terça-feira, 24 de setembro de 2024

ANÁLISE: Os outros Holodomores

 

         Os reveses ocorridos durante o regime soviético são alvos de muitas interpretações no debate público nas redes sociais e em canais do YouTube. Um dos reveses soviéticos mais debatidos é um episódio de fome após a 1ª guerra mundial.

            Holodomor – em ucraniano, significa “deixar morrer de fome”. Refere-se à mortandade por fome ocorrida após a grande depressão econômica de 1929-32. O tema tem sido usado para depreciar o sovietismo.
            Mas, Stalin teria matado os ucranianos de fome? E as outras fomes de massa pelo mundo? Vale um breve resumo de eventos antes e depois da Ucrânia.
            Idade Média europeia- a História nos revela que a vida na Europa medieval era difícil, supersticiosa e violenta, entre guerras, epidemias e fome. E só de fome há registros de dois grandes eventos conhecidos.
            O primeiro aconteceu em 535-6, se refletindo por mais tempo. O outro, nos anos 1300, reprisou o anterior por mais tempo e precedeu a grande peste. Milhares morreram de fome, mas o número ainda não é preciso.
            Grande Fome Irlandesa- aconteceu no século XIX, seguida de uma perda importante nas plantações de cereais, frutas e tubérculos (batata inglesa) e de gado. Milhares morreram famintos, o que forçou a emigração massiva para a América do Norte.
            E, coincidindo com o evento irlandês, o Brasil viveria a sua versão, tratada com detalhes mais adiante.
            Após a Ucrânia, outros Holodomores viriam, alguns com caráter permanente. Como a fome que assola países africanos e asiáticos, ocorrentes após a colonização europeia. E dois casos muito especiais.
            África- tem 1,3 bilhão de habitantes em 53 países. Desertos cobrem 1/3 do continente. O clima dominante é tropical subúmido a úmido. Em geral, os índices sociais são baixos. Vários países convivem com guerras civis de décadas. A fome é recorrente.
            Ao menos em parte, as mazelas vividas pelos africanos se relaciona à intensa espoliação dos riquíssimos recursos minerais e biológicos pelos colonizadores, o que só terminaria com as vitoriosas lutas por independência ocorridas a partir dos anos 1950.
            Mianmar- apresenta problemas muito similares aos dos países africanos. Mas, diferentemente da África, não há midiatização das mazelas que afetam as diferentes etnias que compõem a população desse país. O motivo maior é o regime de ditadura militar que toma o país há décadas.
            Calma: o caso brasileiro será descrito.

            Fatores – a fome é um risco iminente. Há os caprichos climáticos e geológicos, e há os humanos, como os sistemas políticos. Nesse caso há dois países que compartilham um surrealismo sociopolítico erroneamente taxado de comunista.
            Coreia do Norte e Turcomenistão- têm regime dinástico absolutista e despótico. Os governantes opulentos desprezam as necessidades de seus povos geralmente subnutridos e sem acesso a serviços públicos essenciais.
            Relatos de visitantes apontam também liberdades tão tolhidas que qualquer coisa fora da curva é punida com trabalho forçado ou com a morte. A religiosidade turcomena é liberada, mas a norte-coreana é a adoração à dinastia Kim.
            O melhor da pobre agricultura norte-coreana para nas mesas da elite e da família governante. Dejetos humanos viram fertilizantes. Mas, calma, devemos considerar outro fator importante: as sanções econômicas internacionais.
            Sanções– afetam países de governos opostos aos EUA. A alegação relativa à Coreia do Norte é na política nuclear e aos bens de luxo – mas o prejuízo só recai nas classes populares, segundo as testemunhas.
            Alguns países, entre eles o Brasil, exportam luxos para os governantes e seus bajuladores. Nos dois países há estátuas gigantes das famílias dos respectivos líderes. Os norte-coreanos são obrigados a assistir aos desfiles militares exibindo mísseis nucleares.
            Agora, sim, vamos falar do caso brasileiro.

            Holodomor brasileiro – o Brasil conheceu o seu Holodomor. Foi a grande fome sertaneja de 1872-75, no semiárido nordestino. As então províncias da Bahia, Ceará e Pernambuco foram as mais afetadas.
            Ele decorreu da seca extrema ocorrida entre 1872 e 75, que secou mananciais e matou gado, lavouras e gente, forçando uma migração massiva em todas as então províncias, mas principalmente as supracitadas.
            Salvador, Fortaleza e Recife foram os principais destinos dos migrantes, que ficaram nas ruas e incomodaram as elites que sacudiram os políticos locais. D. Pedro II foi acionado, e teve a ideia de construir açudes e poços, sem saber que inauguraria o que conheceríamos mais tarde como indústria da seca.
            Enviou uma equipe científica liderada pelo engenheiro Ernesto Lassance Cunha para estudar os solos locais. Governadores criaram campos de trabalho enviando comida e água. Mas o objetivo então falhou: a água freática era salobra.
            Os governadores então abandonaram os sertanejos à própria sorte e com fome. Novas massas migratórias se formaram, e novas mortes ocorreram, totalizando-se em até 400 mil pessoas. Sim, você não leu errado: morreram de fome e sede 400 mil sertanejos. Um autêntico holodomor!
            Enfim, veio o açude- o 1º açude foi Cedro. Surgiu na República (1890), terminando em 1906, em Quixadá, sertão cearense. Doce sabor da ironia: ele foi projetado por... Lassance Cunha, quando daquela tragédia.
            Por ser muito grande, seu enchimento só foi completo em 1924-5, depois em 1974-5 e, enfim, em 1986-9, com chuvas volumosas. Daí, Cedro impulsionou a construção de açudes posteriores – e a continuação da política da seca, que veríamos por muito tempo.

            A nova indústria da seca – embora a tragédia de 1872-5 não tenha se repetido, novos episódios de seca se repetiram, desafiando o preparo de seguidos governos para enfrentar o flagelo da fome – e novo êxodo nos anos 1950-80.
            O Sudeste industrial atraiu milhares de nordestinos. A maioria se empregou e se fixou nas favelas, onde impuseram seus sotaques, sabores e festas, alvos tanto de xenofobia local quanto de turistas. Os militares queriam conter o êxodo.
            Vieram as frentes de trabalho no sertão com comida e água fornecida em caminhões-pipa. Novos açudes e poços surgiram. Mas o país continuou no mapa global da fome desafiando as competências políticas.
            Da Bolsa-Escola ao PAC – para combater a pobreza extrema e o trabalho infantil no interior, a era FHC criou o Bolsa-Escola, fonte de renda mínima depois transformada pelo petismo no aperfeiçoado e ampliado Bolsa-Família.
            O petismo criou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que viabilizou a transposição do Velho Chico e a construção de cisternas para armazenar água de chuva, substituindo os caminhões-pipa, por sua vez caros por conta do gasto com combustível, e de disponibilidade limitada.
            As cisternas residenciais têm garantido água aos locais. A transposição levou água mais longe possibilitando a produção rural. Mas, não foi tudo 100% terminado – o que levaria à vulnerabilidade ao desmonte das políticas públicas a partir de 2019.
            Era bolsonarista- o desmonte foi ideológico, mas não total. Com políticos locais, Bolsonaro inaugurou o último ramo de transposição, gerando memes nas redes: não fosse o petismo, a obra não existiria.
            Dadas as generosas chuvas da La Niña no sertão nordestino, o bolsonarismo impôs a fome por políticas sujas que empobreceram e pioraram a disponibilidade alimentar jogando 55% dos brasileiros em insegurança alimentar de profundidade variável.
            A volta de Lula em 2022 significou para os brasileiros o voto de sobrevivência, dada a combinação de políticas sociais amplificadas e de infraestrutura, a despeito do impacto ambiental destas últimas.

            Fria análise final – o significado do termo Holodomor varreu e varre o mundo. E o que concorre para a sua existência varia com o caso. E a história nos revela que o caso ucraniano foi muito afim ao daqui.
            Não houve política genocida: a fome ucraniana foi combatida durante o stalinismo. Assim como com a grande fome irlandesa do século XIX, o Holodomor foi ligado a seguidos invernos rigorosos de uma super La Niña.
            Assim como não houve intentos políticos nos eventos pretéritos já mencionados. Hoje se sabe que o clima foi o maior motivador, seja como causa primária ligada aos fenômenos La Niña e El Niño, ou por atividade vulcânica, como já comprovado em análise de lavas indonésias datadas do período 535-36 d.C.
            O mesmo fator climático se desvela no Holodomor ucraniano. A História nos revela que esse evento não veio de política genocida, por ele ter sido combatido justamente no stalinismo soviético. Ou seja, o regime cuja mão que ferrou opositores políticos foi a mesma que criou e implantou serviços públicos essenciais gratuitos a todos.
            Essa política foi assimilada pelo Ocidente democrático burguês para criar a educação pública que combateu não só o analfabetismo em massa, como combateu o nazifascismo, bem como as campanhas de vacinação em massa contra epidemias diversas (como varíola e meningite), e a criação do SUS no Brasil.
            Hoje vemos o avanço da nova extrema-direita no mundo e no Brasil, e, com ela, o anarcocapitalismo, a versão mais desregrada e profunda do capitalismo, que aprofunda os abismos sociais e a má distribuição de alimentos pelo mundo. Veremos à frente mais um Holodomor além dos que já conhecemos? Quem viver, verá.

Para saber mais
-----
            



            


            















Nenhum comentário:

Postar um comentário

CURTAS 98 - ANÁLISES (Brasil- Congresso)

  A GUERRA POVO X CONGRESSO                     A derrota inicial do decreto do IOF do governo federal pelo STF foi silenciosamente comemo...