sábado, 11 de dezembro de 2021

Análise: a cota por conveniência

        O petismo se destacou dos demais governos do pós-ditadura por vários aspectos. Foi nessa era que, mesmo tão marcada por fatos negativos que levaram a manifestações populares contrárias, ocorreu uma série de iniciativas inovadoras como política social.
        Facilidade de créditos para obter bens e serviços; distribuição de renda para combater e direitos trabalhistas a domésticas são exemplos. A maior inovação foi a inclusão de pobres e não brancos em áreas antes impossíveis, como concursos públicos e universidades: a política de cotas.
        Até sair do papel, a política de cotas foi muito debatida, desde os especialistas e governo até as conversas de botequim e redes sociais em ascensão. E ainda é objeto de polêmica popular. Mas, do que ela realmente se trata, e seus objetivos? Qual a sua história? E quais problemas tem enfrentado?

Conceito, história e objetivos

        Defendida entre setores da esquerda e repudiada por toda a direita, a política de cotas se tornaria, sobretudo, sinônimo de petismo. Criada pela Lei 12.711/2012, ela ficou conhecida popularmente como cota racial, devido à inclusão de não-brancos em espaços dominados por uma cultura branca e elitista.
        Como se define nas suas linhas legais, a lei de cotas não é somente no campo racial. Ela se torna a política afirmativa de maior amplitude na abrangência entre a sociedade, por incluir também classes populares mais baixas e todos os gêneros em acesso a bens e serviços antes impossíveis. 
        Breve história- Embora considerada inovação petista no Brasil, a política de cotas se inspirou em uma correlata desenvolvida nos EUA nos anos 1960, como forma de amenizar a grave desigualdade racial no país, resultando em algum sucesso na inclusão de negros e outras etnias em universidades e mercado de trabalho de nível superior.
        Diante do relativo sucesso do sistema nos EUA, movimentos negros tentaram propor política correlata, mas veio o regime militar a propagar o mito da democracia racial e perseguições ideológicas para impedir qualquer diálogo. E, na redemocratização, muitas eram as outras prioridades, e assim a ideia seria posta de lado.
        Mesmo eventualmente não impedindo situações repressivas contra os menos privilegiados, foi no petismo que as políticas afirmativas tiveram sua chance de efetividade. Antes de Dilma, Lula já acenava para a abertura dessas políticas de inclusão de grupos historicamente marginalizados, como forma de garantir a equidade de acesso e amenizar a grave injustiça social.
        Os contemplados- Diferente do sistema estadunidense, a Lei 12.711/2012 não contempla somente uma questão racial, alegando "uma reparação histórica" relativa às políticas antigas de segregação que têm imperado no Brasil e "deixado cicatrizes profundas na formação da sociedade".
        Hoje, conforme disposto pela lei, todas as formas de seleção (acesso à universidade, concursos e vagas nos serviços públicos, etc.) devem ter sua parcela de vagas para pessoas pertencentes a qualquer um dos grupos contemplados. 
        Raça/etnia- se destaca pela ampla abrangência. Além de negros, abarca os indígenas, integrados ou não à cultura dominante, bem como mestiços que se declaram negros e indígenas. Juntos, eles somam mais de 60% da nossa população, e em torno de 70% dos trabalhadores de escolaridade e qualificação baixa a mediana. 
        Nesse caso, a reparação a que o governo Dilma se referira, ao aprove da lei, foi à escravidão e ao genocídio. Este último, entretanto, continua como forte, principalmente contra os povos indígenas.
        Os mais pobres- compõem grande parcela da nossa população. São estudantes de escolas públicas de famílias de baixa renda, e em grande maioria são negros e pardos. 
        Pessoas com necessidades especiais- heterogêneo, esse grupo se compõe de PCDs (física, mental, sensorial, múltipla) e com habilidades típicas, que por sua vez chegam a 14% da nossa população - uma parcela importante que tem se mostrado com muito a contribuir. Desde a escola à qualificação e ao emprego, se deve haver cota para essas pessoas.
        Nos concursos públicos, os editais devem especificar não só os números de vagas, como também as necessidades compatíveis com cada cargo disponibilizado.
        Gênero/sexo- talvez a parte mais polêmica entre a classe política e menos conhecida do público. Há um conflito entre o conservadorismo entre a classe política e o fato indiscutível da diversidade sexual e de gênero, mesmo na biologia, por conta dos intersexuais (com caracteres masculinos e femininos) e a transexualidade.
        Apesar do disposto na lei, o acesso ao mercado de trabalho continua muito difícil devido à forte resistência de alguns empregadores, contribuindo para a informalidade contínua, por vezes em vida insalubre ou indesejada, como na prostituição.
        Vale mencionar uma observação ainda neste item dos grupos contemplados: as mulheres. Por uma interessante referência à lei de cotas, foi aprovada medida legislativa estipulando cota de 30% de vagas para mulheres na ocupação de cargos políticos nas casas legislativas federais e regionais.
        Objetivos- a busca por reparação através de medidas garantistas de equidade social foi o objetivo central da Lei 12.711/2012. "Esta lei é uma forma que encontramos de reparar a nossa dívida para com esses grupos", pronunciou a ex-presidente Dilma Rousseff em discurso após a sanção da lei.

Polêmicas, sucesso e problemas: ocorrências e reflexões

        A referida lei de cotas causou forte debate entre o senso público. Enquanto líderes de movimentos dos grupos contemplados comemoraram a lei, houve muitos contrários, que colocaram em evidência diversos argumentos visando propor sentido e razão para revelar as contradições da lei afirmativa. Mas vale informar que os autores também têm origem diversa, entre populares e classe política.
        Na classe política houve numerosos contrários, em especial entre as bancadas ultraconservadoras da bala, da bíblia e do boi, as mais conhecidas por defenderem suas pautas respectivas como políticas. Os argumentos são diversos, e a discordância à lei não é 100% unânime.
        Alguns alegam possibilidades como a de estímulo a preconceitos de cor de pele, e outros, possível ameaça representada por cotistas "despreparados" tirar vaga dos não-cotistas supostamente preparados para enfrentar os desafios oferecidos pelo curso superior, com risco, assim, de haver uma "formação deficiente" para esses cotistas. 
        Alguns desses argumentos são compartilhados entre populares contrários às cotas, acreditando na intensificação das agressões racistas motivadas por frustração em perda presumível de vaga; ou mesmo de não se conseguir passar em teste seletivo se não fosse cotista devido a possível deficiência de base.
        São argumentos compreensíveis, pois de certo modo desmascaram o racismo na nossa sociedade, profunda cicatriz cultural do escravismo que subestimou o papel social dos africanos e dos indígenas por séculos. Mas revela, também, por trás da ideia de suposta "deficiência de base", um mito*. 
        Entre os otimistas (favoráveis) e os contrários, há os céticos quanto ao sucesso das cotas. Entre os céticos vale anotar duas visões: a de que as cotas não resolvem os velhos preconceitos sociais contra os grupos contemplados; e a de que se permitiria a possibilidade de fraudes. 
        De fato, vemos que a política de cotas não resolveu o problema do preconceito racial e de classe na nossa sociedade, numa indicação de alguma lacuna nos objetivos sociais da política. Por outro lado, é muito válido sempre apontar que esse é um processo difícil, pois tais preconceitos têm historicidade forte, refletida num constructo sociocultural desde a colonização.  
        O mito*Acredita-se que haja obrigatoriamente uma ideia pela qual as escolas privadas tenham "excelência no ensino", que seria ausente na rede pública. Além de generalista, a ideia é duvidosa, e deixa no ar o desconhecimento do grande público sobre o que definiria essa "excelência" educativa.
        O que seria essa excelência? Professores hiperqualificados com a toda sorte de recursos didáticos e métodos de ensino mirabolantes? Ou é o ensino que informa o real e prepara os alunos para assumir os princípios cidadãos de justiça social e senso crítico? Até hoje isso é debatido, sem consenso definido.
        O público também desconhece a desigualdade além das diferenças estruturais físicas das escolas, um problema que afeta também a rede privada de ensino básico. Essa desigualdade é plural e, por isso, complexa e difícil de medir e mensurar. Cada escola atende à sua comunidade e tem cultura singular, pela qual vive seu cotidiano.

        Sucesso das cotas- Apesar das posições contrárias e do ceticismo de alguns, a aplicação das cotas tem gerado sucesso em acesso a universidades e, certamente, em cargos públicos. Segundo dados do IBGE (2019), pretos e pardos foram mais de 50% da população universitária. Em 2003, os dois grupos eram bem poucos em um universo claramente branco e de classes mais abastadas.
        Essa estatística indica um sucesso relativo no critério raça/cor, que implicitamente reflete também a mitigação da desigualdade socioeconômica conjugada a outras políticas de acesso. Vale salientar que o dado acima é genérica, reunindo instituições privadas e públicas no país, e dados por cada região.
        Cada Estado teve dados estatísticos dessas populações em suas universidades, somando-se em escala maior, por região, lançando-se assim que as regiões menos desiguais foram a Sul e Sudeste, e as mais desiguais, Norte e Nordeste. Entre as capitais, as mais desiguais foram o Rio e São Paulo. 
        A pormenorização estatística dos cotistas em meio às populações não-cotistas por cresce conforme se diminui a escala até se chegar por instituição. E é aí que a confiabilidade tende a ficar abalada, por conta de uma realidade que tem se desenhado desde o início da aplicação das cotas: a fraude.  
        Reflexão sobre a fraude- assim como o auxílio coronavoucher em 2020, o sistema de cotas tem sido alvo de inúmeras fraudes desde quando entrou em vigor, sendo as modalidades raça/cor e classe social ou escola de origem as modalidades mais atingidas, com até milhares de casos somados, em todo o território brasileiro.
        Classe social/renda e raça/cor são os critérios mais comumente usados para a prática de fraudes, conforme dados compilados nos flagrantes, que resultaram na eliminação dos candidatos, antes das provas (universidades) e na apresentação de documentos declaratórios para posse de cargo público via concurso. 
        Reportagem da UOL de 2020 registrou cerca de 163 casos de expulsões de estudantes flagrados em fraude por terem se declarado como cotistas, só em universidades federais no país. Parece pouco, mas se torna significativo por ser apenas casos em 2020 e excluindo as instituições privadas, indicando haver um total bem maior, embora não divulgado.
        Significado criminal- O termo fraude, por si só, já tem peso criminal na nossa legislação, e nesses casos contra o sistema de cotas, tem dois significados importantes, que se traduzem em dois delitos reconhecidos em nosso código penal.
        Um desses delitos é o estelionato, que em linhas gerais se traduz como de baixo a médio potencial ofensivo, e consiste de obtenção de vantagens facilitadas através de meios fraudulentos. No caso da lei de cotas, as vantagens obtidas podem ser a isenção ou descontos de pagamentos, ou facilidade constada na citada lei.
        Mesmo o ato púbere de "colar prova", tão comum na vida escolar, é tido como estelionato por ser uma obtenção fraudulenta de conhecimento de outrem. O poder ofensivo se volta ao infrator quando flagrado pelo professor. Esse spoiler visa mostrar até onde se detalha a nossa legislação.
        O estudante ou candidato a concurso geralmente recorre ao critério de classe social-baixa renda para falsificar seus próprios dados de renda familiar para "provar" hipossuficiência visando, enfim, se declarar cotista para obter as vantagens mencionadas. O ato identifica o crime de falsidade ideológica, também de potencial ofensivo baixo a mediano.
        
        Não foi encontrada fonte que delineie quantos flagrantes por especificação criminal nos casos de fraude envolvendo cotas para universidade e concursos públicos. Mas, de qualquer modo, em contexto de preconceitos intensificados, vemos como se autodeclarar negro ou não-branco, só para ser cotista, pode ocorrer quando bem conveniente, mesmo entre os próprios racistas e anticotistas. 

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Imagem: Google

Notas da autoria

Para saber mais
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Pol%C3%ADtica_de_cotas_no_Brasil
- https://brasilescola.uol.com.br/educacao/sistema-cotas-racial.htm
- https://www.oxfam.org.br/blog/pesquisa-do-ibge-mostra-o-sucesso-da-politica-de-cotas/?gclid=CjwKCAiAhreNBhAYEiwAFGGKPLzIGx_HMGJwPeXAvlsFzeVY_sw7Cc_8cvBS8tQj8Agba_kIqJhCDRoCLywQAvD_BwE
- https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/08/denuncias-de-fraudes-em-cotas-raciais-levaram-a-163-expulsoes-em-universidades-federais.shtml

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