Os
reveses ocorridos durante o regime soviético são alvos de muitas interpretações no debate
público nas redes sociais e em canais do YouTube. Um dos reveses soviéticos mais
debatidos é um episódio de fome após a 1ª guerra mundial.
Holodomor – em ucraniano, significa “deixar morrer de fome”.
Refere-se à mortandade por fome ocorrida após a grande depressão econômica de
1929-32. O tema tem sido usado para depreciar o sovietismo.
Mas,
Stalin teria matado os ucranianos de fome? E as outras fomes de massa pelo
mundo? Vale um breve resumo de eventos antes e depois da Ucrânia.
Idade
Média europeia- a
História nos revela que a vida na Europa medieval era difícil, supersticiosa e
violenta, entre guerras, epidemias e fome. E só de fome há registros de dois
grandes eventos conhecidos.
O
primeiro aconteceu em 535-6, se refletindo por mais tempo. O outro, nos anos
1300, reprisou o anterior por mais tempo e precedeu a grande peste. Milhares
morreram de fome, mas o número ainda não é preciso.
Grande
Fome Irlandesa- aconteceu
no século XIX, seguida de uma perda importante nas plantações de cereais, frutas e tubérculos (batata inglesa) e de gado. Milhares
morreram famintos, o que forçou a emigração massiva para a América do Norte.
E,
coincidindo com o evento irlandês, o Brasil viveria a sua versão, tratada com
detalhes mais adiante.
Após
a Ucrânia, outros Holodomores viriam, alguns com caráter permanente. Como a
fome que assola países africanos e asiáticos, ocorrentes após a colonização
europeia. E dois casos muito especiais.
África- tem 1,3 bilhão de habitantes em 53 países. Desertos
cobrem 1/3 do continente. O clima dominante é tropical subúmido a úmido. Em geral, os
índices sociais são baixos. Vários países convivem com guerras civis de
décadas. A fome é recorrente.
Ao menos em parte, as mazelas vividas pelos africanos se relaciona à intensa espoliação dos riquíssimos recursos minerais e biológicos pelos colonizadores, o que só terminaria com as vitoriosas lutas por independência ocorridas a partir dos anos 1950.
Mianmar- apresenta problemas muito similares aos dos países
africanos. Mas, diferentemente da África, não há midiatização das mazelas que afetam as diferentes etnias que compõem a população desse país. O motivo maior é o regime de ditadura militar que toma o país há décadas.
Calma: o caso brasileiro será descrito.
Fatores – a fome é um risco iminente. Há os caprichos
climáticos e geológicos, e há os humanos, como os sistemas políticos. Nesse
caso há dois países que compartilham um surrealismo sociopolítico erroneamente
taxado de comunista.
Coreia
do Norte e Turcomenistão-
têm regime dinástico absolutista e despótico. Os governantes opulentos
desprezam as necessidades de seus povos geralmente subnutridos e sem acesso a
serviços públicos essenciais.
Relatos
de visitantes apontam também liberdades tão tolhidas que qualquer coisa fora da
curva é punida com trabalho forçado ou com a morte. A religiosidade turcomena é
liberada, mas a norte-coreana é a adoração à dinastia Kim.
O
melhor da pobre agricultura norte-coreana para nas mesas da elite e da família
governante. Dejetos humanos viram fertilizantes. Mas, calma, devemos considerar
outro fator importante: as sanções econômicas internacionais.
Sanções– afetam países de governos opostos aos EUA. A
alegação relativa à Coreia do Norte é na política nuclear e aos bens de luxo – mas
o prejuízo só recai nas classes populares, segundo as testemunhas.
Alguns
países, entre eles o Brasil, exportam luxos para os governantes e seus bajuladores. Nos dois países
há estátuas gigantes das famílias dos respectivos líderes. Os norte-coreanos
são obrigados a assistir aos desfiles militares exibindo mísseis nucleares.
Agora, sim, vamos falar do caso brasileiro.
Holodomor
brasileiro – o Brasil conheceu o seu Holodomor.
Foi a grande fome sertaneja de 1872-75, no semiárido nordestino. As então províncias da Bahia, Ceará e Pernambuco foram as mais afetadas.
Ele
decorreu da seca extrema ocorrida entre 1872 e 75, que secou mananciais e matou gado, lavouras
e gente, forçando uma migração massiva em todas as então províncias, mas principalmente as supracitadas.
Salvador,
Fortaleza e Recife foram os principais destinos dos migrantes, que ficaram nas
ruas e incomodaram as elites que sacudiram os políticos locais. D. Pedro II foi
acionado, e teve a ideia de construir açudes e poços, sem saber que inauguraria o que conheceríamos mais tarde como indústria da seca.
Enviou
uma equipe científica liderada pelo engenheiro Ernesto Lassance Cunha para
estudar os solos locais. Governadores criaram campos de trabalho
enviando comida e água. Mas o objetivo então falhou: a água freática era
salobra.
Os governadores
então abandonaram os sertanejos à própria sorte e com fome. Novas massas
migratórias se formaram, e novas mortes ocorreram, totalizando-se em até 400
mil pessoas. Sim, você não leu errado: morreram de fome e sede 400 mil sertanejos. Um autêntico holodomor!
Enfim, veio o açude- o 1º açude foi Cedro.
Surgiu na República (1890), terminando em 1906, em Quixadá, sertão cearense.
Doce sabor da ironia: ele foi projetado por... Lassance Cunha, quando daquela
tragédia.
Por
ser muito grande, seu enchimento só foi completo em 1924-5, depois em 1974-5 e,
enfim, em 1986-9, com chuvas volumosas. Daí, Cedro impulsionou a construção de
açudes posteriores – e a continuação da política da seca, que veríamos por muito tempo.
A
nova indústria da seca – embora
a tragédia de 1872-5 não tenha se repetido, novos episódios de seca se
repetiram, desafiando o preparo de seguidos governos para enfrentar o flagelo
da fome – e novo êxodo nos anos 1950-80.
O
Sudeste industrial atraiu milhares de nordestinos. A maioria se empregou e se
fixou nas favelas, onde impuseram seus sotaques, sabores e festas, alvos tanto
de xenofobia local quanto de turistas. Os militares queriam conter o êxodo.
Vieram
as frentes de trabalho no sertão com comida e água fornecida em
caminhões-pipa. Novos açudes e poços surgiram. Mas o país continuou no mapa
global da fome desafiando as competências políticas.
Da
Bolsa-Escola ao PAC – para
combater a pobreza extrema e o trabalho infantil no interior, a era FHC criou o
Bolsa-Escola, fonte de renda mínima depois transformada pelo petismo no
aperfeiçoado e ampliado Bolsa-Família.
O
petismo criou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que
viabilizou a transposição do Velho Chico e a construção de cisternas para
armazenar água de chuva, substituindo os caminhões-pipa, por sua vez caros por conta do gasto com combustível, e de disponibilidade limitada.
As cisternas
residenciais têm garantido água aos locais. A transposição levou água mais
longe possibilitando a produção rural. Mas, não foi tudo 100% terminado – o que levaria à vulnerabilidade ao desmonte das políticas públicas a partir de 2019.
Era
bolsonarista- o
desmonte foi ideológico, mas não total. Com políticos locais, Bolsonaro
inaugurou o último ramo de transposição, gerando memes nas redes: não fosse o
petismo, a obra não existiria.
Dadas
as generosas chuvas da La Niña no sertão nordestino, o bolsonarismo impôs a
fome por políticas sujas que empobreceram e pioraram a disponibilidade
alimentar jogando 55% dos brasileiros em insegurança alimentar de profundidade variável.
A
volta de Lula em 2022 significou para os brasileiros o voto de sobrevivência,
dada a combinação de políticas sociais amplificadas e de infraestrutura, a
despeito do impacto ambiental destas últimas.
Fria
análise final – o
significado do termo Holodomor varreu e varre o mundo. E o que concorre para a
sua existência varia com o caso. E a história nos revela que o caso ucraniano
foi muito afim ao daqui.
Não
houve política genocida: a fome ucraniana foi combatida durante o stalinismo. Assim
como com a grande fome irlandesa do século XIX, o Holodomor foi ligado a
seguidos invernos rigorosos de uma super La Niña.
Assim como não houve intentos políticos nos eventos pretéritos já mencionados. Hoje se sabe que o clima foi o maior motivador, seja como causa primária ligada aos fenômenos La Niña e El Niño, ou por atividade vulcânica, como já comprovado em análise de lavas indonésias datadas do período 535-36 d.C.
O mesmo fator climático se desvela no Holodomor ucraniano. A
História nos revela que esse evento não veio de política genocida,
por ele ter sido combatido justamente no stalinismo soviético. Ou seja, o regime cuja mão que ferrou opositores
políticos foi a mesma que criou e implantou serviços públicos essenciais gratuitos a
todos.
Essa
política foi assimilada pelo Ocidente democrático burguês para criar a educação pública que combateu não só o analfabetismo em massa, como combateu o nazifascismo, bem como as campanhas de vacinação em massa contra
epidemias diversas (como varíola e meningite), e a criação do SUS no Brasil.
Hoje vemos o avanço da nova extrema-direita no mundo e no Brasil, e, com ela, o anarcocapitalismo, a versão mais desregrada e profunda do capitalismo, que aprofunda os abismos sociais e a má distribuição de alimentos pelo mundo. Veremos à frente mais um Holodomor além dos que já conhecemos? Quem viver, verá.
Para saber mais
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