sexta-feira, 22 de novembro de 2024

ANÁLISE: VAT: de movimento social à marca registrada

 

            Há 1 mês atrás, o empresário do agro Ricardo Arantes disse, num podcast, que prevê “o fim da fábrica de peões”, pois “os filhos dos peões não querem mais aprender com os pais”. Culpou Lula por sua política de qualificação tecnológica para jovens.
            Quase em seguida, novo assunto esquentou Brasília. A deputada federal Erika Hilton (Psol-SP) se destacou de novo. Com raciocínio veloz e discurso eloquente, ela apresentou o texto de seu projeto de emenda constitucional (PEC) que propõe redução da jornada de trabalho, para debate.
            Ela salientou que o objetivo da PEC é reduzir a jornada para 4x3 (36h) ou o máximo 5x2 (40h) semanais sem afetar os salários, para melhorar a produtividade. “O Brasil tem o segundo maior índice de burnout porque não há descanso suficiente, a escala 6x1 é desumana”, explicou. Bastou para gerar um terremoto.

            Oposição e mídia – capitaneada pelos bolsonaristas, a oposição se posicionou com tamanho barulho discordando da proposta que o assunto ganhou mais visibilidade popular do que se imaginava. Graças aos muitos recortes em redes sociais.
            Um deles foi Marcos Feliciano. Misturando passagens bíblicas com a “dignidade do trabalho” e o também suposto nível de desenvolvimento alcançado pelo Japão, ele defendeu que “o brasileiro deve trabalhar até a exaustão para desenvolver o país”.
            Especialista em recortes com fake news nas redes sociais, Nikolas Ferreira tentou meter o tabu entre os seus seguidores, ressaltando o “valor bíblico” do trabalho duro e que a escala 6x1 é legítima. Mas não esperava o revés que viria.
            Foi taxado de hipócrita devido à ênfase entre a escala 3x4 e salários de R$ 44 mil + penduricalhos dos congressistas, e a escala 6x1 e salários médios de R$ 2 mil da patuleia em geral. Motivo: a maioria dos seguidores trabalha arduamente.
            Em paralelo, a imprensa noticiou o tema apontando os manifestos populares e uma cachoeira de análises críticas sobre possíveis impactos na economia de mercado. Érika foi entrevistada para explicar a sua PEC, mas outro nome roubou a cena.
            
            Gatilho carioca – o projeto de Erika foi inspirado por um texto de teor parecido, apresentado por um jovem estreante na carreira política no Rio de Janeiro, elegendo-se vereador na capital: Rick Azevedo, do Psol, partido com nomes definitivamente à esquerda.
            Estudante universitário conhecido pelo ativismo no universo acadêmico, Rick teve muitos votos de colegas e funcionários desse ambiente. Mesmo desconhecido no mundo da política, ele conseguiu a cadeira pela cota mínima de votos para o Psol.
            Antes da deputada explodir nas redes, agora com apoio até da direita, Rick projetou o assunto na Câmara de Vereadores a partir de movimento popular pelo descanso semanal aumentado. É o Vida Além do Trabalho–VAT, objetivo central deste artigo.
            Mas e se eu disser que o VAT também não é pioneiro no tema? Pois é: a jornada de trabalho tem uma história.

            Primórdios – a jornada de trabalho sempre vira notícia a cada estudo do IBGE, DIEESE¹ ou OIT² comparando as cargas periódicas em diferentes países. De fato, segundo o estudo mais recente, o Brasil ainda é o 4º país que mais trabalha no mundo.
            E já foi pior: até 1930, os proletários trabalhavam até 18h/dia – um combo de desnutrição, exaustão e longa exposição a agentes nocivos, facilitador de infecções e/ou doenças ocupacionais. Sindicatos reivindicaram menor jornada, sem terem resposta.
            Ela só veio na era Vargas (1930-45). A constituição de 1936 foi a primeira a prever uma lei trabalhista de sentido amplo sobre salários mínimos e jornadas máximas para diferentes profissões. E 7 anos depois, finalmente chega um decreto-lei.
            CLT- estádio São Januário, 1/5/1943: Vargas assina a Consolidação da Lei do Trabalho (CLT), que regulamenta direitos e deveres de empregados e patronais, cria o salário-mínimo, tipos de profissões e jornadas máximas. Outros direitos vieram depois.
            Com um púlpito no meio do campo de futebol, Vargas foi ovacionado pelo povo que lotou as arquibancadas. Foi uma cena populista perfeita, mas a patuleia se sentiu honrada – inclusive os que pereceram doentes, em lutas pretéritas.
            Enfraquecida pela reforma de 2017, que beneficiou a classe patronal em detrimento da trabalhadora, especialmente em litígios judiciais, a CLT resiste aos 81 anos, ainda garantindo direitos constitucionais pétreos – que os patrões não podem excluir.
            Embora algumas profissões tenham carga horária regulamentada para menos de 30 ou 40h/semana, alguns Estados fecham os olhos para sobrecargas patronais sobre os funcionários sem garantir recompensação salarial correspondente.

            VAT, do ativismo à marca – surgido inicialmente como pauta social legítima, o VAT ganhou importante espaço nos jornalões. As críticas iniciais à PEC de Erika viraram elogios após um jornalão afirmar que “o fim da escala 6x1 salva o capitalismo”. Surpreende: antes, a própria grande imprensa "previa" implicações negativas para a economia de mercado.
            Isso deu maior visibilidade à deputada federal e ao jovem eleito vereador, mas atraiu olhares críticos. Como o de Rui Costa Pimenta, líder do Partido da Causa Operária (PCO), autodeclarado de extrema-esquerda, convidado a falar num podcast sobre o assunto do momento.
            Segundo Rui, “o VAT é uma farsa capitalista”. A afirmação é estranha, mas compreensível, graças a um vídeo de Rick no Tik Tok convocando geral ir às ruas pelo VAT em apoio à PEC, mas “sem levar bandeira partidária”, para “evitar conflitos”.
            O que chama a atenção de Rui para a condição de “não levar bandeia partidária” é o vazamento de suposta informação, pela qual Rick teria registrado o VAT como marca de sua autoria exclusiva no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).

            Fria análise – a fala de Rick Azevedo parece mesmo condicionar um movimento apartidário, ao invés de suprapartidário. Neste último, bandeiras de diversos matizes ideológicos de mesmo espectro são normais nos movimentos sociais em geral.
            Entretanto, não é intenção deste artigo acusar Rick de fazer merchandising do VAT. Quanto ao condicionamento, a fala sempre revela a intenção do seu autor, mas decifrar qual é a intenção nem sempre é tão simples de se acertar.
            Já o suposto registro do VAT como marca pessoal do futuro vereador é considerada neste blog como especulação. A afirmação do líder do PCO não reflete obrigatoriamente a opinião da autoria do presente artigo. Mas a fala dele é, sim, legítima.
            
Só o templo dirá a verdadeira intenção de Rick e seu VAT. O que pretendem os parlamentares de direita – que agora se põem como favoráveis à PEC após críticas dos seguidores – ao apreciarem criticamente o texto apresentado pela deputada Erika.
            No mais, só nos resta torcer para que haja um final feliz para as classes proletárias e à esquerda de hoje.

Notas da autoria
¹ Departamento Intersindical de Estudos Estatísticos – seu método próprio revela as realidades profundas.
² Organização Internacional do Trabalho – entidade da ONU que reúne pesquisas das realidades trabalhistas nos países signatários e aponta irregularidades.

Para saber mais
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domingo, 17 de novembro de 2024

ANÁLISE: A inspiração soviética do SUS (Especial Saúde Pública)

 

Especial Saúde Pública

            Brasília, 2024: enquanto o Ministério da Saúde comemorou os 34 anos da materialização do SUS e 36 anos da previsão constitucional, os servidores da saúde – em especial na saúde federal – travam contra o governo uma batalha que passou o batido tema salarial ainda insistido na mídia.
            Por conta disso, a mídia deixa de informar à patuleia explicações certas sobre a natureza universalista do nosso sistema de saúde pública. Ela se limita a expor os problemas com notas veladamente discriminatórias contra os servidores estáveis.
            Vale frisar que, dentro desse significado profundo, a nossa saúde pública – cuja sobrevivência em tempos mercantilistas é um exemplo ao mundo – tem uma história tão interessante quanto inspiradora.
            
Memória nossa – promulgada em 5 de outubro de 1988, a Constituição Federal previu a consolidação da democracia por meio da diversidade de políticas públicas de caráter universal, entre elas a fundação de um sistema federal de saúde tão amplo quanto capaz de atender a todos, por meio de lei própria.
            Em 1990, o presidente Collor sancionou a Lei 8080/1990, que funda o Sistema Único de Saúde (SUS), e o decreto 99.350/1990 do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que sepulta de vez o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS).
            Os dois dispositivos legais citados fundamentam as respectivas instituições como entes independentes entre si, mas que compartilham uma natureza abrangente e universalista nos direitos de assistência à saúde e aos benefícios financeiros.
            Considerando-se o que já conhecemos daquele governo, essas duas políticas públicas foram as suas pérolas. Afinal, exceto um exemplo inominável no pós-ditadura, todos os governos tiveram não só falhas e erros grosseiros, tiveram também acertos.
            Como sistema público independente, o SUS não só concretizou a previsão constitucional, como favoreceu de imediato a substituição do antigo INAMPS (que juntava atenção médica e previdência) pelo atual INSS, de forma igualmente ampla.
            Mesmo aos trancos e barrancos, a universalidade do SUS pode ser compreendida em dois sentidos: o da abrangência de especialidades médicas e níveis de atenção (primária, secundária e terciária, respeitadas as singularidades locais); e o do social.
            No sentido da abrangência, todas as especialidades médicas são contempladas. A atenção é primária (atuação preventiva e educativa, em postos municipais), secundária (em UPAs e HPS, incluso Samu) e terciária (alta complexidade, área hospitalar).
            No sentido social, a antiga seletividade se perde. Por lei, o SUS deve acolher todos, independentemente de classe social, emprego/renda, raça/cor, gênero/sexualidade, procedência, etc. Discriminações ocorrentes são de funcionários e não do SUS.
            Claro que o SUS carrega velhos problemas. Carências materiais, estruturais e de pessoal; eternidade de espera e longas filas. Essa velha crise, alvo de novas reportagens espetaculares, não importa o governo. Mesmo assim, ele é uma revolução.

Consequências positivas – a despeito do tamanho do investimento público, a criação do SUS acabou com a antiga seleção de que só contribuintes da previdência e seus dependentes diretos tinham acesso à saúde pública. Quem não contribuía era excluído do direito, tornando-se mais vulneráveis a adoecimentos diversos.
            Esse critério excludente mantinha altos os índices de doenças hoje evitáveis e suas sequelas ou letalidade, com expectativa de vida equivalente à de países mais pobres. A vacinação em massa para enfrentar a letal epidemia de meningite veio da pressão internacional diante da importância da infecção.
            Por diversificar a atenção, o SUS surgiu unindo saúde e educação, num modus operandi de prevenção e de cura. Assim, as antigas doenças antes normalizadas pelo povo por insuficiência de vaconas e outras medidas profiláticas foram arrefecidas aos poucos.
            Prevenção- antes, as campanhas de vacinação vinham durante a ocorrência de surtos epidêmicos ou locais. Foi assim a vacinação BCG contra surtos de tuberculose em recém-natos (obrigatória até hoje), contra o sarampo e também a letal meningite¹, cuja epidemia ocorreu nos anos 1970.
            Culminado pelo simbólico Zé Gotinha nascido da campanha contra a pólio, o SUS fez do Brasil a vitrine internacional da vacinação em massa, ante qualquer emergência global divulgada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), criada em 1969.
            Foi por esse caminho múltiplo de prevenção e tratamento que o SUS se diferenciou das antigas políticas de saúde pública ao viabilizar uma política universal de saúde pública e tornar o Brasil um exemplo internacional.
            Mas, por incrível que pareça, o Brasil não é o pioneiro em saúde pública desse tamanho. Onde e quando se iniciou a primeira política pública para todos, ainda mantido e gerido pelo Estado?

O pioneirismo soviético – mais do que as guerras anteriores, a Primeira Guerra Mundial deixou um rastro imenso de ruínas materiais. E, como em qualquer guerra na história das civilizações, o fato também trouxe miséria, fome e surtos infecciosos relevantes como tuberculose, tifo, cólera, peste bubônica e outras, tão comuns antigamente.
            Algumas dessas doenças citadas foram especiais na época. Além do tifo tão ocorrente em guerras, se destacaram então a temida tuberculose, e depois, a pandemia de gripe espanhola (1918-20), virose variante que matou entre 50 e 80 milhões (dado ainda impreciso), ou 3 a 4% da população global de então.
            Moscou, outono de 1917: na reta final da guerra, a Rússia vivia uma tempestade sociopolítica em que fome e miséria contrastavam com a opulência da família czarista Romanov. Em outubro, o palácio real foi invadido e todo mundo foi fuzilado. O czarismo deu lugar à Revolução bolchevique que criou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS.
            O líder Vladimir Ilyich Ulianov (Lênin, 1917-24) assumiu o poder e instaurou políticas públicas visando findar os flagelos sociais vigentes, recuperar cidades arruinadas no pós-guerra e criar uma política de enfrentamento às doenças infectocontagiosas então incuráveis e frequentemente letais.
            Fazendas coletivas para minar a fome; escolas em toda parte contra o analfabetismo; fábricas e outros ramos para empregar; e universidades para estudar, pesquisar e desenvolver. Mas faltava algo: uma política integralista e ampla de saúde pública. O problema era como planejar e criar.
            A formação advocatícia não inibiu a percepção política de Lênin sobre saúde. Ele soube do Modelo Bismarck alemão (1883), financiado por empregadores e empregados, e da Lei do Seguro Nacional desenvolvida no Reino Unido (1911), este último um precursor do nosso INAMPS. Mas os criticava em sua limitação.
            Lênin percebeu que eles excluíam desempregados e inaptos ao trabalho, que somavam as maiorias populacionais, e alguns poderiam transmitir doenças. Já bastava ver 10% dos jovens militares russos com tuberculose. Por isso, ele quis criar um modelo amplo, eficaz e universal de saúde pública.

            Modelo Semashko- a universalidade era apontada por Lênin como princípio essencial da Revolução, a ser aplicado em toda sorte de ofertas públicas à população. Portanto, a saúde não devia ser mais privada e nem precisar mais da caridade religiosa para atender à maioria vulnerável.
            Início- antes de 1920, o governo decretou que todos os empregadores custeassem assistência médica e licença maternidade dos funcionários. Em seguida criou um vasto sistema de saneamento e água potável para todas as moradias, sedes de trabalho, hospitais, escolas, fazendas e instituições públicas.
            Em 1918 nasceu o Comissariado de Saúde Pública, o pai do Ministério da Saúde, gerido até 1930 pelo médico Nicolai Semashko, da Academia de Ciências Médicas. Ele foi imbuído de planejar e criar um modelo eficiente e eficaz de saúde pública de graça, amplo e para todos: o universal Modelo Semashko.
            Em 1920 surgiram “resorts de saúde” para trabalhadores, juntando assistência e recreação. O maior foi no antigo palácio de veraneio do czar Nicolau II. Farmácias em geral e indústrias de empresas estrangeiras foram nacionalizadas, e institutos de pesquisa biomédica surgiram para a criação de novos remédios.
            O sistema fez com que o propósito da nacionalização transcendesse limites político ideológicos. A salubridade dos locais de trabalho era essencial para garantir o bem-estar dos trabalhadores. O nível obtido era simples em comparação com o de hoje, mas foi inovador na época.
            Expansão- pesar da instabilidade política que terminou com a prisão e depois isolamento e morte de Vladmir Lênin, a era mão de ferro de Josef Stalin (1924-53) deu continuidade ao sistema, mesmo após dr. Semashko sair do Comissariado de Saúde Pública.
            Aliás, o que Lênin não terminou, Stalin completou e finalizou em seus longos 29 anos de governo. Ele aperfeiçoou a universalização dos serviços públicos em geral e até na política ambiental, apesar do investimento em energia fóssil e nuclear causar alguns desastres grotescos.
            No stalinismo, o sistema Semashko de saúde se tornou especializado em medicina preventiva e diagnóstica. Sua rede foi segmentada desde policlínicas de bairro, estações de primeiros-socorros a grandes hospitais especializados, com atenção a todos.
            Isso revela que Stalin não foi somente aquele famoso tirano que fazia opositores pagar com a vida ou serem condenados a trabalhos forçados em campos siberianos remotos.
            Havia uma rede de dispensários distritais (estabelecimentos beneficentes) de atenção complementar, em casos de saúde mental e/ou de alcoolismo, tradicional problema de saúde pública local. A rede hospitalar chagou a mais de 2000 unidades e centenas de centros bacteriológicos e de produção de vacinas e soros.
            O modelo fez da URSS o primeiro país do mundo a adotar as campanhas obrigatórias de vacinação em massa. Quem se recusava era proibido de atuar no serviço público ou de passar quarentena em casa em momentos de surtos. Check-ups anuais eram obrigatórios.
            Consequências- todos têm consciência de que o investimento público para um sistema universal que abrangesse toda a URSS, como sonhou Lênin, foi simplesmente enorme. Mas é impossível não reconhecer o sistema Semasho como inovador numa época tão difícil.
            O sistema fez com que a URSS tivesse quase total autossuficiência da produção e consumo de medicamentos, só não alcançando a totalidade devido à alta demanda em concentrados de população e à grande extensão territorial do país (a Rússia atual ainda é o país mais extenso). Mesmo assim, eles davam um jeito para todos.
            A estrutura do sistema e a eficiência na obtenção de fármacos foram essenciais na redução dos índices de letalidade no país, numa época em que os demais países os números eram ainda elevados devido à escassez de antibióticos e de vacinação em massa, itens importantes na mitigação de surtos e epidemias.
            A duração e a eficiência do sistema Semashko foram longas o suficiente para ser reconhecido pelo mundo capitalista ainda nos anos 1930. Após a 2ª guerra, o modelo se estendeu ao mundo socialista emergente, com Cuba sendo a referência atual mantendo-o até hoje.
            E não ficou só no mundo socialista.

Redenção do capitalismo – nos anos 1930, a Grã-Bretanha queria aperfeiçoar o seu limitado sistema de saúde. Em co-autoria com John Adams Kingsbury, o gestor Arthur Newsholme elogiou o sistema russo em 1933 no livro Red Medicine Socialized Health in Soviet Russia.
            No livro, ele reconhece que a Rússia foi “a única nação do mundo que que se comprometeu a configurar e operar uma organização completa para fornecer assistência médica preventiva e curativa para cada homem, mulher e criança dentro de suas fronteiras”. Arthur não esteve sozinho.
            Também defensor de um sistema amplo de saúde pública e autor do livro Medicine and hrlath in Soviet Union, Henry Sigerist também enalteceu o sistema russo: “impressionado pelo esforço honesto de uma nação inteira para garantir atenção médica a todos em seu povo”.
            Como eram só elogios rasgados ao modelo russo, o governo do Reino Unido então substituiu o antigo Seguro Nacional pelo Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido, pioneiro na Europa ocidental. Mais acessível geograficamente, o modelo britânico foi crucial para a criação do nosso SUS.
            Por trás do propósito universalizante da saúde pública, o sistema britânico abriu portas para o Wellfare State (Estado de bem-estar social) no pós-2ª guerra e, mais ainda, evitar a radicalização das classes proletárias por centrais sindicais pró-soviéticas. Afinal, era a Guerra Fria clássica instalada.

Ocaso e fim – como toda criação humana, o sistema Semashko passou por alguns problemas pontuais ao longo dos mais de 70 anos de URSS. Mas isso não impediu a constância de sua eficiência operacional no atendimento médico à população.
            Os primeiros sinais de ocaso se deram, entretanto, a partir da abertura política (Glasnost) e econômica (Perestroika) (de Mikhail Gorbachev (1985-1991). O investimento público sofreu uma queda considerável, gerando as instabilidades pontuais no sistema por penetração do setor privado.
            Até que, como nada é eterno, o modelo Semashko chegou ao seu fim – uma morte junto à da URSS. Foi logo após a renúncia de Gorbachev, que passou a se dedicar ao tratamento de uma longa doença na Criméia, onde tinha residência.
            Mas, assim como ocorreu com o sovietismo, o fim do modelo Samashko não foi num estalar de dedos. Foi paulatino, na medida em que a iniciativa privada pouco a pouco penetrou na vida soviética e se enraizou na cúpula administrativa do sistema público.
            A penetração empresarial na gestão da saúde pública russa não começou em Moscou, e sim nas instituições regionais, a partir da criação e assinatura, pelo governo russo, de lei de concessão da gestão pública pela iniciativa privada. Fato muito elogiado pela mídia tradicional brasileira à época.
            A midiatização momentânea surtiu efeito de mascarar a crise econômica severa que atingiu o povo russo após a queda da URSS. A situação foi tão grave que gerações mais velhas se manifestaram saudosas dos tempos soviéticos e do modelo de saúde outrora reconhecido pelos capitalistas.
            
O SUS na reflexão final- após a tomada paulatina pela iniciativa privada, o sistema Semashko foi completamente desmontado em 1991, após a saída de Gorbachev. Reconhecida legalmente a partir daquele ano, a gestão privada na saúde pública segue na Rússia atual.
            Esses detalhes dos acontecimentos nos fazem refletir sobre a gestão atual do SUS. Os servidores efetivos da saúde federal carregaram o orgulho de trabalharem num sistema até então sob gestão exclusiva do Ministério da Saúde, ao testemunharem a gestão agora privada das unidades regionais.
            O recente escândalo dos transplantes com órgãos de doadores com HIV nos remete aos tempos pré-soviéticos em que a saúde era privada, sem resolver os índices terríveis de letalidade por infecções graves, hoje curáveis com tratamento adequado e evitáveis com vacinação.
            Também reforça em como o status quo do mercado privado pode afrontar os princípios que regem os serviços públicos em geral, notadamente os de saúde e educação.
            O fim do modelo Semashko nos leva a refletir sobre a árdua e cansativa, mas ainda mais necessária luta dos servidores pela sobrevivência do SUS público e 100% gratuito, efetuado por profissionais comprovadamente qualificados e responsáveis.
            Uma gestão 100% pública não impede fatos irresponsáveis ocasionais. O mesmo pode ter ocorrido no Semashko, ainda que a fonte não cite detalhes a respeito. Mas a penetração privada nos poderes públicos em geral tem facilitado irresponsabilidades administrativas.
            Finaliza-se este artigo – que não se propôs a puxar o saco do sovietismo, apenas apontar uma história – com a reflexão final de que a sobrevida do SUS, sempre ameaçada a cada sucateamento propositado para fins privatistas, merece a luta de cada servidor, como aviso de que todos os governos têm a obrigação de sustenta-lo.

Nota da autoria
¹ hoje um meme das redes sociais, a vacina só foi efetuada por pressão dos EUA, que “deram” milhares de doses a mando da OMS.

Para saber mais
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