Enquanto mais de 700 municípios e suas áreas de entorno
(rurais e naturais) de Minas Gerais são castigados pelas chuvas que antes ferraram
o sul da Bahia, ocorre algo impensado: na cidade turística de Capitólio, uma
coluna rochosa de quase 50 metros se desprendeu de paredão que cerca o belo
lago de Furnas. A queda atingiu em cheio um dos quatro barcos próximos.
De imediato, a mídia passa a concentrar as suas atenções sobre
o acidente geológico, que matou 10 das 12 pessoas que ocupavam a embarcação de
nome Jesus, a atingida em cheio. Imagens de vídeo viralizadas nas redes sociais
mostram ocupantes arremessados para longe devido ao impacto direto, caindo no
lago de 100 metros de profundidade.
Naturalmente, a comoção tomou conta da geral que vem
acompanhando a notícia desde então. Não é para menos: muitos dos espectadores podem
ser, ou são, parentes ou familiares próximos das vítimas da tragédia. Enquanto se pergunta o que aconteceu, o governo Zema se manifesta erraticamente, entre as chuvas e o acidente.
Mas, o acidente de Capitólio pode ter muitas respostas, ainda que apenas uma, a geológica, tenha saído do reino do silêncio e é dada como certa. Mas, junto a ela, se somam especulações, que ainda se encontram no limbo aguardando uma confirmação para que sejam apontadas pela grande mídia.
Um pouco sobre a natureza física de Capitólio
Vale explanar, em linguagem didática e acessível à geral leiga, sobre a geologia da macrorregião do Rio Grande (sudoeste), onde estão Capitólio e outras cidades, na Folha Guapé, adjacente à Serra da Canastra (vide interior do mapa ao lado).
A acidentada fisiografia local tem desfiladeiros com cânions calanques (ou calanc, termo francês para formações íngremes erodidas), e a variedade rochosa com nomes complicados como arenitos, conglomerados, diamicito, gnaisse, filito, micaxisto, metacalcário, xistos e outros, alguns com até 2 bilhões de anos de idade.
Arenitos são areias petrificadas. Nos cânions de Capitólio se dispõem em várias camadas de espessuras variáveis, de centímetros a centenas de metros. Quartzitos são arenitos antigos, modificados (metamorfizados) por grande pressão e calor das profundezas da crosta.
Conglomerado e diamicito são rochas sedimentares mal selecionadas, sendo o primeiro composto de grãos menores (de argila a cascalho) e arredondados, de deposição por água turbulenta; e o segundo tem matacões (grãos) que podem ser tão grandes quanto carros, e seu formador é o degelo.
Metacalcário, gnaisses, micaxisto e filito são rochas metamórficas. A primeira foi um calcário1 (sedimentar); os segundos se originam de rocha sedimentar ou ígnea2; o terceiro de rocha ígnea; e o último, uma modificação da nossa conhecida ardósia. Originalmente são rochas bem antigas.
Essa diversidade rochosa expõe nessa região um passado turbulento de terremotos, vulcanismos, metamorfismo tectônico em profundidade, erosão, sedimentação marinha e de água doce em épocas distintas, tudo isso em bilhões de anos.
Acima da água, os paredões íngremes dos famosos cânions de Capitólio são de conglomerados e arenitos, sobre estratos mais finos e antigos de quartzitos arcósios3, expostos pela erosão em milênios. Sinais de desmoronamentos pretéritos são vistos em quase toda parte.
Superfícies mais arredondadas dos paredões denunciam a erosão hídrica, e as com arestas agudas indicam fraturas e/ou erosão eólia (vento). A cor turquesa da água dos rios e do lago da região se deve a pouco sedimento em suspensão, e ao fundo claro dos leitos do lago e dos rios.
Vulnerabilidade- nas proximidades há uma barragem na bacia do São Francisco, da qual saem as águas de Capitólio. Com mais de 2000 km2, o belo lago de Furnas se origina desse represamento, que pode responder, em parte, pela fragilização dos cânions, embora a maior parte dos mananciais locais entorno conserve ainda seu aspecto (relativamente) natural.
Rochas sedimentares podem ser mais ou menos frágeis conforme a composição química. Quanto mais carbonatos, mais agressiva é a ação hídrica; e quanto mais sílicas, mais resistentes. Constituída principalmente de arenitos, a coluna "assassina" de Capitólio já sofria a pressão erosiva das cachoeiras, chuvas e da própria água do lago.
Durante as chuvas são comuns as cabeças d'água, que são chuvas muito pesadas, concentradas e localizadas. Às vezes confundidas com trombas d´água que são verdadeiros tornados líquidos perigosos, elas desabem em penhascos engrossando rios e cachoeiras repentinamente, e aumentando a pressão erosiva nas rochas.
Por que abriram o parque de Capitólio?
As informações coletadas pela imprensa desde o dia do acidente têm fornecido pontos suficientes para suscitar nos espectadores de todo o Brasil, intelectuais ou simples leigos, a seguinte pergunta: por que deixaram a coisa chegar a esse ponto? Ou melhor, por que abriram o parque aos turistas?
Enquanto a resposta não venha a contento da parte das autoridades, grande parte do público aponta o dedo para os barqueiros, que são guias turísticos, e os turistas, como "os principais errados" na visita fatídica. Além de ser injusta e indicar ignorância, a afirmação se revela uma inverdade.
Inverdade porque em nenhum momento houve manifestação das autoridades públicas e nem da empresa Compadre Turismo, que responde pela infraestrutura turística de Capitólio, São Thomé das Letras e do Parque Nacional da Serra da Canastra.
A Marinha, que tem jurisdição sobre o parque; o governador de MG Romeu Zema, o prefeito de Capitólio Cristiano Gerardão (PP), e a empresa Compadres turismo admitem ter havido um erro crasso que possibilitou a tragédia. Ainda que evitem, a todo custo, apontar os reais culpados.
Em verdade, essas autoridades sabem quem está errado, mas preferem tergiversar, pois como já sabemos, algumas partes "não podem ser melindradas" - uma tática muito comum na cultura elitista no Brasil. O próprio Zema negou a afirmação de geólogos sobre a iminência de fatalidade geológica na região, ao dizer que "não havia como prever o acidente". Mas havia.
Além da simples e minuciosa observação in loco, geólogos usam outros meios técnicos no intuito de avaliar a dimensão do risco, se iminente (curto prazo) ou não iminente (maior prazo). Geólogos não são adivinhos. A iminência apontada no parque levou à recomendação, infelizmente não atendida, de fechá-lo.
A Constituição de 1988 já prevê que os patrimônios, tanto naturais quanto históricos, artísticos e culturais, sejam não só tombados, como também periodicamente avaliados por profissionais habilitados que devem comunicar às autoridades responsáveis por meio de relatórios minuciosos.
Cabeça d'água- filmagens de turistas que testemunharam a tragédia mostram uma cachoeira se engrossando repentinamente. Embora tenha sido apontada como "culpada" da queda da coluna rochosa, avaliação posterior negou relação, apesar do sério risco meteorológico, devido às chuvas constantes na região nos últimos dias.
Mesmo que não houvesse queda do rochedo, a simples sujeição a cabeças d'água frequentes em decorrência do acúmulo de chuvas nos rios e cachoeiras seria fator suficiente para interditar o parque, visando evitar acidentes graves. O clima estava bastante instável em Capitólio.
Mirante no topo do cânion- a suposta obra de mirante no topo do penhasco onde a coluna rochosa se desprendeu e caiu foi um relato comum entre alguns turistas e funcionários: "temos ouvido muita martelada de lá de cima", disse um funcionário que não quis se identificar. Mas, autoridades públicas e a empresa de turismo negam qualquer obra nos penhascos de Furnas.
Privilégio
Capitólio é uma cidade conhecidamente turística, sendo local frequentado por figuras famosas diversas e pessoas de classes abastadas, que detêm privilégio de se regalar nos pontos mais caros. Para atender público desse perfil, a cidade conta com elogiada infraestrutura com várias opções de lazer, bem como uma elogiada rede hoteleira. Enfim, não é uma cidade para qualquer turista.
Há muito tempo Capitólio é um dos locais marcados por um turismo de perfil mais seletivo. Mas, com a queda livre na economia desde que que o país atravessa desde que Paulo Guedes ocupa o cargo de ministro, o turismo brasileiro vai se tornando um bem de consumo de luxo, tal como a carne, hoje inacessível às classes mais pobres.
Com essa seletividade, seria de estranhar que um lugar como Capitólio houvesse erro humano tão crasso ao ponto de causar uma tragédia evitável. A soma de riscos geológico e meteorológico gritava por fechamento, mas foi simplesmente ignorada pelas autoridades públicas e pela empresa, que na ganância mantiveram tudo tão aberto quanto o país sob epidemia de Ômicron, gripe e tudo.
Para Álvaro Nascimento, jornalista e escritor da mídia independente Jornalistas Livres, em artigo de 8/1/2022, o desprendimento do rochedo é um fenômeno natural, portanto, não deve ser apontado como o culpado pela tragédia. Os grandes culpados de verdade são todos que ignoraram a avaliação de riscos apontadas, e daí, o ocorrido não foi acidental.
Quiçá, tenha sido fruto de uma ambição criminosa.
Imagens: Google (montagem pela autoria do artigo)
Notas da autoria
1. Rocha de carbonato de cálcio (CaCO3). Se forma por deposição de restos de esqueletos, ou por precipitação química após evaporação da água.
2. Ígnea é a categoria de rocha magmática que não vem à superfície, ou seja, é intrusiva nas camadas sobrejacentes da crosta fria. Aparece quando essas camadas sobrejacentes são erodidas e por soerguimento (elevação) continental.
3. Quartzitos com no mínimo 30% de feldspatos (tipo de mineral) por volume na sua composição mineralógica.
4. Megatérios eram os antepassados gigantes de espécies como o bicho-preguiça. Desapareceram há uns 10 mil anos atrás.
Para saber mais
- http://mtc-m12.sid.inpe.br/col/sid.inpe.br/jeferson/2003/12.03.10.46/doc/Mapas/geologia.pdf (mapa geológico)
- http://www.cprm.gov.br/publique/media/geologia_basica/pgb/rel_guape.pdf (geologia CPRM da região de Capitólio, e mapa de MG).
- https://olhardigital.com.br/2022/01/08/ciencia-e-espaco/capitolio-o-que-causou-a-queda-do-paredao-em-minas-gerais/
- https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/geral/capit%C3%B3lio-%C3%A9-prematuro-relacionar-acidente-com-obra-diz-delegado-1.753160
- https://www.caririceara.com/acidente-em-capitolio-erosao-e-infiltracao-da-chuva-podem-ter-causado-queda-dizem-especialistas/
- https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/01/10/zema-contraria-geologos-nao-dava-prever-desabamento-capitolio.htm
- https://jornalistaslivres.org/capitolio-nao-foi-acidente/
- https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2021/01/08/interna_gerais,1227165/apos-tragedia-em-capitolio-prefeituras-definem-plano-contra-acidentes.shtml
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