Análise: a polêmica queima de monumentos
Em 24/7 ocorreu nova série de manifestos populares contra as políticas adotadas pelo governo Bolsonaro e o saldo trágico a caminho de 600 mil mortos, em dados oficiais, pela C19. Como esperado, o conjunto de manifestos que ficou conhecido nas redes sociais como #24J se marcou por muito mais presença de povo do que nos anteriores, e abarcou mais de 500 cidades.
O grande número de mortes em geral por C19 ou por suas complicações diretas em pouco tempo já se configuraria, por si, como sinal de genocídio. Soma-se isso à onda de homicídios contra indígenas em suas reservas pelos invasores e, nas urbes, contra as camadas pobres periféricas pelas forças estatais como "operações contra o tráfico", em números ainda não fechados.
Desde o pós-ditadura nunca se matou tanto quanto na era neonazista assinada por Jair Bolsonaro. Por toda essa soma de morticínios e outras más políticas, milhares de populares foram às ruas contra seu governo. E nesse #24J, outro fato demarcou o evento: o fogo em uma enorme estátua do bandeirante Borba Gato, no bairro paulistano de Santo Amaro.
O fogo em pneus postos ao redor da base da estátua explodiu nas redes sociais quase ofuscando as outras imagens do grande ato popular que foi, no geral, pacífico e ordeiro, respeitando os protocolos de segurança anti-C19. Mas, quem foi e por que incendiaram a estátua? Quem foi Borba Gato?
Quem foi o bandeirante Borba Gato
Manuel de Borba Gato (1649-1718) foi proeminente figura do Brasil colônia. Foi genro de outro conhecido bandeirante, Fernão Dias Paes Leme. Nascido em São Paulo, ele se radicou em Sabará, MG, ao lado de um pequeno punhado de habitações que seria a futura capital Belo Horizonte.
A historiografia oficial o aponta como vindo de uma família de bandeirantes, como seu pai João e seu tio Belchior, tendo deles o espírito desbravador que o levaria a descobrir mais tarde os ricos veios de ouro e pedras preciosas no vasto interior do futuro estado de Minas Gerais, onde se radicaria para o resto de sua vida.
Após a morte do sogro em 1861, Borba Gato foi para MG, onde se desentendeu com um fidalgo matando-o, e fugiu para as matas, descobrindo veios de ouro no Rio das Velhas (região de Sabará). Viu nisso um meio de negociar perdão das autoridades, o conseguindo com êxito em 1868.
Mostrou os veios às autoridades mineiras, se tornou lugar-tenente e, mais tarde, tenente-general do Mato com função jurídica e arrecadatória de impostos à Coroa. Comunicou os achados às autoridades paulistas, permitindo explorações nas lavras para amigos e parentes.
Na Guerra dos Emboabas1, ele convocou a população do Arraial do Rio das Velhas, futura Sabará, para lutar contra o forasteiro Manuel Nunes Viana, via documento sobre resoluções oficiais. Vitorioso, Borba Gato mais tarde foi alçado a juiz ordinário do mesmo Arraial, até sua morte em 1718.
Polêmica monumental: obscuridade por trás do heroísmo
As bandeiras se tornaram um dos maiores símbolos históricos brasileiros, pois o desbravamento dos bandeirantes e a contribuição na coleta de impostos levou à descoberta de muitas riquezas no vasto interior, alargando a extensão da colônia portuguesa no Tratado de Tordesilhas.
Típicas de São Paulo, as bandeiras são vistas com certo orgulho pelos paulistas. Mas os historiadores advertem que isso se deve ao mito épico criado pela elite cafeicultora dos anos 1910-20, que se dizia descender desses desbravadores e influenciou a imortalidade deles em homenagens futuras.
Essas homenagens se traduzem em nomes de logradouros como praças, ruas, bairros e cidades, e em monumentos. A estátua de Borba Gato tem 10m, e seu pedestal 3. Uma das ruas a contornar a praça Augusto Tortorello, local da escultura, é a Fernão Dias, também nome de importante rodovia paulista.
Outros bandeirantes imortalizados em logradouros e monumentos são Antônio Raposo Tavares, Bartolomeu Bueno da Veiga, Jerônimo Leitão e até Domingos Jorge Velho, que em 1695 matou Zumbi dos Palmares e vários negros que tentaram resistir à captura e ao fim do famoso quilombo.
A estátua de Borba Gato já foi atacada antes, despertando revisão historiográfica sobre a ética dos bandeirantes, que antes do mito elitista eram tidos como criminosos perversos, depredadores, piratas, assaltantes, estupradores, sequestradores, assassinos de índios e negros e escravagistas contumazes.
O Monumento às Bandeiras e placas de logradouro com nomes de bandeirantes também foram alvos de ataques, e há projeto de troca de nomes para esses locais, mas há resistência de grupos mais conservadores hoje na esteira do bolsonarismo.
Por trás dessa pressão estão relatos ancestrais preservados por líderes de movimentos sociais para desmascarar a ética bandeirante, então disfarçada pelo elitismo seguido pela ditadura militar, que matou milhares de indígenas e quilombolas para entrega econômica de suas terras ou capturar opositores.
No exterior também acontece: no calor dos grandes protestos antirracistas nos EUA, os belgas derrubaram o monumento ao rei Leopoldo I devido à crueldade com nativos no Congo; na Inglaterra, um traficante de escravos do séc. XVII; na Colômbia e nos EUA, Colombo e outros colonizadores.
Reflexões finais: os significados do incêndio
Explosiva nas redes sociais, a matéria sobre o fogo na estátua gerou muita controvérsia: quem foi o autor ou autores? Houve danos sérios ao monumento? Foi vandalismo ou ato de indignação legítima contra a ética criminosa dos bandeirantes? As perguntas parecem simples, mas, em uma análise fria e ampla, as respostas são complexas.
Em relação aos monumentos, há três colocações sobre os ataques: preservar pela relevância dos feitos dos homenageados; preservar para que a história não se repita; e substituir pelos memoriais em homenagem aos povos nativos e escravos, ou vítimas de crueldades históricas e atuais.
A primeira concorda com os conceitos elitistas; a segunda é para a pessoa ver no homenageado o seu caráter negativo para que seus feitos não sejam repetidos hoje; e a última é proposta de invocar novo olhar na história com base na contribuição dos povos para a cultura e desenvolvimento nacional.
Segundo o sociólogo Wladimir Safatle, em coluna no jornal El País de 26/7, atacar monumentos de homenagem a personagens controversos legitima politicamente a indignação popular e a compreensão renovada sobre os reais significados das batalhas do passado e seus reflexos na atualidade.
Faz sentido. Assim se opera a visibilidade aos invisíveis como pobres periféricos, povos nativos das ex-colônias e à tão explorada a pejorada África Negra. Na educação, diferente dos estudantes na ditadura, os escolares de hoje têm acesso à diversidade de informações que revelam os dois lados da moeda da história.
Ainda nessa linha, Safatle enfatiza a inalienabilidade do direito de atacar monumentos a pessoas históricas hoje comprovadamente controversas, pois cada derrubada de um nome desses desmascara simbolicamente seu caráter e a ética de seus feitos. É um desabafo direto contra inimigos simbólicos.
Mas, até hoje, o ataque a monumentos de personagens controversos é visto com reserva entre nós. Reflexo da "assepsia" histórica pela ditadura militar, que ressaltava os mitos de democracia racial e religiosa limitando-nos a criticar o racismo e o escravagismo estadunidense, culpa de Hollywood de então. Nos preocupamos com as mazelas dos outros e não as nossas.
A estátua de Borba Gato ficou chamuscada pela fuligem das chamas, sem outros danos. O material queimado mesmo foram os pneus ao redor do pedestal. O grupo reivindicador da autoria é o Revolução Periférica, que seria composto por moradores de comunidades da capital.
Essa forma de atear fogo sem grandes danos ao monumento reforça o simbolismo do gesto, com indignação e consciência populares genuínas. E, justamente na vigência de governo de extrema-direita, a tendência de ataques a monumentos de personas como os bandeirantes é de ser mais intensa.
Essa ideia se faz benfazeja, pois as bandeiras deixaram reflexos poderosos entre nós ainda hoje. Temos ainda certo preconceito contra indígenas e negros, e nossa educação socioambiental é muito incipiente, pois ainda não entendemos amplamente a estreita relação entre povos originários e conservação dos biomas, e sobre a limpeza de nossas cidades e administração de nossos próprios resíduos.
Sim, ainda temos reflexos das bandeiras. E, vale apontar, Bolsonaro é paulista de nascimento, defende o trabalho infantil, a exploração plena de terras indígenas e de áreas públicas conservadas, debocha das nossas críticas à escravidão, tem toda sorte de preconceitos que já sabemos, e tem descaso com a vida coletiva. Um bandeirante em pleno século XXI? Pode ser, quem sabe...
----
Imagem: Google
Notas da autoria
1. Emboaba foi um termo pejorativo para apontar os forasteiros que usavam botas, estendido a todos os homens de Manuel Viana, originários de Portugal e outros territórios da colônia.
2.
Para saber mais
- https://www.todamateria.com.br/bandeirantes/
- https://www.todamateria.com.br/borba-gato/
- https://www.todamateria.com.br/guerra-dos-emboabas/
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Borba_Gato
- https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/07/4939584-manifestantes-incendeiam-estatua-de-borba-gato-saiba-quem-era-o-bandeirante.html
- https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-07-26/do-direito-inalienavel-de-derrubar-estatuas.html?utm_source=Facebook&ssm=FB_BR_CM?event_log=oklogin
- https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/02/politica/1504310652_774711.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário