C19 e o engano dos números
Após curto tempo de obediência à OMS, os brasileiros relaxaram por completo, atiçados por Bolsonaro, no momento mais crítico da pandemia. Aglomerados, eles assistem à notícia: a segunda onda de C19 chegou, e para valer.
Quase histéricos, alguns políticos bolsonaristas negam, mas não adianta. A C19 bate mais forte nas portas, se iniciando nos bairros mais nobres das cidades: a mídia já denuncia a falta de vagas de UTI em hospitais privados. Mas a galera popular já paga a conta: hospitais públicos lotados já anunciam o colapso. Agora o vírus mostra uma ferocidade antes ignorada, e sua velocidade de expansão é bem maior do que a capacidade de demanda dos hospitais.
Através da mídia, o mundo soube de uma nova virose humana que matou um homem em Wuhan, China, após contato com animais silvestres em um mercado. Houve novas mortes, mas ainda na mesma cidade.
Mas, o que realmente aconteceu para, em tão pouco tempo, ocorrer uma segunda onda de C19 no mundo? Ou não é uma segunda onda? Será que as estatísticas foram enganosas? Ou é outra coisa?
-> C19: resumo de uma história midiática
Houve alerta geral quando houve mais mortes na China e a OMS temeu contágio transnacional devido às viagens. Novas mortes além da China provaram que o vírus tem transmissão muito fácil, ampla e veloz.
Como as mídias se atentaram ao vírus como descoberta chinesa, o temor popular levou a uma nova dimensão da sinofobia1, originando teorias conspiratórias2 ainda virais na rede graças aos milhares de crédulos.
Com os adoecimentos e mortes pelo "vírus chinês" em outros países em velocidade recorde, a OMS declarou pandemia em fevereiro. E vieram os nomes: SARS-CoV-2 para o patógeno, e Covid19 para a doença3. Seria melhor se fosse o vírus Covid-2 e a patologia SARS-19, mas, enfim...
Para simplificar, a partir deste artigo o vírus será "Cov2" e a sua doença, "C19".
-> A história do C19 fora das mídias
É fato que a associação entre síndrome respiratória aguda grave (SARS) e o Cov2 foi descrita na China. É mérito, e não o contrário. Já a grande mídia não se dignou em falar sobre a história do vírus para o conhecimento público.
Ou seja, a mídia fez valer como verdade apenas o resumo de uma "primeira" ocorrência infecciosa pelo vírus em humanos na China.
A história da descoberta do Coronavírus é bem anterior à China. Remonta dos anos 1960, e tem uma mulher como protagonista. Pouco conhecida, mas de enorme valor para a história da virologia - e da infectologia.
Escocesa de família pobre, June Almeida (1930-2007) desde nova se destacou na microscopia e técnicas laboratoriais. Foi contratada aos 16 anos por laboratório especializado em alterações celulares patológicas. Mais tarde foi trabalhar num hospital em Londres, e depois foi ao Canadá, onde aprendeu a lidar com microscopia eletrônica (ME).
Na ME ela mostrou a que veio. Retornou ao hospital de Londres, onde desenvolveu um método com anticorpos para encontrar vírus, popular até hoje. Em 1964, analisando material de um menino gripado, identificou em fotos do ME não o Influenza, mas um esférico coberto de protuberâncias, e o batizou de Coronavírus. Em seu trabalho, apontou-o como agente infeccioso em humanos.
Sua descoberta foi rejeitada por uma revista científica, devido à qualidade baixa das fotografias do ME4 na época, talvez por confusão com o Influenza. Daí, June mergulhou em mergulhar na fotografia e foi reconhecida, posteriormente, pelas fotos de alta qualidade obtidas do vírus HIV e outros.
Em 2007, aos 77 anos, falece June Almeida, reconhecida virologista pelo brilhantismo autodidata que compensou a falta de diploma superior. Mas permanece vivo o legado da descoberta do Corona e de sua infecção em humanos. De um vírus para, hoje, uma uma família de mais de 30 tipos. E tudo graças a essa grande pesquisadora.
-> Reflexão: Brasil - incoerências e omissão do Ministério da Saúde
As estatísticas de toda doença são divulgadas diretamente pelos ministérios da saúde dos países ou pela imprensa, e acompanhados pela OMS. Com pandemias como o HIV e C19 não é diferente.
Por trás da fria neutralidade, os números dizem muita coisa que nos cabe decifrar. Assim como se sabe que doenças crônicas se ligam ao estilo de vida e/ou genética, as infecções também nos informam pelos números como cada povo e governo lida com os patógenos.
Muitos criticam a atenção atual ao Cov2. O motivo é ele ser uma "novidade" a expandir-se em escala e velocidade inauditas, e seu potencial letal ou de sequelas em recuperados. Controla-se o HIV pandêmico hoje graças à atenção dada a ele nos anos 1980. Agora é a vez da pandemia de C19.
Os dados oficiais somados globalmente estimam em mais de 56 milhões de infectados e mais de 1,6 milhão de mortes, em torno de 20% dessa soma nas Américas. O Brasil e os EUA são os epicentros da pandemia, juntando mais de 400 mil mortes e mais de 20 milhões de infectados.
No Brasil, a desconfiança de profissionais de saúde, gestores e população com os números é grande. Têm razão. Em abril, apenas 8% dos casos foram notificados, que certamente não melhorou com o MS5 militarizado, falhas nos sistemas do órgão, e o apagão no Amapá há mais de duas semanas.
Após um pico de mais de 1450 mortos/dia em época de alta até setembro, veio uma forte baixa a partir de outubro, chegando a 180 mortes no país em 24h. Todas as atividades econômicas reabriram e a popular indisciplina sanitária, que nunca cessou realmente, atinge seu ápice.
É incoerente a baixa estatística com tudo aberto e ampla displicência popular. A desconfiança com a subestimação desde a alta no meio do ano sinaliza suspeita de restrição ou omissão de contagem, sem considerar doentes tratados em casa e sem atendimento quando agravados, e mortos sem diagnóstico ou em casa.
Idade avançada e doenças crônicas são maiores riscos de C19 grave, mas entre os mortos brasileiros há uma importante parcela na faixa etária mais produtiva (25-50 anos). A displicência sozinha não explica isso: a maioria foi de classe trabalhadora ativa, indicando ter encarado um cotidiano de muitos contatos.
A afirmação explica também porque são enganosas ou mentirosas as motivações de Bolsonaro de que trabalhadores jovens não pegam C19 ou não adoecem gravemente se saírem às ruas, e a imunidade de rebanho, já desmascarada, mas ainda sustentada pelos bolsonaristas.
Agora é a vez da alta, já sentida no aumento de atendimentos cujos testes apontam aumento de casos positivos. Na Europa, após período de reabertura de atividades econômicas, a "segunda onda" surge mais agressiva, e no Brasil idem. Mas, o MS e as secretarias regionais se silenciam diante da visão do caos.
-> Reflexões finais
Com os dados acima, é mais fácil refletir e compreender sobre a história do Coronavírus e porque os bolsonaristas caem agora no descrédito eleitoral e os conspiradores passam vergonha na internet.
A descoberta do primeiro Corona por June Almeida em material humano abriu portas para mostrar, desde então, a necessidade de divulgar as descobertas relativas a essa família virótica pelos governos e mídias, para conhecimento público.
O não reconhecer do Corona de June à época impediu novos estudos que apontassem o seu potencial epidemiológico, infeccioso e letal. Não se sabe se o Cov2 pandêmico atual deriva diretamente ou de uma mutação anterior daquela cepa ignorada.
Embora não saibamos quantas espécies de Coronavírus sejam infectantes em humanos, um estudo em Manaus descobriu 4 tipos só no Brasil. Há outros Covs descobertos na Dinamarca, Reino Unido, um tipo no País de Gales, e outro na Colômbia. Todos humanos. Legados da pandemia.
Concentrados em campanhas de autopromoção, Bolsonaro e Trump expuseram o seu desprezo aos cuidados, próprios e dos populares, à promoção da saúde contra a pandemia. No caso de Trump, isso explica porque ele tanto nega a sua derrota eleitoral.
Bolsonaro é o maior culpado pela tragédia da C19 no país ao liderar a turba de pastores imprudentes e seu séquito de milicos e bolsominions. Evitável no início, a tragédia tomou a proporção atual graças à insensibilidade dele e do restante, metendo o Brasil numa vulnerabilidade jamais vista antes. Agora ele amarga a derrota eleitoral nos municípios.
Reitera-se, aqui, que a tragédia atual se revela como um dos instrumentos da sua política de genocídio. O negacionismo reforça a eficiência do Cov2 como instrumento de morte, que ainda contribui com outros, como a dissolução de direitos sociais e desvios volumosos de recursos para "salvar os bancos do pior".
É certo que essa segunda onda da C19 seja, na verdade, a retomada da primeira onda. Especialmente aqui, dado o péssimo comportamento geral já citado, em nome da economia. O Cov2 deixa de ser simples ente natural para ser meio de sustentação do capital via extermínio das classes populares e minorias.
Mas, a questão econômica é outra história. A mais importante para os brasileiros agora é saber como o MS vai se comportar: até quando seu silêncio durará perante o caos?
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Notas da autoria:
1. Aversão à China e seu povo. Com a pandemia, a sinofobia foi redimensionada numa "intenção" do governo chinês de disseminar o flagelo, segundo duas versões de teorias da conspiração explicadas a seguir.
2. ¹China "fabricou e liberou o vírus para que o mundo se curve ao comunismo"; ²Cientista dos EUA aponta o vírus como fruto de acidente laboratorial em Wuhan. Ambas comprovadamente falsas.
3. O nome técnico SARS-CoV-2 do vírus especifica patologia e espécie; e Covid19 à doença para fundir o patógeno e o ano de descrição fisiopatológica. (SARS = sigla inglesa para síndrome respiratória aguda grave).
4. Há dois tipos de ME: de transmissão ou MET (imagens atravessadas por feixes de elétrons, igual raio X), e de varredura ou MEV (de superfície do objeto), que pode ser convencional ou variantes (de transmissão, confocal). (será feito artigo sobre essa curiosidade com imagens de exemplo).
5. Ministério da Saúde, atualmente sob direção do general Eduardo Pazuello, sem qualificação em saúde.
Para saber mais:
- https://www.hc.ufu.br/noticia/descoberta-primeiro-coronavirus-humano-foi-gracas-mulher
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Microsc%C3%B3pio_eletr%C3%B4nico_de_transmiss%C3%A3o_convencional
- https://www.paho.org/pt/covid19
- https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/06/07/omisso-de-dados-de-covid-19-aumenta-a-desconfiana-internacional-sobre-bolsonaro.ghtml
- https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54478219
- https://www.rededorsaoluiz.com.br/instituto/idor/novidades/apenas-8-dos-casos-de-covid-19-sao-notificados-no-brasil
- https://www.poder360.com.br/coronavirus/em-meio-a-apagao-amapa-deixa-de-contar-novos-casos-de-covid-19/
- https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/11/13/ministerio-da-saude-diz-que-ha-indicios-de-que-a-pasta-tenha-sido-alvo-de-ataques-ciberneticos.ghtml
- https://www.brasildefato.com.br/2020/11/21/sem-energia-amapa-registra-aumento-de-250-novos-casos-de-covid-19
- https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/05/22/verificamos-estudo-60-mil-pessoas-espanha-ineficacia-quarentenas/
- https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/11/14/estudo-no-amazonas-descobre-4-linhagens-ineditas-do-coronavirus-no-pais.htm
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