Especial Saúde Pública
Brasília,
2024: enquanto o Ministério da Saúde comemorou os 34 anos
da materialização do SUS e 36 anos da previsão constitucional, os servidores da
saúde – em especial na saúde federal – travam contra o governo uma batalha que passou
o batido tema salarial ainda insistido na mídia.
Por
conta disso, a mídia deixa de informar à patuleia explicações certas sobre a
natureza universalista do nosso sistema de saúde pública. Ela se limita a expor
os problemas com notas veladamente discriminatórias contra os servidores
estáveis.
Vale
frisar que, dentro desse significado profundo, a nossa saúde pública – cuja
sobrevivência em tempos mercantilistas é um exemplo ao mundo – tem uma história
tão interessante quanto inspiradora.
Memória
nossa – promulgada em 5 de outubro
de 1988, a Constituição Federal previu a consolidação da democracia por meio da
diversidade de políticas públicas de caráter universal, entre elas a fundação de
um sistema federal de saúde tão amplo quanto capaz de atender a todos, por meio
de lei própria.
Em
1990, o presidente Collor sancionou a Lei 8080/1990, que funda o Sistema Único
de Saúde (SUS), e o decreto 99.350/1990 do Instituto Nacional de Seguridade Social
(INSS) que sepulta de vez o Instituto Nacional de Assistência Médica da
Previdência Social (INAMPS).
Os dois
dispositivos legais citados fundamentam as respectivas instituições como entes
independentes entre si, mas que compartilham uma natureza abrangente e universalista
nos direitos de assistência à saúde e aos benefícios financeiros.
Considerando-se
o que já conhecemos daquele governo, essas duas políticas públicas foram as
suas pérolas. Afinal, exceto um exemplo inominável no pós-ditadura, todos os governos
tiveram não só falhas e erros grosseiros, tiveram também acertos.
Como
sistema público independente, o SUS não só concretizou a previsão constitucional,
como favoreceu de imediato a substituição do antigo INAMPS (que juntava atenção
médica e previdência) pelo atual INSS, de forma igualmente ampla.
Mesmo
aos trancos e barrancos, a universalidade do SUS pode ser compreendida em dois
sentidos: o da abrangência de especialidades médicas e níveis de atenção
(primária, secundária e terciária, respeitadas as singularidades locais); e o do social.
No sentido da abrangência, todas as especialidades médicas são contempladas. A atenção é
primária (atuação preventiva e educativa, em postos municipais), secundária (em
UPAs e HPS, incluso Samu) e terciária (alta complexidade, área hospitalar).
No
sentido social, a antiga seletividade se perde. Por lei, o SUS deve acolher
todos, independentemente de classe social, emprego/renda, raça/cor,
gênero/sexualidade, procedência, etc. Discriminações ocorrentes são de
funcionários e não do SUS.
Claro
que o SUS carrega velhos problemas. Carências materiais, estruturais e de
pessoal; eternidade de espera e longas filas. Essa velha crise, alvo de novas
reportagens espetaculares, não importa o governo. Mesmo assim, ele é uma
revolução.
Consequências
positivas – a despeito do tamanho do investimento público, a criação do SUS acabou
com a antiga seleção de que só contribuintes da previdência e seus dependentes
diretos tinham acesso à saúde pública. Quem não contribuía era excluído do direito, tornando-se mais
vulneráveis a adoecimentos diversos.
Esse
critério excludente mantinha altos os índices de doenças hoje evitáveis e suas sequelas
ou letalidade, com expectativa de vida equivalente à de países mais pobres. A
vacinação em massa para enfrentar a letal epidemia de meningite veio da pressão
internacional diante da importância da infecção.
Por diversificar a atenção, o SUS surgiu unindo saúde e educação, num modus operandi de prevenção e de
cura. Assim, as antigas doenças antes normalizadas pelo povo por insuficiência
de vaconas e outras medidas profiláticas foram arrefecidas aos poucos.
Prevenção- antes, as campanhas de vacinação vinham durante a
ocorrência de surtos epidêmicos ou locais. Foi assim a vacinação BCG contra
surtos de tuberculose em recém-natos (obrigatória até hoje), contra o sarampo e também a letal meningite¹, cuja epidemia ocorreu nos anos 1970.
Culminado
pelo simbólico Zé Gotinha nascido da campanha contra a pólio, o SUS fez do
Brasil a vitrine internacional da vacinação em massa, ante qualquer emergência
global divulgada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), criada em 1969.
Foi
por esse caminho múltiplo de prevenção e tratamento que o SUS se diferenciou
das antigas políticas de saúde pública ao viabilizar uma política universal de
saúde pública e tornar o Brasil um exemplo internacional.
Mas,
por incrível que pareça, o Brasil não é o pioneiro em saúde pública desse
tamanho. Onde e quando se iniciou a primeira política pública para todos, ainda mantido e gerido pelo Estado?
O
pioneirismo soviético – mais
do que as guerras anteriores, a Primeira Guerra Mundial deixou um rastro imenso
de ruínas materiais. E, como em qualquer guerra na história das civilizações, o
fato também trouxe miséria, fome e surtos infecciosos relevantes como tuberculose, tifo, cólera, peste bubônica e outras, tão comuns antigamente.
Algumas
dessas doenças citadas foram especiais na época. Além do tifo tão ocorrente em
guerras, se destacaram então a temida tuberculose, e depois, a pandemia de gripe
espanhola (1918-20), virose variante que matou entre 50 e 80 milhões (dado ainda
impreciso), ou 3 a 4% da população global de então.
Moscou, outono de 1917: na reta final da guerra, a Rússia vivia uma tempestade sociopolítica em que fome e miséria contrastavam com a opulência da família czarista Romanov. Em outubro, o palácio real foi invadido e todo mundo foi fuzilado. O czarismo deu lugar à Revolução bolchevique que criou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS.
O
líder Vladimir Ilyich Ulianov (Lênin, 1917-24) assumiu o poder e instaurou políticas
públicas visando findar os flagelos sociais vigentes, recuperar cidades
arruinadas no pós-guerra e criar uma política de enfrentamento às doenças infectocontagiosas
então incuráveis e frequentemente letais.
Fazendas coletivas para minar a fome; escolas em toda parte contra o analfabetismo; fábricas e outros ramos para empregar; e universidades para estudar, pesquisar e desenvolver. Mas faltava algo: uma política integralista e ampla de saúde
pública. O problema era como planejar e criar.
A formação advocatícia não inibiu a percepção política de Lênin sobre saúde. Ele soube do Modelo
Bismarck alemão (1883), financiado por empregadores e empregados, e da Lei
do Seguro Nacional desenvolvida no Reino Unido (1911), este último um precursor
do nosso INAMPS. Mas os criticava em sua limitação.
Lênin percebeu que eles excluíam desempregados e inaptos ao trabalho, que somavam as maiorias populacionais, e alguns poderiam transmitir doenças. Já bastava ver 10% dos jovens militares russos com tuberculose. Por isso, ele quis criar um modelo amplo,
eficaz e universal de saúde pública.
Modelo
Semashko- a
universalidade era apontada por Lênin como princípio essencial da Revolução, a ser aplicado em toda sorte de ofertas públicas à população. Portanto,
a saúde não devia ser mais privada e nem precisar mais da caridade religiosa para atender à maioria vulnerável.
Início- antes de 1920, o governo decretou que todos os empregadores custeassem assistência médica e licença maternidade dos funcionários. Em seguida criou um vasto sistema de saneamento e água potável para todas as moradias, sedes de trabalho, hospitais, escolas, fazendas e instituições públicas.
Em
1918 nasceu o Comissariado de Saúde Pública, o pai do Ministério da
Saúde, gerido até 1930 pelo médico Nicolai Semashko, da Academia de Ciências
Médicas. Ele foi imbuído de planejar e criar um modelo eficiente e eficaz de
saúde pública de graça, amplo e para todos: o universal Modelo Semashko.
Em
1920 surgiram “resorts de saúde” para trabalhadores, juntando assistência e recreação. O maior foi no antigo palácio de veraneio do czar Nicolau II.
Farmácias em geral e indústrias de empresas estrangeiras foram nacionalizadas,
e institutos de pesquisa biomédica surgiram para a criação de novos remédios.
O
sistema fez com que o propósito da nacionalização transcendesse limites político ideológicos.
A salubridade dos locais de trabalho era essencial para garantir o bem-estar dos
trabalhadores. O nível obtido era simples em comparação com o de hoje, mas foi inovador
na época.
Expansão- pesar da instabilidade política que terminou com a
prisão e depois isolamento e morte de Vladmir Lênin, a era mão de ferro de Josef
Stalin (1924-53) deu continuidade ao sistema, mesmo após dr. Semashko sair do Comissariado
de Saúde Pública.
Aliás,
o que Lênin não terminou, Stalin completou e finalizou em seus longos 29 anos
de governo. Ele aperfeiçoou a universalização dos serviços públicos em geral e
até na política ambiental, apesar do investimento em energia fóssil e nuclear causar
alguns desastres grotescos.
No
stalinismo, o sistema Semashko de saúde se tornou especializado em medicina
preventiva e diagnóstica. Sua rede foi segmentada desde policlínicas de bairro,
estações de primeiros-socorros a grandes hospitais especializados, com atenção a
todos.
Isso revela que Stalin não foi somente aquele famoso tirano que fazia opositores pagar com a vida ou serem condenados a trabalhos forçados em campos siberianos remotos.
Havia
uma rede de dispensários distritais (estabelecimentos beneficentes) de atenção complementar,
em casos de saúde mental e/ou de alcoolismo, tradicional problema de saúde pública
local. A rede hospitalar chagou a mais de 2000 unidades e centenas de centros bacteriológicos
e de produção de vacinas e soros.
O modelo
fez da URSS o primeiro país do mundo a adotar as campanhas obrigatórias de
vacinação em massa. Quem se recusava era proibido de atuar no serviço público
ou de passar quarentena em casa em momentos de surtos. Check-ups anuais eram
obrigatórios.
Consequências- todos têm consciência de que o investimento público
para um sistema universal que abrangesse toda a URSS, como sonhou Lênin, foi
simplesmente enorme. Mas é impossível não reconhecer o sistema Semasho como inovador
numa época tão difícil.
O sistema
fez com que a URSS tivesse quase total autossuficiência da produção e consumo
de medicamentos, só não alcançando a totalidade devido à alta demanda em
concentrados de população e à grande extensão territorial do país (a Rússia
atual ainda é o país mais extenso). Mesmo assim, eles davam um jeito para todos.
A
estrutura do sistema e a eficiência na obtenção de fármacos foram essenciais na
redução dos índices de letalidade no país, numa época em que os demais países os
números eram ainda elevados devido à escassez de antibióticos e de vacinação em
massa, itens importantes na mitigação de surtos e epidemias.
A duração
e a eficiência do sistema Semashko foram longas o suficiente para ser reconhecido
pelo mundo capitalista ainda nos anos 1930. Após a 2ª guerra, o modelo se
estendeu ao mundo socialista emergente, com Cuba sendo a referência atual
mantendo-o até hoje.
E não ficou só no mundo socialista.
Redenção
do capitalismo – nos
anos 1930, a Grã-Bretanha queria aperfeiçoar o seu limitado sistema de saúde. Em
co-autoria com John Adams Kingsbury, o gestor Arthur Newsholme elogiou o
sistema russo em 1933 no livro Red Medicine Socialized Health in Soviet
Russia.
No
livro, ele reconhece que a Rússia foi “a única nação do mundo que que se
comprometeu a configurar e operar uma organização completa para fornecer assistência
médica preventiva e curativa para cada homem, mulher e criança dentro de suas
fronteiras”. Arthur não esteve sozinho.
Também
defensor de um sistema amplo de saúde pública e autor do livro Medicine and
hrlath in Soviet Union, Henry Sigerist também enalteceu o sistema russo: “impressionado
pelo esforço honesto de uma nação inteira para garantir atenção médica a todos
em seu povo”.
Como
eram só elogios rasgados ao modelo russo, o governo do Reino Unido então substituiu
o antigo Seguro Nacional pelo Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido, pioneiro
na Europa ocidental. Mais acessível geograficamente, o modelo britânico foi
crucial para a criação do nosso SUS.
Por
trás do propósito universalizante da saúde pública, o sistema britânico abriu
portas para o Wellfare State (Estado de bem-estar social) no pós-2ª guerra
e, mais ainda, evitar a radicalização das classes proletárias por centrais
sindicais pró-soviéticas. Afinal, era a Guerra Fria clássica instalada.
Ocaso
e fim – como toda criação
humana, o sistema Semashko passou por alguns problemas pontuais ao longo dos
mais de 70 anos de URSS. Mas isso não impediu a constância de sua eficiência operacional
no atendimento médico à população.
Os primeiros
sinais de ocaso se deram, entretanto, a partir da abertura política (Glasnost)
e econômica (Perestroika) (de Mikhail Gorbachev (1985-1991). O
investimento público sofreu uma queda considerável, gerando as instabilidades
pontuais no sistema por penetração do setor privado.
Até
que, como nada é eterno, o modelo Semashko chegou ao seu fim – uma morte junto
à da URSS. Foi logo após a renúncia de Gorbachev, que passou a se dedicar ao
tratamento de uma longa doença na Criméia, onde tinha residência.
Mas,
assim como ocorreu com o sovietismo, o fim do modelo Samashko não foi num
estalar de dedos. Foi paulatino, na medida em que a iniciativa privada pouco a
pouco penetrou na vida soviética e se enraizou na cúpula administrativa do
sistema público.
A penetração
empresarial na gestão da saúde pública russa não começou em Moscou, e sim nas instituições
regionais, a partir da criação e assinatura, pelo governo russo, de lei de concessão
da gestão pública pela iniciativa privada. Fato muito elogiado pela mídia
tradicional brasileira à época.
A
midiatização momentânea surtiu efeito de mascarar a crise econômica severa que
atingiu o povo russo após a queda da URSS. A situação foi tão grave que gerações
mais velhas se manifestaram saudosas dos tempos soviéticos e do modelo de saúde
outrora reconhecido pelos capitalistas.
O
SUS na reflexão final- após
a tomada paulatina pela iniciativa privada, o sistema Semashko foi completamente
desmontado em 1991, após a saída de Gorbachev. Reconhecida legalmente a partir
daquele ano, a gestão privada na saúde pública segue na Rússia atual.
Esses
detalhes dos acontecimentos nos fazem refletir sobre a gestão atual do SUS. Os
servidores efetivos da saúde federal carregaram o orgulho de trabalharem num
sistema até então sob gestão exclusiva do Ministério da Saúde, ao testemunharem
a gestão agora privada das unidades regionais.
O recente
escândalo dos transplantes com órgãos de doadores com HIV nos remete aos tempos
pré-soviéticos em que a saúde era privada, sem resolver os índices terríveis de
letalidade por infecções graves, hoje curáveis com tratamento adequado e evitáveis
com vacinação.
Também reforça em como o status quo do mercado privado pode afrontar os princípios que regem os serviços públicos em geral, notadamente os de saúde e educação.
O fim
do modelo Semashko nos leva a refletir sobre a árdua e cansativa, mas ainda mais
necessária luta dos servidores pela sobrevivência do SUS público e 100% gratuito,
efetuado por profissionais comprovadamente qualificados e responsáveis.
Uma
gestão 100% pública não impede fatos irresponsáveis ocasionais. O mesmo pode
ter ocorrido no Semashko, ainda que a fonte não cite detalhes a respeito. Mas a
penetração privada nos poderes públicos em geral tem facilitado irresponsabilidades
administrativas.
Finaliza-se
este artigo – que não se propôs a puxar o saco do sovietismo, apenas apontar
uma história – com a reflexão final de que a sobrevida do SUS, sempre ameaçada
a cada sucateamento propositado para fins privatistas, merece a luta de cada
servidor, como aviso de que todos os governos têm a obrigação de sustenta-lo.
Nota da autoria
¹ hoje
um meme das redes sociais, a vacina só foi efetuada por pressão dos EUA, que
“deram” milhares de doses a mando da OMS.
Para saber mais
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