domingo, 17 de outubro de 2021

Análise: dinheiro terceirizado

 
        2019: o governo Bolsonaro anunciou a privataria de estatais, incluindo a estratégica Casa da Moeda do Brasil (CMB), pela alegação do ministro Paulo Guedes de que ela "fará a economia brasileira decolar", mesmo com o avião econômico dando ré. Servidores reagiram contra, e especialistas apontaram riscos econômicos graves.
        2020: quanto mais Guedes prometia a decolagem, mais ré a economia dava. Com a sindemia de C19 grassando ao bel prazer presidencial, a privataria ocorria por baixo dos panos ferrando a economia. A CMB ficou no abafa até divulgarem a cédula de R$ 200. Escaldado, o povo intuiu a hiperinflação por perto.
        Essa cédula nunca chegou aos nossos bolsos. Mas, dezenas de maços dela foram encontrados pela PF nas cuecas de um senador bolsonarista. Em seguida, suspenderam a sua produção por motivos em sigilo. Mas já se sabe da procedência não usual do papel-moeda e da tinta. De qualquer forma, nada a ver com o traseiro do senador.
        2021: com a privataria dos serviços públicos como tona da PEC32 (reforma administrativa), que por sua vez avança no legislativo deixando servidores em alerta máximo, o Conselho do Programa de Parceria de Investimentos (CPPI) recomendou a retirada da CMB da lista do Programa Nacional de Desestatização (PND). A solicitação foi publicada no DOU1 de 21/9. 
        O governo terá que editar decreto autorizando a retirada. Até o momento não foi encontrada fonte sobre o decreto, se foi retirada ou não. Tal como especialistas da FGV, o citado CPPI apontou os mesmos riscos da privatização da CMB: na economia e maior vulnerabilidade ao descontrole da falsificação.

Breve história da CMB

        A CMB foi fundada em 8/3/1694 pelos administradores coloniais da Coroa Portuguesa em Salvador, para fabricar moedas com ouro da colônia. O primeiro cunhador, José Berlinque, foi substituído pelo ourives baiano Domingos Ferreira Zambuja. A CMB foi transferida para o Rio de Janeiro em 1699, para Recife em 1700, e volta ao Rio, desta vez em definitivo, em 1702. No século XX surgiram sedes em MG e DF.
        Logo a CMB virou símbolo do Brasil independente e soberano, tornando-se o fabricante oficial da moeda nacional. Em 1843, produziu o primeiro selo postal das Américas e o terceiro do mundo, o Olho de Boi. Até hoje ela fabrica os selos postais, além de moedas comemorativas.
        Há locais que possuem acervo histórico de moedas nacionais fabricadas pela CMB. Entre esses locais, se destaca a cidade de Juiz de Fora (MG), com o Museu do Banco de Crédito Real, em prédio fundado no II Império. Aberto para visitação pública nos dias úteis, este Museu tem valioso acervo histórico datado desde o Império.

Segurança 
        Com o tempo, a segurança se tornou uma preocupação na fabricação de cédulas de dinheiro, ao ponto de, hoje, haver tecnologias a produzir mecanismos de segurança contra falsificação, estendidos aos selos e documentos especiais que são remetidos a outras empresas.
        A falsificação de dinheiro é crime de ocorrência eventual, tipificado nos arts 289 a 292 do CP2, punível com 2 a 15 anos de cadeia e multa, dependendo da natureza e contexto. O cidadão de boa-fé que porventura receba e circule dinheiro falso também pode ser penalizado em até 3 anos de cadeia e multa. O art. 291 trata de porte e posse de apetrechos para falsificação.
        Já deparamos com várias notícias de flagrantes de grandes volumes de dinheiro falso. Mas, não é comum, até prova em contrário, o envolvimento da classe política. Aliás, quando o agente político é envolvido, o crime é mais grave, pois o político é, essencialmente, um agente público, e seu crime tem natureza privada.

Caso da cédula de R$ 200

        Em agosto/2020, correu uma licitação sortear empresa fornecedora de tinta e papel-moeda para a impressão de novas cédulas. Por ordem do governo, a empresa vencedora foi mantida em sigilo por um tempo por motivos de segurança para evitar crime de falsificação. Pela legislação, os produtos precisam ter segredo industrial (segurança química). 
        A circulação da cédula de R$ 200 foi anunciada em setembro/2020. Em outubro, Bolsonaro falou em live sobre o assunto: "ela foi feita por falta de papel-moeda". Mas, a explicação para a ausência da cédula circulante foi outra: "pra evitar uma corrida aos bancos, antes não podia falar, agora posso". Geral não se atentou na falta de nexo da fala, mas outros fatos logo viriam para dar sentido.
        O senador bolsonarista Chico Rodrigues (DEM-RR) foi flagrado com a bunda grande e quadrada em seu apartamento pela PF. Na averiguação. foram encontrados vários maços de cédulas de R$ 200. Alegou inocência, mas deixou a vice-liderança do governo no Senado, exaltando Bolsonaro como "grande líder", soando mais como exposição do presidente no escândalo.
        Em paralelo, dois fatos: a solicitação do MPF para apurar irregularidade no transporte de materiais na sede carioca da CMB após denúncia da Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF) em São Paulo; e a ação civil pública da Defensoria Pública da União (DPU) para suspender a produção das cédulas de R$ 200. Isso, enquanto a patuleia zoava com a bunda do senador.
        Na denúncia da ABCF, a Ceptis venceu licitação para fornecer tinta de impressão das cédulas de R$ 200, mas reclamou do fornecimento ilegal de sua tinta pela CMB à concorrente Sellerink. A ABCF reuniu documentos, e procurou o MPF-RJ e o Núcleo de Repressão à Falsificação de Moeda da PF em Maringá (PR) para investigar os fatos, que podem abrir as portas para a falsificação.
        Em seguida surge a ação pública da DPU para suspender a produção das cédulas de R$ 200 devido ao descumprimento da Lei de Inclusão: as medidas das cédulas eram idênticas às da de R$ 20. Pessoas com deficiência visual distinguem valores ao diferenciar os tamanhos.
        Como não houve alarido público pela mídia sobre esses assuntos, a geral acreditou que a parada da produção estaria ligada ao escândalo de corrupção envolvendo o supracitado senador, e às notícias de Paulo Guedes em grotesca brisa loka de recuperação da economia no trimestre final de 2020.

Enfim, será uma forçada de barra para a privatização? 

        A licitação de empresa fornecedora de matéria-prima para confecção de dinheiro físico é um meio legal, alternativo à privatização. Mas, quanto à confecção das cédulas de R$ 200, os meios utilizados deixam no ar uma forte sensação de suspeita.
        Suspeita essa que recai diretamente sobre o governo federal, uma vez que o sigilo relacionado aos envolvidos em irregularidades advém de ordem direta do Executivo. O sigilo veio, dessa vez, sobre o fornecedor da nota de R$ 200.
        É aí que a coisa pega. A CMB sempre teve o mister de lançar dinheiro novo e produzi-lo, mesmo que a tinta e o papel-moeda sempre fossem fornecidos por empresa sorteada em licitação. No caso da cédula de R$ 200, à qual a patuleia não teve acesso, se revela claramente que a sua produção ficou a cargo de terceiros.
        A denúncia da Ceptis captada pela ABCF nos leva a pensar sobre a terceirização da produção de dinheiro na era Bolsonaro, retirando da CMB uma atribuição que ocorre há mais de 300 anos. Nesse sentido, a inédita terceirização da produção de dinheiro significa mais uma tentativa do governo de retirar outra atribuição estatal.
        Daí serem estranhos os fatos acima, pois até onde se sabe, todos os países produzem dinheiro por órgãos estatais com servidores. O significado é claro: patrimônio de soberania. Que, aliados aos fatos acima citados, motivam a recomendação do CPPI de que se retire a CMB da lista da privataria.
        Como já citado antes, a privataria é objetivo-fim da PEC32, a reforma administrativa. Se já foi produzida a cédula de R$ 200 fora da CMB ainda pública, imaginem no pós-privataria: além de gerar falsificação à vontade, se dissolve praticamente o que nos resta da resquicial sensação de soberania.

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Imagem: Google

Notas da autoria
1. Diário Oficial da União, órgão de imprensa estatal que oficializa atos administrativos de autoria da União.
2. Código Penal Brasileiro (Decreto 2848 de 1940).

Para saber mais
- https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-afirma-que-nota-de-r-200-foi-lancada-por-falta-de-papel-moeda/
- https://noticias.r7.com/brasil/dpu-entra-com-acao-para-suspender-circulacao-da-nota-de-r-200-13102020
- https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/10/15/senador-flagrado-com-dinheiro-na-cueca-chama-bolsonaro-de-grande-lider-e-diz-que-provara-inocencia.ghtml

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