Os racismos nossos de cada dia
No Brasil, manifestos esporádicos ocorriam quando violências contra certos cidadãos negros ocorrem e viram notícia. Mas, não há sequer notas resumidas sobre as violações rotineiras ou mais sutis contra não brancos.
No Mato Grosso do Sul, uma mãe avisou ao PM que precisava comprar comida para para o filho autista de 3 anos. O PM a agrediu do nada e a mulher reagia em autodefesa. O brucutu foi contido pela colega.
Detalhe: apesar das críticas ao PM nas redes, não foi vista nota de protesto coletivo favorável à mulher, que está grávida. Será que é por ser branca? Bem...
O racismo brasileiro é notório e permanente a partir da violação preferencial do poder público sobre cidadãos pobres e não brancos, não importa os antecedentes e inocência destes. O objetivo deste artigo se debruça em mostrar esses detalhes.
-> Racismo nos EUA e Brasil: diferenças
Que nos países do Ocidente o racismo é uma característica notória, não se pode negar. Do Canadá à Terra de Fogo, da Escandinávia às ilhas mediterrâneas, e mesmo na África muito marcada pela colonização europeia, em todos há racismo.
Não poderia ser diferente no Brasil e EUA, que tiveram colonização com sistema escravista sobre africanos e seus descendentes nascidos longe da terra ancestral. Mas, há distinções em detalhes históricos.
O escravismo nos EUA se iniciou em 1526 através dos espanhóis, e acompanhou a progressão da expansão territorial. Foi abolida em 1865 pela 13ª Emenda Constitucional1, todavia durou como parceria clandestina de trabalho forçado com presos afro-americanos em fazendas do sudeste do país por quase 100 anos.
No século XIX surgiram nos EUA teorias de hierarquia racial2 que poriam africanos negros, nativos australianos e melanésios como inferiores, explicando os vergonhosos "zoológicos humanos" na Europa. Tal contexto construiu o racismo como conhecemos.
Iniciado após 1549, o escravismo brasileiro também absorveria teorias racistas, mas com acréscimo do elitismo: quanto mais escravo, mais rico. Um sistema relacional que reforçou ainda mais a hiperexploração escravista, abolida oficialmente em 1888 pela Lei Áurea. Mas ficaram fortes reflexos sociais.
A maioria dos ex-escravos ficou ao léu. Em terrenos baldios nas cidades fundaram as primeiras vilas e favelas. Os que ficaram nas fazendas viveram com os imigrantes europeus e asiáticos. O atual sistema de dois pesos e duas medidas sujeita os não brancos a discriminação em várias situações e ambientes sociais, médias salariais menores e mais violência.
Para se ter uma ideia, 63 mil jovens brasileiros são mortos por ano, mais do que nos países em guerra civil, e os negros têm 70% a mais de chances de morrer pelas forças repressivas3. Outro grupo muito visado é o indígena, em várias situações de violência: em 2019 foram mais de 230 assassinados.
O racismo nos EUA ainda reflete as teorias racistas no sistema étnico: o filho de um anglo-saxão com latina, por exemplo, será dado como latino, não importa a cor de pele. E latina é uma etnia tão desprezada quanto a afro por lá. No Brasil, é simplesmente mestiço.
O valor social do mestiço brasileiro está na cor de pele. Quanto mais claro, melhores impressões nas relações sociais, pela ideologia do branqueamento de origem colonial. Daí a bem vista mestiçagem com um branco. O mestiço de pele mais escura é mal visto ou "destinado" a posições sociais inferiores.
Aqui e lá, a imensa quantidade de negros cristãos se reflete numa forma simbólica de branqueamento. O que explica esse propósito é a demonização, por esses negros, das crenças de seus antepassados.
Vale ressaltar que, genericamente, os racismos no Brasil e EUA não são tão diferentes assim. O que os diferenciam são pormenores sutis já apontados.
-> Tipos de racismo: reflexões
O racismo não é uniforme. Ataca qualquer um e em várias formas e circunstâncias ele se manifesta. Há perguntas sobre racismo estrutural e reverso, por exemplo. Daí haver uma tipologia para classificar4 os racismos, a seguir.
Primário- praticado mais na força emocional, sem uma justificativa que o defina.
Ecológico ou ambiental- praticado contra grupos que defendem a terra natural de seus ancestrais. No exemplo brasileiro, ocorre contra indígenas e quilombolas.
Religioso- a demonização das crenças de viés afro ou indígena resulta deste tipo de racismo. Devido a confusões se evita mencioná-lo; todavia, expô-lo didaticamente é um mal necessário.
Individual- mais específico, se baseia em apontamento de traços, aparência ou vestuário da vítima. Em ambiente de trabalho é uma forma específica de assédio moral.
Cultural- praticado por um grupo cultural que se julga superior ao vitimado. Depreciar a cultura dos indígenas, chamá-los de indolentes, é uma forma de racismo cultural, assim como com a cultura afro.
De origem- deprecia a pessoa por sua origem: o urbano médio contra o colega do interior.
Institucional- praticado por empresas e instituições e estudado estatisticamente.
Estrutural- é o mais perigoso, por ser muito amplo e mais sutil, reflexo sócio histórico em costumes e falas banalizadas com o tempo. Se imiscui em situações que determinam alguns dos tipos supracitados.
A polêmica do estrutural reside em falas como 'denegrir' (enegrecer), 'coisa está preta', 'criado-mudo' (móvel), associação a funções servis ou banditismo, etc. Mesmo que as gerações atuais percam a maldade dos antepassados, movimentos negros têm tocado no tema e são respondido com acusação de patrulha ideológica. Mas, e a manutenção das dominações, não é patrulha ideológica? Para refletir.
As falas do presidente Bolsonaro, em entrevista no programa de Preta Gil há alguns anos, de que os filhos "não se casariam com negra porque foram muito bem educados" revela um caso notório de racismo institucional (associação de raça com falta de educação e cultura) e prática de injúria racial.
A relação do atual presidente com o deputado Hélio Negão é meramente utilitarista: o homem atua como seu guarda-costas ou algo como dama de companhia. Na melhor das hipóteses, pela identidade de militar: Hélio é militar da reserva.
Um negro é taxado de racista reverso quando 'discrimina' um branco. Devido à abolição mais ou menos recente, os reflexos sociais já expostos, a falta de conscientização educativa e a seletividade institucional, classificar tal reação à opressão como racista se torna um erro grosseiro.
Mas também é errado deixar tocar essa reação. É preciso trabalhar a consciência coletiva, na infância, de que somos todos um, na origem africana de toda a humanidade. É desafiador e de efeito retardado, mas precioso.
Todos os racismos, em suas formas e circunstâncias, são intolerâncias, portanto, são violências, e são crimes por lei. E as reações são vinganças, pratos frios passíveis de se voltar ao seu emissor. As notícias são mais do que suficientes para mostrar que os racismos nossos de cada dia são desnecessários e ruins. Até para quem os pratica.
----
Notas da autoria: (números aparecem em negrito ao lado de palavra no texto)
1. Emenda constitucional dos EUA que criminalizou a escravidão, mas prevê servidão involuntária como pena criminal alternativa.
2. Distorções sobre a teoria da evolução biológica de Charles Darwin. Estudos em genética de populações derrubam de vez os fundamentos das teorias racistas.
3. Tal estatística acima é só um exemplo para ilustrar o problema.
4. Há acréscimos, para definir situações específicas.
Fonte das imagens: Google. (1ª: cidadão negro reprimido por policiais na Bahia; 2ª: bandeira dos EUA e Brasil fundidas)
Para saber mais:
- https://mundoeducacao.uol.com.br/sociologia/racismo-no-brasil.htm
- https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/07/20/implantacao-efetiva-de-estatuto-da-igualdade-racial-ainda-e-desafio-no-brasil
- https://www.youtube.com/watch?v=WMD6PFoUW2k (Paulo Ghiraldelli)
- https://www.youtube.com/watch?v=OEsl65eMxRs (Portal do José)
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Escravid%C3%A3o_nos_Estados_Unidos
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Racismo_no_Brasil
- http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=1723fad1c93e5c6c
- http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/o-racismo-em-tres-seculos-de-escravidao
- https://www.politize.com.br/racismo-como-e-estruturado/#:~:text=Racismo%20ecol%C3%B3gico%20(ou%20ambiental)%3A,por%20n%C3%BAmeros%2C%20dados%20e%20estat%C3%ADsticas.
- https://www.cut.org.br/noticias/violencia-policial-contra-jovens-negros-escancara-o-racismo-estrutural-no-brasil-f507
- https://www.brasildefato.com.br/2020/09/30/casos-de-violencia-contra-indigenas-aumentam-150-no-primeiro-ano-de-bolsonaro#:~:text=Em%202019%20foram%20registrados%20113,Viol%C3%AAncia%20Contra%20os%20Povos%20Ind%C3%ADgenas%E2%80%9D&text=Apesar%20de%20ser%20um%20pouco,2019%2C%20contra%20110%20em%202018.
Nenhum comentário:
Postar um comentário