sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Reflexão: os perigos da PEC 186


     Em meio à mixórdia envolvendo a prisão de um deputado bolsonarista após ofensas e otras coisitas más, ressurge a pressão pela renovação do auxílio emergencial (coronavoucher). O ministro da economia Paulo Guedes achava tal renovação uma "temeridade contra o teto dos gastos", justificando-se na falácia de "parcos recursos devido à pandemia".
     Com isso, Bolsonaro lançou a falácia de que "o Brasil está quebrado", para justificar, na prática, a péssima conduta de seu próprio governo, e também negar a continuidade do auxílio. Pretexto idiota, exceto nos sentidos político e ético. Com recursos acumulados em mais de R$ 2,1 trilhões em impostos recolhidos, o Brasil vai bem, e os grandes grupos transnacionais sorriem.
     Agora, Guedes lança a ideia: uma proposta de emenda da Constituição, para a renovação do coronavoucher em quatro quantias mensais de R$ 200 ou 300, para metade dos necessitados da fase anterior. É a PEC 186/2020. Apenas mais uma para por mais fogo no parquinho dos recursos públicos das já enfraquecidas áreas da educação e da saúde.

-> Ministério da Saúde (MS) e Ministério da Educação (MEC)
     
     De todos os ministérios, o da Saúde (MS) é o que mais demanda volume de recursos públicos, em virtude da dimensão de abrangência dos serviços de saúde pública pelo SUS, conforme princípios da Lei 8080/1990 (Lei do SUS), e na saúde suplementar (saúde privada).
     Dada a natureza centralizada e universalista do SUS, o MS tem o maior número de servidores, e presta contas em saúde pública em todo o país. Comumente a mídia da casa grande alega isso como a justificativa para o "rombo" nas contas públicas, uma mentira bem conhecida.
     No governo Bolsonaro, foi chefiado por dois médicos: Henrique Mandetta, privatista que aprendeu o valor do SUS na C19; e Nelson Teich, o breve, que se escafedeu após 28 dias. Após certo tempo sem ninguém, o general de intendência Eduardo Pazuello vira ministro, e cúmplice no genocídio da C19.
     Sua cadeira é uma das diletas do Centrão. Uma vantagem genérica é haver, no grupo, qualificados em saúde. Ser ministro da saúde é, para o Centrão, adquirir um relevante poder estratégico na administração de recursos e serviços. E muito dinheiro, claro.
     O outro ministério é o MEC, a segunda pasta em volume de recursos públicos para a sua estrutura complexa de serviços desde a educação infantil ao ensino superior, programas como os de incentivo ao ensino profissionalizante e inclusão de minorias étnicas e especiais na educação, e avaliação objetiva de estabelecimentos de ensino básico e superior, públicos e privados.
     Por conta de sua dimensão e estrutura, o MEC é também uma menina dos olhos do Centrão, que também tem parlamentares professores, para a ocupação de sua cadeira. A ocupação de ministérios é uma pauta cobrada pelo Centrão que bate de frente com o militarismo do presidente.
     O MEC foi palco de situações controversas e infelizes, como propostas esdrúxulas, fake news com universidades, cortes de recursos e exclusão do programa de inclusão, envolvendo os ex-ministros Ricardo Vélez e Abraham Weintraub. Hoje é ocupado por Milton Ribeiro, que deu novos cortes.
     
-> Enfim, a perigosa PEC 186/2020: reflexões finais

     Como mencionado no início, a proposta de emenda constitucional 186, segundo o ministro Paulo Guedes, tem como objetivo a "realocação" de recursos públicos da Educação e da Saúde para "cobrir o rombo fiscal" que poderia ser gerado com a liberação do auxílio emergencial.
     É pretexto, uma chantagem, como salienta com propriedade a especialista Maria Lúcia Fatorelli no Extra Classe de 25/2. Faz sentido: antes do fim do coronavoucher de R$ 600, Guedes já insistia que o salário dos servidores iria ser, na melhor das hipóteses, congelado. 
     Na reunião sinistra de 22/4/2020, cujo vídeo chegou ao STF por conta das ofensas de Weintraub (já tratado neste blog), Guedes foi claro que "no abraço coloco uma granada no bolso do inimigo: salário congelado até 2022". O inimigo em questão é, claramente, o servidor público, pintado como inimigo da nação pelo governo e pela grande mídia.
     Claro que então não estava em pauta o pretexto atual da PEC. Mas possivelmente houve outro, o do "programa" de treinamento de jovens com armas nas FFAA para depois, se quiserem, se integrar às milícias tão decantadas pela família Bolsonaro. Daí o congelamento então proposto1.
     Há possibilidade de, segundo se propõe, converter o corte em "confisco" de 25% dos salários dos servidores da saúde e da educação através dessa PEC. E, não bastando isso, um dos dispositivos mais temidos é a abolição do piso de recursos do MEC e do MS.
     O confisco salarial é a senha para outra cláusula contida na PEC 186: o calote ao piso da educação e da saúde. Típico em todos os países, esse piso é necessário ao funcionamento dos serviços essenciais e os salários. Vilipendiadas desde antes, educação e saúde correm sério risco de zerarem seus recursos e paralisarem - algo tão inédito quanto insano. 
     Como esclarece Fatorelli, a PEC 186 surge para institucionalizar o calote, que, como percebemos, ocorrerá quando bem entenderem governo e parlamento, sob chantagens injustificáveis, como a do auxílio. Nessa chantagem está o escabroso estratagema de retirar 25% de salários e carga horária dos servidores, para tapar o rombo.
     Outra sordidez: o confisco salarial é uma cláusula da PEC 32 (reforma administrativa). Notando má aceitação desta na íntegra, Paulo Guedes vai aos poucos, pelas beiradas do angu para, quando chegar ao cerne, a PEC 32 já terá sido assimilada pela maioria sem resistência da oposição.
     Ir por etapas é uma tática tão inteligente quanto insana: enrola a oposição a impedindo de encaixar as peças do quebra-cabeças em tempo curto e hábil, enquanto parte do parlamento lança mão de outros estratagemas como a PEC da impunidade, e o povo se atenta no BBB ou nas lives de Bolsonaro.

Fôlegos finais...
    Mas, o Congresso também tem outra preocupação urgente, votar a submarina PEC da imunidade2, elaborada enquanto a PF levava Daniel Silveira à prisão e o STF elabora decisões de novas prisões de parlamentares envolvidos em fake news e outros crimes antidemocráticos.
     A urgência se mostrou na votação relâmpago da PEC da imunidade. Por conta desta, o texto da 186 será provavelmente adiado, mais um além de outros ocorridos devido à sindemia de C19 e, claro, de mimos aos bancos, de quase R$ 2 trilhões só no ano passado. 
     Por outro lado, a PEC 186 enfrenta críticas de juristas. "Defender, no meio de uma pandemia, deste tamanho e dessa natureza, o desfinanciamento do SUS é uma cretinice. E claro, inconstitucional", disse Eloisa Machado, professora da FGV-Direito em São Paulo e coordenadora do Centro de Pesquisas Supremo em Pauta.
     Eloisa estendeu a dura crítica ao significado da PEC em jogar sobre as classes populares e os servidores públicos de baixo escalão (também populares) o alto preço a pagar em nome da chantagem pessoal e hipócrita de Guedes para fugir da questão fiscal e fornecer auxílio emergencial, que ele já considera "muito preocupante".
     Vale salientar que a PEC 55 (teto dos gastos) de 2018 substituiu a correspondência do piso como percentagem pelo total de gastos com recursos na educação e na saúde no ano anterior conforme a inflação oficial3 - o que mostra um subfinanciamento ainda pior do que as percentagens anteriores, respectivas em 4 e 5% do PIB (a inflação oficial girava em 2%, em média).
     O parágrafo acima já é suficiente para mostrar porque a PEC 55/2018, a "do fim do mundo", já veio como um grave erro fiscal e ético. E pior ainda será a aprovação da PEC 186/2020. Muito mais do que uma bagunça jurídica, é uma desumanidade psicopata dos grandes títeres: Lira, Pacheco, Bolsonaro e Guedes.
     A "PEC da morte" ou do "genocídio" não deve ser só adiada. Deve ser definitivamente esquecida, se os parlamentares almejarem serem reeleitos em 2022.

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Imagens: Google (montagem: autoria do artigo)

Notas da autoria
1. Esse parágrafo é uma conjectura pessoal, por falta de informações em fontes disponíveis, mas que faz sentido na intenção do governo.
2. Será abordada no próximo artigo.
3. Exclui, na prática, a inflação da economia popular, que é sempre bem maior do que a oficial.

Para saber mais
https://pt.wikipedia.org/wiki/Minist%C3%A9rio_da_Educa%C3%A7%C3%A3o_(Brasil) (MEC)
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Minist%C3%A9rio_da_Sa%C3%BAde_(Brasil) (Saúde)
https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/04/08/ministro-da-educacao-e-demitido-apos-gestao-marcada-por-controversias-e-recuos.ghtml
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/eu-estudante/enem/2020/06/19/interna-enem-2019,865347/gestao-de-weintraub-foi-marcada-por-criticas-e-polemicas.shtml
- https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/08/milton-ribeiro-demite-secretaria-de-educacao-basica-apoiada-por-olavistas.shtml
- https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2021/02/governo-insiste-em-cortar-recursos-da-saude-e-educacao-e-votacao-da-pec-emergencial-deve-ser-adiada/
- https://www.extraclasse.org.br/opiniao/2021/02/senado-votara-hoje-pec-186-que-da-calote-em-direitos-sociais-e-entes-federados/
- https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2021/02/22/tirar-dinheiro-do-sus-para-renovar-auxilio-e-inconstitucional-diz-jurista.htm
- https://www.sintrajufe.org.br/ultimas-noticias-detalhe/18052/pec-186-reducao-de-ate-25-dos-salarios-do-funcionalismo-esta-entre-as-prioridades-dos-novos-presidentes-da-camara-e-do-senado
- https://www.sintrajufe.org.br/ultimas-noticias-detalhe/18119/votacao-da-pec-emergencial-sera-na-terca-com-ameaca-a-saude-e-educacao-e-congelamento-salarial-no-texto-confisco-segue-no-horizonte

     
 

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