AF) revoga o teto de gastos de Temer para ser
outro texto que limita gastos.
Agricultura familiar – parte dos mais de R$ 300 bilhões se destina à
agricultura familiar. Mas a elite do agro já reclama tudo para si. Além de
criminalizar o MST, a CPI do MST visou pressionar o governo a não investir nas
famílias integrantes, que contribuem para alimentar 70% dos brasileiros. Mas se
ferrou.
Infraestrutura – além da demora na licitação relativa à empreiteira responsável pelas obras, o PAC sofreu corte de
1/3 da verba para 2024 exigido pelo Congresso para compor emendas impositivas,
o que interferirá no andamento das obras.
Indústria – acordos internacionais à parte, o investimento na
indústria nacional, que emprega mais facilmente, ainda engatinha dificultando a
competitividade com as estrangeiras.
Arcabouço Fiscal – é mais qualificado que o Teto de Temer, mas pode
interferir em investimentos públicos em desenvolvimento (pesquisa em C&T e
inovação, p.e.) e em atenção (educação, saúde e outros, que necessitam de
concursos públicos e melhorias materiais e salariais, p. e., para compensar as defasagens).
Reforma tributária – o governo não gostou do formato final decorrido dos
muitos jabutis do agro e do enfraquecimento do “imposto do pecado” que pesaram
no ônus final para os segmentos populares. Isso impediu a ocorrência de um caráter realmente progressivo e justo em relação à incidência por faixa de renda.
Indígenas – yanomamis são mal atendidos pelo Comando Militar da
Amazônia. Invasões de terras², assassinatos de lideranças, vulnerabilização de
comunidades e violações de meninas e mulheres por gente do crime organizado no campo e na floresta são desafios ao governo nesse
campo complexo.
Centrão – é o pior desafio, com exigência chantagista e ganância
mercantilista. Liderado por Lira, cujo perigo Lula conhece bem, o Centrão tem
determinado a vida e a morte de governos eleitos. Não à toa, o petista tem
dialogado com o STF e indicou Dino para reforçar a estabilidade de seu governo.
Fria análise– considerando-se o contexto em que o país se
encontrava quando o governo se iniciou, bem como um Congresso dominantemente adversário, a efetividade das decisões tomadas e a
popularidade em altos e baixos, pode-se dizer que, no geral, o governo mais
teve sucessos do que fracassos em seu primeiro ano.
Os fatos indicaram que a inteligência
sagaz de Lula e a lealdade e qualificação de seus aliados contornaram a fragilidade
do governo. As ressalvas em alguns ministérios resultam da coalizão que, se ajuda
de um lado, de outro interfere na determinação do presidente sobre os rumos de
seu governo.
O domínio de feitos
positivos indica que o governo segue uma estrada certa. Asperezas políticas puseram nela um pavimento de qualidade duvidosa, mas essa foi a estrada
governamental disponível, e que dá para arrumar.
Que a estrada governamental melhore
paulatinamente até 2026. Daí para diante não podemos adiantar o futuro - se virá reeleição de fato, se o Legislativo permitir - , ou se entrará novo governo. De qualquer forma, 2027 adiante é só incógnita por enquanto.
Notas da autoria
¹ vide artigo em https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2023/12/curtas-52-analises-stf-e-midia.html.
² por fazendeiros,
grileiros e extrativistas ilegais isolados ou associados a organizações
criminosas na Amazônia e áreas fronteiriças.
Sal Ross
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Bônus
O Bolsonaro argentino
Javier Milei foi eleito
presidente da Argentina por já ser previamente profissional da comunicação.
Antes um apresentador popular de programa de auditório, ele foi o seu
personagem em toda a sua eficiente campanha. Mas, após a posse, ele se revelou naquilo
que identificamos por aqui nos últimos 4 anos.
Agora ele meteu um pacote econômico
barra-pesada que no Brasil é considerado de extrema-direita. Mas, Milei pode
ser mesmo uma versão hermana de Bolsonaro? Eles são iguais em tudo? Vejamos.
Pontos em comum – não por acaso, a julgar pelos planos de governo, o Brasil identificou a política de
Milei como de extrema-direita. Vale ressaltar o que Milei compartilha com
Bolsonaro.
Eficiência comunicativa – os personagens Bolsonaro e Milei foram eleitos
graças aos discursos de destruição -> reconstrução, combate à corrupção e
aos maus costumes, família tradicional e cristocracia. Igrejas contribuíram na
ampla capilaridade dos discursos entre os fiéis.
Anarcocapitalismo – ambos defendem Estado mínimo e mercado máximo 'autorregulável'.
Política social (saúde, educação, abastecimento) e estratégica (energia)
privatizadas. Hiperinflação em alimentos e em remédios, desemprego e
aprofundamento da pobreza. Poder pessoal para ditames monetários.
Política de repressão
aos populares – maior violência policial
contra populares e uso de tecnologia como pretexto de segurança para espionagem
e violação de direitos humanos.
Diferenças – mas Bolsonaro e Milei também têm suas diferenças
intrínsecas e em detalhes políticos. São mais sutis, mas vale expô-las para
entendimento.
Personalidades – seus personagens foram eleitos por serem agressivos
e ousados. Mas Milei é mais inteligente ou preparado, e quiçá pode ter algum sucesso,
mesmo à custa de seu mandato.
Meio ambiente – embora os dois nomes defendam a gestão ambiental
privada, Milei aparenta não ser ambientalmente destrutivo. Aparentemente não há
menção de devastação sistemática que tenha incentivo de seu governo.
Saúde – como servidores argentinos são mais facilmente
demissíveis, no povo demitido na semana natalina há gente da saúde pública.
Aqui Bolsonaro sucateou mais, mas não conseguiu seu intento de privatizar o
SUS, e a reforma administrativa não saiu do papel até hoje – e pode não sair
tão cedo.
Dolarização – essa promessa de campanha é reprovada por
economistas. Moeda forte não combina com hiperinflação, pois impõe valor
absurdo e impossibilita o consumo popular. Isso pode dar xeque-mate ao governo
Milei. E ainda há outro risco ao mandato do novo presidente.
Banco Central – outra promessa de campanha o põe na contramão do
mundo. Será que Milei vai controlar a inflação para incentivar investimentos,
emprego e renda, dar paridade cambial e inibir também o valor da dívida
pública? Só se criar outro BC, mesmo com a sua cara. E isso pode ter um custo
altíssimo.
Impeachment – presidentes da República são mais facilmente
substituíveis na Argentina. No ápice dos 20 anos de crise houve rotatividade no
cargo como jamais se viu. Alguns ficaram por poucos dias, outros no máximo
alguns meses. Em mandatos inteiros, Macri e Fernandez tentaram resolver a crise
e fracassaram.
Mal começou, o governo
Milei já causa miséria e ordenou repressão violenta sobre os populares em
protesto. Suprimentos e serviços essenciais estão hiperinflacionados e, com
portas se fechando e demissões em massa, já se estima que, até o fim de 2024, cerca de 66% dos argentinos estejam em extrema pobreza.
Bolsonaro tentou fazer isso
tudo com mais êxito, e levou a termo seu mandato a preço altíssimo pago ao Centrão de Arthur Lira. Já Milei
pode não ter a mesma sorte. Num país onde presidentes saem mais facilmente, o impeachment
já está perto de dobrar a esquina da Casa Rosada.
Sal Ross
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