domingo, 5 de dezembro de 2021

Análise: degradação ambiental x comunidades agroecológicas

 
        A degradação ambiental é um tema extensivamente tratado neste blog como um problema global originário da intensa atividade humana, que tem se destacado de forma recorde em uma nação conhecida e apreciada por sua exuberante riqueza natural: o Brasil.
        A devida importância, não dada por uma enorme parcela da população, por ignorância sobre a dinâmica, dimensão e consequências no clima, na biodiversidade e na vida humana, é preocupação ainda restrita a certos grupos, como cientistas, educadores, povos indígenas, tradicionais e sem-terra.
        Pois são esses grupos os que mais sofrem com as pressões consequentes à degradação e de um dos fatores de destaque, o agronegócio. Neste artigo, será tratada compilação analítica sobre os significados dessa degradação no território brasileiro e suas consequências em relação às comunidades tradicionais.

Povos e comunidades tradicionais

        Segundo a CF/1988, "são grupos que possuem culturas diferentes da cultura predominante na sociedade e se reconhecem como tal". O decreto 6040/2000 acrescenta o uso de "territórios e recursos naturais como condição para a sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas transmitidas pela tradição".
        Como vivem em áreas ricas em recursos naturais nativos, a atividade econômica é sustentável (requisito de identificação desses povos), como roçados agroecológicos e extrativismo direto da natureza. Várias dessas comunidades são centenárias ou milenares.
        Cerca de 25% do território brasileiro são ocupados por comunidades tradicionais, que se espalham por todo o país. A maior parte vive em minifúndios (sítios ocupados por gerações ou assentamentos do governo), em parte cobertas por mata nativa e seus recursos para atividades ecológicas. Áreas indígenas são tidas como totalmente nativas, dada a organização tribal de seus habitantes.
        Ocupando cerca de 25% do território nacional, as comunidades tradicionais se espalham por todo o país. A maior parte dessas populações vive em minifúndios, sejam estes sítios ocupados por gerações ou assentamentos do governo. Elas em parte são ocupadas por mata nativa, explicando o caráter ecológico das atividades. 
        Essa população reunida é muito heterogênea, com traços culturais distintos, dado o arcabouço sociocultural em elo com o meio natural. São os caboclos, caiçaras, extrativistas, quilombolas, indígenas, pescadores, jangadeiros, ribeirinhos, seringueiros e outros.
        Subordinada ao MMA, a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais de 2004 estabelece e acompanha a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dessas populações.
        Somando-se aos cooperativados e pequenos produtores não-tradicionais, os povos tradicionais são grandes fornecedores de alimentos frescos à galera das cidades próximas às suas terras. Mas, diferente dos produtores não-tradicionais, eles fabricam venenos caseiros para ajudar no controle de pragas, sem prejuízo à natureza e animais que se alimentam dessas pragas.

Fragilidade
        A Constituição e a legislação complementar reconhecem a importância dos povos tradicionais em sua identidade sociocultural, atividades baseadas na economia verde e-/ou visão espiritual da natureza, e as organizações como ONGs e outros os denominam como os "guardiões da natureza", explicada na capacidade de moldar o meio natural numa relação simbiótica.
        Por outro lado, movimentos indígenas, quilombolas e sem-terra têm demonstrado a existência de uma realidade muito mal abordada, a revelar a falta de cobertura suficiente e adequada do Estado para salvaguardar e promover a integridade desses povos contra as interferências externas, o que os deixa em evidente situação de vulnerabilidade.
        A patuleia que vive nas áreas urbanas é totalmente alheia a essa realidade. A nossa grande mídia nos bombardeia com menções dramáticas sobre o avanço recorde da destruição ambiental por diversas atividades relacionando-as com a omissão - ou aval eventual - do governo para essas atividades, cuja legalidade é no mínimo duvidosa.
        Tais atividades têm forte significado de preocupação para as populações tradicionais, que sofrem forte pressão, advinda tanto de pessoas "estranhas" quanto das mudanças do meio natural. 
        Meio natural- moradores de comunidades tradicionais revelam várias mudanças ambientais, as quais primeiramente são atribuídas a modificações nos padrões climáticos regionais. É interessante que os relatos apontem mudanças mais drásticas a partir de 2019. 
        Todos sabemos que as mudanças climáticas1, pelo menos a partir do pós-guerra, acompanham as atividades humanas, e hoje, estudos recentes afirmam o Brasil como centro de aquecimento2 acima da média global, talvez atribuído à predação humana nos principais biomas. 
        Por conhecerem há décadas ou séculos a natureza de seus habitats, os indígenas e agricultores familiares são os primeiros a perceber e denunciar essas mudanças, que incidem na disponibilidade alimentar e/ou de suas produções. 
        Na região da Serra do Amolar, de vegetação de transição de Cerrado-Pantanal e clima de estação seca (maio a outubro) e a úmida (novembro a abril) e bom suprimento hídrico, agricultores familiares tinham produção constante. Nos últimos 30 anos, com maior progressão da seca, sua produção sofre.
        Eles atribuem esse fenômeno aos latifúndios de monoculturas mecanizadas e pecuária bovina expansiva3 com alto incentivo dos governos desde o regime de 1964. Percebem também os efeitos do ritmo maior da predação atual, iniciada em 2019.
        E estão certos. Estudos comprovam a devastação dos grandes biomas nativos na desregulação dos padrões térmicos e climáticos globais, através de dados históricos obtidos por instituições científicas. A precária regularidade restante é mantida graças ao que ainda resiste desses biomas. 
        Pessoas 'de cima'- para a maioria dessas comunidades, a pressão humana, em especial de pessoas "de cima", pode ser ainda mais profundamente impactante para a sobrevivência do que as modificações ambientais: os resultados variam desde ameaças, invasões das terras, despejos e até morte.
        As primeiras visões são mais sutis, de novas atividades, com desmates em terrenos circundantes para pecuária ou alguma monocultura, logo acompanhadas de homens fortemente armados que olham ameaçadoramente os previamente assentados.
        Um despejo emblemático ocorreu com o quilombo MST Campo Grande, assentado em terras tidas como improdutivas após desativação da usina de açúcar pelo proprietário, no interior de MG. Em 2018, o dono alegou a reativação e, tendo ganho de causa, os quilombolas receberam a carta de despejo.
        Mas, os MSTs resistiram e, com prova documental da legalidade do assentamento, tiveram direito à permanência. Como havia direito a tréplica, o usineiro retornou arrastando o processo em 2019, até que contatou o governo Zema para ajudar. Em 2020, as famílias foram despejadas à força pelos PMs.
        Três detalhes macabros: tudo ocorreu em plena pandemia atestando a ilegalidade do despejo; os MSTs estavam legalmente assentados, via declaração de terra improdutiva; o proprietário tem uma dívida em torno de R$ 400 milhões. E vale outro: o quilombo é MST, velho "vilão" da elite rural e da grande mídia. 
        Entre os ameaçados de morte estão os assentados de décadas em lotes de terra concedidos pelos proprietários de uma antiga usina de açúcar, para a qual as famílias trabalhavam e moravam nos lotes onde subsistem de suas roças até hoje. A flora da mata nativa cresce na antiga cultura de cana. O local fica na zona da mata de Pernambuco.
        Pelo The Intercept Brasil, os relatos são de desmate paulatino e jagunços armados: latifúndio novo à vista. Os lotes estão estreitamente limitados por arame farpado. O poço do qual as famílias tiravam água teve acesso proibido, pois agora está em outra terra. Ameaças de morte são constantes. Medo, tensão e dificuldades permeiam a rotina dos assentados.

Reflexões finais

        O exposto nos revela uma situação socioambiental bastante delicada. O abandono em que se veem as culturas tradicionais se sobressai às leis de proteção e aos documentos comprobatórios de posse das terras e de reconhecimento de territórios públicos demarcados habitados por aqueles que os protegem. 
        A já conhecida omissão governamental se deve à prioridade dos governos ao badalado potencial macroeonômico do agronegócio, que sabidamente, não tem nenhum uso social, em flagrante afronta ao princípio constitucional maior da questão fundiária, e contra a dignidade e a vida humanas. 
        A grande mídia brazuca também se omite quando aponta os impactos ambientais e climáticos no agronegócio, sem uma palavra sobre como os pequenos produtores tradicionais são as vítimas maiores disso tudo, potencializando todo o abandono que os entrega indefesos à vida de violência.
        Nesse contexto andam em paralelo o mercado externo do agronegócio latifundiário e a economia popular. A prioridade do governo ao primeiro transforma o paralelismo em confronto classista que se traduz na violência no campo e na floresta, como nos fatos supracitados.
        Em meio a isso tudo...- Em meio a esse contexto tão hostil, algo muito valioso move os povos tradicionais a permanecer como são e estão: a resistência. O que a alimenta não é só não terem para onde ir, é também a identidade cultural construída na relação com a terra e com a natureza, e isso é tudo na vida dessas comunidades. 
        As histórias acima exemplificadas são apenas alguns dos numerosos exemplos nesse país marcado pela violência no campo e na natureza. Os povos tradicionais atuam como verdadeiros museus vivos a mostrar como culturas podem resistir ao reveses do tempo e da sociedade em constante mudança.
        E por resistirem tanto, essas comunidades se transformam num verdadeiro incômodo, empecilho aos avanços de sinal de muitos ambiciosos que almejam para si os recursos acima e os que jazem sob seus poucos hectares de terra. E que esse empecilho continue, hasta la vitória, siempre.
        Quem viver, verá. 
        
----
Imagem: Google

Notas da autoria
1. Mudanças nos ritmos sazonais e na distribuição e quantidade de chuvas, locais ou globais, ao longo de série histórica, induzidas por fator natural e, principalmente, humano.
2. Aumento das médias térmicas de determinada macrorregião, ou global, ao longo de série histórica.
3. De grande extensão e milhares de cabeças de gado por latifúndio.

Para saber mais
- http://www.ecobrasil.eco.br/noticias-rodape/1272-comunidades-ou-populacoes-tradicionais
- https://reporterbrasil.org.br/comunidadestradicionais/
- https://journals.openedition.org/confins/28049 (Expansão do agronegócio e os impactos socioambientais na região do Cerrado no Centro-Norte do Brasil - Matopiba - estudo)
- https://contraosagrotoxicos.org/enquanto-estado-aposta-no-agronegocio-agricultura-familiar-sertaneja-luta-pela-existencia/
- https://diplomatique.org.br/exploracao-do-pantanal-tenta-varrer-comunidades-tradicionais-do-mapa/ (parte 1)
- https://diplomatique.org.br/essa-regiao-nossa-nao-sei-nao-se-vai-resistir/ (parte 3)
- https://diplomatique.org.br/eu-existo-eu-estou-aqui-no-mapa-2/ (parte 2)
- https://www.poder360.com.br/economia/a-contradicao-entre-recordes-no-agronegocio-e-fome-no-brasil-dw/
- https://conexaoplaneta.com.br/blog/quilombo-campo-grande-familias-sao-despejadas-pela-policia-em-meio-a-pandemia/
- https://www.youtube.com/watch?v=hfdry54DQMw (The Intercept Brasil - pressão sobre comunidade da usina falida no interior de PE)



Nenhum comentário:

Postar um comentário

CURTAS 98 - ANÁLISES (Brasil- Congresso)

  A GUERRA POVO X CONGRESSO                     A derrota inicial do decreto do IOF do governo federal pelo STF foi silenciosamente comemo...