sábado, 26 de março de 2022

Análise: Lula melhora, mas pode mais

 

        Desde os últimos dois meses de 2021, quando surgiram as primeiras pesquisas de intenção de voto pelo DataFolha, Ipespe (antigo Ibope), o novo Paraná Pesquisas e outros meios especializados, o velho ex-presidente Lula começou largando na frente, tendo o atual presidente Bolsonaro em segundo e, distantes, Ciro Gomes, Sergio Moro e João Doria.
        Mas, entre janeiro e fevereiro deste ano, bem em especial com os danos e perdas do sul baiano, maior parte de MG e Petrópolis, houve uma mudança nos números das pesquisas, indicando uma descida nos patamares lulistas e uma subida do seu Jair: 39 a 31, às vezes 38 a 32, considerando-se margens de erro. 
        A repetição de patamar na Paraná Pesquisas acendeu um alerta amarelo no PT e na equipe de Lula indicando a necessidade de identificar e avaliar falhas e lançar estratégia nova que reverta o revés. Uma análise é avaliar se há de fato a suposta proximidade entre duas figuras populares, mas essencialmente diferentes. 
        Por outro lado, já se percebe no PT e sua base a certeza da vitória do velho Lula, por ser revelação de historicamente o líder constante terminar eleito no final. Uma certeza que pode ser errônea, apesar de novo distanciamento revelado nas últimas pesquisas.

Fatores vários e possíveis

        Com certeza, essa dança dos números que aproximou perigosamente Bolsonaro de Lula 
        A dança dos números não surgiu do nada, e o fato de ter ocorrido em plena coincidência com os três desastres supracitados pode dar uma boa pista do ocorrido.
        No início de janeiro, Bolsonaro curtiu a vida adoidado no litoral catarinense e parou em hospital para avaliação de cirurgia intestinal, chamando o oncologista que gozava suas férias nas Bahamas para depois ter alta, surfar em jet ski em Brasília e virar vagabundo na boca geral.  
        Já surfando na onda dos 42% da preferência popular, 21 pontos à frente de Bolsonaro, Lula cedia entrevistas para canais como Carta Capital, Revista Fórum, Brasil 247 e correlatos, após o sucesso de sua passagem pelo podcast PodPah, disponível na plataforma de vídeos do Youtube.
        Mas, logo nesse ínterim em que as chuvas intensas avançavam pelas lotadas barragens de rejeitos de minério de MG pondo em perigo quase 820 dos 853 municípios, e iam aos poucos para a serra de Petrópolis, viria um reverso que agora ameaça a alta chance de nova eleição do petista.
        Oscilação evangélica- a influência quase bárbara da bancada da bíblia uniu os líderes religiosos e políticos para discutir as propostas de políticas públicas e outros interesses que, óbvio, o 1/3 brazuca evangélico não tem ideia, ou sabe, mas prefere não acreditar ou não se meter.
        A partir da era Temer, a imensa maioria dos pentecostais1 se deixou levar pelas indicações de seus pastores sobre quais candidatos a votarem nos pleitos municipais de 2016 e em Bolsonaro em 2018, na toada de prosperidade, paz, fim da "imoralidade corrupta, comunista e sexual", e outras coisas do tipo.
        Como os seguidos fatos revelaram a verdadeira face dos Bolsonaro e aliados (até pastores), boa parcela dos fiéis acordou, ajudando na preferência atual de Lula, que teria abaixado em fevereiro por conta do (temporário) Auxílio Brasil, freio nos ataques à vacinação e crédito mais fácil de Bolsonaro, sem se atentarem de serem apenas agrado eleitoreiro.
        Mas isso não significou chance da perda de preferência pelo velho petista. Até porque, pesquisas em meados de março revelam novo distanciamento entre Lula e Bolsonaro, agora em torno de 14 pontos segundo PoderData, Quaest e Ipesp.
        O perigoso "já ganhou"- a série histórica de pesquisas tem mostrado relativa folga na liderança de Lula, causando apreensão nos Bolsonaros e seu séquito. Nos bastidores do PT, sua base e os apoiadores, as chances de vitória no 1º turno, veio o clima automático de "já ganhou". Nada mais arriscado.
        Embora condicionado pela relativa constância da série histórica, o sentimento precoce é perigoso, pois nunca se descarta a chance de virada. Que o digam Paes e Garotinho na corrida eleitoral ao governo estadual do RJ. O então desconhecido Wilson Witzel venceu bastando dar apoio a Bolsonaro.
        O que garante a liderança do petista é a sua coerência política do povo como indutor econômico, mesmo que seus movimentos o levem a dialogar com figuras nada palatáveis à militância. Apesar da recente revelação de pastores com muita grana do MEC a pedido de Bolsonaro, em áudio do ministro Ribeiro2.
        Chuvas: vacilo de um, proveito do outro- as chuvas de dezembro que afetaram o sul da Bahia não impediram o recesso presidencial em Santa Catarina. Apesar de ter sobrevoado a região com o seu kit comitiva, os predicados "vagabundo" e "insensível" mexeram um pouco. Depois sobrevoou Minas e Petrópolis (RJ).
        Na Bahia e RJ ele prometeu liberar recursos para recuperação. Mas seu semblante calmo diferia dos dizeres consternados, ao ponto do governador baiano ironizar: "nós temos recursos". Foi razoável? Impossível saber. Mas, conforme disse, ele já está agindo na região, com vagar.
        O novo estrago de 20/3 na imperial Petrópolis pode impulsionar a reeleição de Bolsonaro, pela promessa citada. De qualquer forma, em aparente espontaneidade, o governador do RJ Claudio Castro prometeu recursos para a recuperação da cidade.
        Enquanto isso, Lula mantinha as suas entrevistas, passando a impressão de que não se atentou às tragédias. Mas, nas suas falas ressaltou ligação dos extremos e mudanças climáticas com a incessante devastação de grandes áreas naturais, com tendência de piora, com críticas ao governo atual.
        Discussões político-partidárias- após ficar por anos longe de partidos, Bolsonaro entrou no PL de Valdemar da Costa Neto, que já foi condenado por corrupção e permanece incorrigível como o Centrão inteiro. Tão volúvel quanto Ciro Gomes em partidos, seu Jair só entrou para tentar a reeleição.
        Mas, parece ser mais simplista nas suas escolhas de nomes que exaltem o seu, como Braga Netto, que parece cair como luva para vice. Já Lula procura é mais "matemático": a filiação de Alckmin ao PSB consolida a chapa e a liderança de Haddad ao governo de SP, embora França (PSB) não desista.
        Outro facilitador para o discípulo de Lula é a decisão de Guilherme Boulos (PSOL) para a Câmara dos Deputados, visando reforçar a futura base progressista no Congresso enquanto expressa apoio ao velho presidenciável.

O retorno refletido nos Estados

        Na Bahia, Rui Costa (PT) sai de cena para disputar o Senado e dá caminho a seu vice ACM Neto (União Brasil), hoje com 66% das intenções locais. Lula ensacou Jaques Wagner, rejeitado por 50% na corrida ao governo estadual. O próprio ACM Neto acenou apoio a Lula.
        Em Pernambuco, Lula diz apoiar Paulo Câmara (PSB) à petista Marília Arraes, que migrou para o inorgânico Solidariedade de Paulinho. O que revela um certo gosto amargo para a jovem, que se sentiu excluída pela velha guarda do PT no Estado, que pareceu não se atentar às suas propostas.
        No Ceará ainda não definiram nome, mas qualquer um que Lula e o discípulo Camilo Santana apoiar vence o bolsonarista Capitão Wagner (União Brasil): os PDTs Isolda Ceta e Roberto Cláudio, e o tucano Chiquinho Feitosa. Explica-se: o Estado é reduto eleitoral de Lula.
        É possível que o restante do Nordeste acompanhe essa tendência pela preferência de apoiados por Lula, como o velho aliado Renan Calheiros em Alagoas, apesar de ter votado pela saída de Dilma por chantagem do MDB. Mas sua atuação na CPI da C19 pode contribuir muito.
        No Rio, a situação está bem clara: o nome apoiado por Lula é Marcelo Freixo (PSB), em segundo na preferência, em empate técnico em Claudio Castro, governador após impeachment de Witzel. Pode virar no segundo turno, a depender das flutuações políticas no decorrer do ano.
        MG está como o Ceará: qualquer nome apoiado por Lula venceria o bolsonarista Zema, líder nesse momento. Um forte candidato para apoio lulista é o PSD Alexandre Khalil, prefeito de BH, popular por sua atuação. É aguardar o manifesto oficial 
        No Sul, SC se perde em vários empates técnicos, até um petista (o líder mal chega a 20%). No RS ainda impera preferência à direita. No PR Ratinho Jr. segue à frente, seguido de Roberto Requião (PT). A liderança de um cara hostil a servidores públicos em geral marca a imunidade paranaense à sensatez.

        Nesse momento de fim de março, o novas pesquisas do Ipesp e do DataFolha revelam o retorno de Lula a uma liderança mais folgada em relação ao vice Bolsonaro. Há explicações para esse alívio, uma delas a tendência observável de voto maior em governáveis apoiados pelo petista nas regiões citadas. 
        Outra explicação que pode estar por trás desse retorno está na oscilante relação de Lula com canais populares das redes sociais. Pois coincidiu a supracitada queda de fevereiro com a restrição aos poucos canais de esquerda no Youtube e Facebook. No início de março, sua equipe apostou na diversidade de canais para entrevistas e lives.
        Um importante canal de esquerda no Youtube que muito aguarda uma live é o Portal do José, do advogado e youtuber José Fernandes. O professor de Direito Constitucionalista deverá ter mais paciência, já que a equipe do presidenciável já tem planos confirmados novos compromissos nas redes sociais. Que o excelente canal tenha sido incluso na lista.
        Nesse ínterim, Bolsonaro pode a ceder aos apelos dos servidores federais com salários congelados desde 2016 para um reajuste de 20%, para repor as perdas com a inflação oficial recente. Por outro lado, assinou três PLs e dois decretos, com mudanças no código penal e na legítima defesa, bem como o conceito de terrorismo.
        As medidas aliviantes anteriores3 assinadas por ele se revelaram uma forma de recuperar o fôlego entre os eleitores pobres e para agradar seus bolsominions - grupo provavelmente reduzido devido às mortes por C19 após o libera geral da vacinação. Muitos eram contrários.
        Mas, por outro lado, as sanções às recentes propostas supracitadas podem não agradar a parcela evangélica democrática e contrária à violência, bem como a maior parte da população, que em pesquisa realizada em 2019 se manifestou favorável à posse, mas contra o porte de armas desejado pelo governo.
        Especialistas ouvidos pelo Globo criticaram as sanções como a liberação da "licença para matar", e entre estes, os juristas apontaram clara inconstitucionalidade no conceito proposto de terrorismo: na prática, "a intenção das propostas é a criminalização dos movimentos sociais".
        Eleitoralmente, Bolsonaro atira de novo no pé. Temporário, o Auxílio Brasil nem ilude muitos dos cidadãos necessitados, que antes tinham a segurança do permanente Bolsa Família, mesmo limitado. E importante parte do eleitorado evangélico já se manifestou voltar-se para Lula ou Ciro.
        Lula poderá usar de sua astúcia política para se aproveitar das mais novas escorregada de seu adversário. Está melhorando, mas depois do alerta amarelo aceso no PT e na sua equipe, ele percebe, com sua velha astúcia política, que pode mais. Quim sabe.
        
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Imagens: Google (fotomontagem da autoria deste artigo)

Notas da autoria
1. Menção para evitar generalização na geral evangélica. A maioria dos protestantes da "velha guarda" (históricos ou episcopais) escolheu Haddad. São os luteranos e (antigos) metodistas, batistas e presbiterianos.
2. Será abordado no tema da teocracia no bolsonarismo, ainda a ser publicado.
3. Referentes a aumentos nos valores dos saques do FGTS e quanto ao PIS/PASEP. 

Para saber mais
- https://www.brasildefato.com.br/2022/02/17/distancia-entre-lula-e-bolsonaro-caiu-entenda-o-que-diz-a-pesquisa-poderdata
- https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/03/4995269-pesquisa-mostra-que-79-dos-baianos-rejeitam-reeleicao-de-bolsonaro.html
- https://revistaforum.com.br/politica/2022/3/22/qualquer-candidato-apoiado-por-lula-camilo-vence-no-ceara-aponta-pesquisa-real-time-111913.html
- https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2022/03/19/interna_politica,1353893/pesquisa-diz-que-kalil-vence-zema-se-tiver-apoio-de-lula-em-minas.shtml
- https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50522542 (crítica de juristas e especialistas às medidas sancionadas pelo governo)
- https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/03/25/bolsonaro-anuncia-projetos-que-alteram-legitima-defesa-e-definicao-de-terrorismo-especialistas-veem-licenca-para-matar.ghtml


domingo, 6 de março de 2022

Análise: além de osso, carne podre

 

        Que as cenas das enormes filas de supermercados encheram o mundo de espanto e certa consternação pelo retrocesso apresentado pelo Brasil, não se tem a menor dúvida. Ainda mais por ser o país que mais produz e exporta carne bovina do planeta, e quase lá de proteína aviária e suína.
        Mas agora, nem as classes C e a quase B escaparam de reveses na aquisição de carnes em geral. Enquanto ainda não precisam pegar restos antes descartados ou usados em indústrias de embutidos, gelatinas, balas de goma, ração e matérias plásticas, elas deparam com má qualidade ou... podridão. Isso mesmo. Carne podre.
        O crescimento inaudito das denúncias se encontra no site Instituto Reclame Aqui, portal eletrônico com 30 milhões de cadastrados. Além da resolução de conflitos e avaliação da reputação de empresas e serviços, ele tem grande volume de informações adicionais acessíveis aos consumidores.

Um problema mais amplo

        O primeiro raciocínio que vem em mentes analíticas é: se o Brasil é o maior produtor de carne bovina e um dos maiores de carne aviária do mundo, por que chegamos a 25 milhões (mais de 10%) em miséria e fome, e 135 milhões (mais de 50%) em insegurança alimentar, segundo dados do IPEA?
        Bem, antes de irmos adiante no objetivo, vale aqui um spoiler explicativo para combater confusão: por insegurança alimentar se define a condição em que pessoas ou grupos não sabem se terão o que comer no dia seguinte, com risco de subnutrição e/ou desnutrição. Já a fome é a condição já instalada de ausência de alimentação por um período grande, amainada somente por solidariedade eventual.
        O consumo de carne baixou. Em maio de 2021, segundo a CNN Brasil, a média foi reduzida a taxa similar à de 25 anos atrás, na média de 4% no período 2020-21, com 26,7 kg/ano/ pessoa. Seis meses depois, o Bloonberg Business1 revela rebaixamento a patamar similar ao de 28 anos atrás, chegando a 25 kg/ano/pessoa. A única exceção é a carne suína, menos cara.
        Os dados do Bloonberg Business podem parecer pouco significantes para qualquer leigo, ou para economistas tipo Paulo Guedes da vida. Mas, seguindo-se a realidade da economia popular, a coisa é bem maior e se relaciona com o maior peso inflacionário sobre a patuleia.
        Os dados dessa redução no consumo geral não foram postos pelas mídias à toa. Eles foram obtidos por minucioso estudo de série histórica, feitos pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A série revela forte queda após pico entre 2000 e 2014.
        Hiperinflação na economia popularA hiperinflação dos preços é o principal fator da redução de consumo, que soa drástica para uma cultura que supervaloriza a grande ingestão de proteína. Um paradoxo que só tende a aumentar, considerando-se a incessante política de cortes que subtraem a renda familiar até na classe média.
        A suspensão temporária da importação da nossa carne bovina pela China, devido a achados de doença da vaca louca (causada por príons e contraída por quem ingerir a carne doente) não fez os megapecuaristas e frigoríficos baixar os altos preços do excedente retido, resultando na decomposição no estoque, que foi liberado para comércio e consumo internos, aliviando o prejuízo dos envolvidos.
        Isso tudo revelaria, na prática, um problema mais amplo, mas desconhecido da patuleia por falta de divulgação na grande mídia: obediência a uma ordem do mercado. Sim, do grande mercado de capitais. É exatamente o mesmo fator que eleva absurdamente os preços dos combustíveis, tema já tratado no blog.
        Ressalta-se, porém, que nenhuma fonte afirmou tal ordem, nem pelo investigativo The Intercept. Pelo menos não ainda, por falta de dados que possam revelar o esquema, o que leva ao cuidado de só especular. Mas, em linhas gerais, a natureza da coisa toda é, no mínimo, muito, muito parecida, daí a suspeita. 

Solução "sádica"

        A redução consequente do consumo em decorrência da alta extrema dos preços preocupou em especial os comerciantes de açougues, em geral microempresários, no temor de significativo prejuízo sobre suas vendas, após um período feliz de máxima no consumo nos anos 2000 a 2015, pelas médias de renda significativamente mais altas e economia estável com inflação controlada.
        A alternativa desses comerciantes açougueiros foi uma ideia com jeito de perversa ou sádica: se voltar para as restos (carcaças - pelancas, tendões, enervações e vasos), separados no processamento dos cortes de primeira, segunda e terceira categorias, como produtos rentáveis, uma alternativa para compensar ou minimizar o prejuízo potencial da baixa venda das peças obtidas dos abatedouros.
        E não tem sido tão barato para os consumidores finais: os ossos, fonte do famoso mocotó (medula esponjosa presente em alguns ossos do esqueleto), são vendidos de R$ 3 a 8, e as carcaças (os restos moles) entre R$ 8 e 15, dependendo do comércio e da região do país. Agora, a carne podre entra no rol das novas alternativas rentáveis.
        E a carne podre? Bem, ela surge nas grandes promoções de segunda-feira dos supermercados, após um fim-de-semana pífio. Seus preços são costumeiramente mais altos do que dos restos acima citados, mas o pior disso não é a má apresentação no momento que quem está na cozinha abre o pacote.
        Mas, por incrível que pareça, a ideia de se capitalizar sobre rejeitos que antes eram destinados à indústria de transformação já mencionada foi iniciada pelos supermercados, provavelmente por terem sido os primeiros a previrem as consequências da queda de compra. Mas os açougues não perderam tempo, seguindo o modelo de seus grandes colegas comerciais.
        Tal ideia “brilhante” praticamente zerou as tais ‘filas do osso’ que antes obtinham gratuitamente essas carcaças dos caminhões de rejeitos, por falta de opções. São raríssimos os casos realmente solidários, destinados a famílias ferradas por desemprego e/ou suspensão do programa Bolsa Família, e ainda foram excluídas do provisório Auxílio Brasil.        
        Quem se sente leve e solto com isso é o governo federal. Sim, principalmente ele. Enquanto seu chefe curte a vida adoidado com picanhas superfaturadas a níveis estapafúrdicos, em claro deboche a seus eleitores mais pobres, a patuleia sofre para conseguir um mero pacote de restos ou carne podre.
        Enfim, essa solução na prática sádica, se materializa como mais um elemento da política de extermínio que atinge duramente as famílias desprivilegiadas e, hoje, ameaçam até a classe média.
        Sem poder escapar do capitalismo, mas pela saúde, lucram melhor os veganos e vegetarianos, que usam alternativas plant-based ("à base de plantas"), muitas delas imitando sabor de carne para a nossa memória afetiva, e mais variadas para livre escolha, muitas com vitamina B12 adicionada.
        E, nesse caminho alternativo, a classe média cada vez mais empobrecida se garante, com saúde para manter a sua pompa e seu nariz empinado para continuar vivendo com cara de riqueza.
        

Imagens: Google (fotomontagem pela autoria deste artigo).

Notas da autoria
1. É um portal de dados econômicos muito visitado pelos empresários ligados à produção (pecuária e indústria) e comércio de carne (extensivo a restaurantes, bares, hotéis e outros).

Para saber mais
- https://www.bloomberglinea.com.br/2021/12/29/consumo-de-carne-bovina-no-brasil-e-o-menor-em-28-anos/ (dez/2021).
- https://www.cnnbrasil.com.br/business/consumo-de-carne-no-brasil-cai-ao-menor-nivel-em-25-anos-com-disparada-de-precos/ (mai/2021)
- https://theintercept.com/2022/01/13/voce-esta-comprando-carne-podre/ (jan/2022)

        

sábado, 5 de março de 2022

Análise: a canetada de 90 Brumadinhos

 

        Mariana, 2015. Barragem do Fundão se rompe e um tsunami de rejeitos se espalha por quase 265 km² de área. 19 mortos, dano socioambiental no Rio Doce e adjacências, e perda de pastos, lavouras e pescado. A Samarco, da Vale-BHP-Billington, foi multada e depois perdoada.
        Brumadinho, 2019. Barragem Córrego do Feijão se rompe e espalha tsunami de lama de rejeitos. 278 mortos e desaparecidos, e dano ambiental severo em uma área de mais de 3 mil km². Destruição, poluição, desabrigo, sede e fome. As imagens ao lado não deixam mentir, mas os altos executivos seguem impunes.
        A Vale foi condenada a indenizar em R$ 2 milhões as famílias dos funcionários mortos, além de corrigir os graves danos decorridos. Percebendo os pesos dessas condenações, a Vale corre atrás de milionários recursos jurídicos de reversão, devido às provas de negligência na inspeção e na manutenção da barragem.
        Janeiro de 2022. Chuvas constantes castigaram dias a fio quase 800 cidades mineiras, com transbordamento de rios, mananciais e, claro, barragens. Na trégua de fevereiro vem o imenso sacrifício dos locais pela recuperação do que for possível.
        Os casos supracitados demonstram como modificações profundas na fisiografia ambiental podem desencadear consequências imprevisíveis e em larga escala. Disso sabemos bem, mas apesar de tudo, parece não aprendermos. Agora, se tudo isso acima assusta, imaginem o que está por vir.

Barragens x vidas

        Que a mineração tem sido a maior riqueza de MG, ao lado da agropecuária, todos sabemos. Desde os tempos dos bandeirantes, que desbravaram o vasto interior, viram várias preciosidades brotando da terra, escravizaram indígenas e negros até a última gota de suor e sangue, e a expressão virou o nome oficial da província e atual estado de Minas Gerais. 
        Hoje, MG é campeão de imensos buracos de minas e suas barragens de rejeitos, antes símbolos de progresso para as mentes humildes, e hoje, símbolos de temor, danos e mortes, motivados em especial pela negligência dos gestores dos megaempreendimentos, com o silêncio obsequioso dos governos.
        Há 6 dias, sete cidades estavam em alto risco de rompimento da barragem Usina Carioca: Pará de Minas (local), Onça de Pitangui, São João de Baixo, São João de Cima, Casquilho de Baixo, Casquilho de Cima e Conceição do Pará. 4 dias depois, mais três entram na lista: Ouro Preto, Barão de Cocais e Nova Lima, esta última da grande BH.
        Segundo o G1, a própria Vale alertou o governo mineiro sobre o perigo iminente. Há dois anos, a empresa teria evacuado moradores e desativado as barragens, agora reativadas e a um passo de causar novas tragédias socioambientais.
        Agência reguladora- apesar dos alertas gerados pela mineradora, a ANM - Agência Nacional de Mineração, do Ministério das Minas e Energia, afirmou em nota que sua força-tarefa que monitora as estruturas não identificou qualquer situação de emergência. Uma afirmação imprudente.
        E também sem lógica matemática contextual. Afinal, se Zema ainda errático no caso Capitólio, já foi alertado, por que a ANM nega? Quem mente aí, o G1 ou o governo? As imagens acima já dão a resposta.
        A situação de MG é apenas um exemplo do que algumas barragens já causaram e outras estão para ferrar a qualquer momento. Mas, se preparem: o pior ainda está por vir. 

90 Brumadinhos

        Enquanto somos bombardeados por tendências noticiosas como essas, um segredo foi descoberto e posto à tona. Também se refere à construção de barragens, em local totalmente novo, em uma área de preservação permanente. Por si só, violação ambiental já virou tradição. Mas tal segredo é novo.
        Trata-se de um megaprojeto a ser implantado em grande área, parte desta dentro dos limites de área de cerrado preservada no norte mineiro. "Uma gigantesca mina de ferro e duas barragens com 90 vezes o volume de rejeitos de Brumadinho devem se tornar parte da paisagem de cerrado no norte de MG". Sim, isso mesmo. 90 Brumadinhos à vista.
        Multipliquem 3000 da extensão do desastre de Brumadinho por 90, e tentem imaginar a extensão do projeto das represas, em uma área de especial interesse para estudos da vida natural e da história geológica e da pré-história humana no Vale das Cancelas. Fora o impacto na vida do povo local.
        Longa e rica em detalhes, a matéria do The Intercept Brasil (TIB) narra o enredo em que os atores agem com intento bem obscuro, ferindo leis pétreas, para materializar o megaempreendimento da sino-brasileira Sul-Americana de Metais (SAM), controlada pela Honbridge Holdings, em Hong Kong.
        Investimento- o prometido vale US$ 2,1 bilhões em extração e beneficiamento de minério e 1,4 bilhão em mineroduto de 478 km, passando por 9 cidades mineiras e 12 baianas, até descarregar num porto, em Ilhéus. A equipe multiprofissional envolvida acredita haver reserva suficiente de ferro para minerar por anos.
        Segundo os investidores, o orçamento total do projeto, em reais, chega a quase R$ 20 bilhões, o equivalente ao inicialmente orçado para a obra da polêmica usina de Belo Monte (que findou sugando o dobro do esperado, gerando onda de protestos ambientalistas e indigenistas no país).
        Após quase 10 anos de embargo pelo Ibama, a estrutura foi liberada em 2019 pelo presidente do órgão Eduardo Bim, nomeado pelo ecocida ex-sinistro Ricardo Salles. A insana canetada de Bim se deu apenas 6 meses após o trágico e extenso horror causado da barragem desabada de Brumadinho.
        Estratégia- Bim passou por cima dos analistas-chefes responsáveis, qualificados servidores de carreira. Em seu parecer, ele disse aos gestores mineiros para fatiar o projeto em duas etapas, passando assim a impressão ao público de impacto socioambiental menor e a coisa sair do papel. A estratégia só deu certo por ter sido feita por via desonesta.
        Aliás, de qualquer nome de confiança indicado pelo governo Bolsonaro, seria ingenuidade esperar resposta com um mínimo de honestidade, razoabilidade e sensatez.

Alto risco

        Apesar de o segredo ser exposto só recentemente, a investida da SAM ocorre desde 2009, quando da primeira negociação entre seus executivos e o governo Neves através do Projeto Bloco 8, documento que logo chegou ao secretário estadual do Meio Ambiente, Germano de Oliveira, que encaminhou à sede mineira do Ibama em BH.
        Mas, o Ibama da época funcionava: o documento não escapou ao crivo dos analistas técnicos, cuja ordem final, dada por sua chefia, foi de barrar o projeto devido ao grave risco socioambiental de proporção gigantesca e custo incalculável. Absolutamente insustentável, em todo sentido.
        Na avaliação dos técnicos, o impacto já se iniciará na supressão sumária de 70 nascentes numa região naturalmente pouco chuvosa, ameaçando seriamente a sobrevivência dos mananciais de superfície que sustentam a diversidade biótica e as comunidades tradicionais seculares. A contaminação da água subterrânea pela mina e percolação da água de rejeito agravará a situação socioambiental.
        Local valioso- o local indicado pelos executivos da SAM é o Vale das Cancelas, no norte de MG. Aos olhos do governo e da SAM, um paraíso ferrífero. Aos olhos de analistas do Ibama, estudiosos de ciências naturais e turistas, um belo patrimônio natural. E aos moradores tradicionais, seu sustento e história.
        O Vale das Cancelas compreende a porção mordeste do Parque Estadual Grão Mogol, uma área de preservação ambiental (APA) que abarca a cidade de Grão Mogol e adjacências, mais ao sul.
        O clima local é tropical subúmido, com precipitações irregulares. Sua geologia tem formações sedimentares e ígneas1 bastante diversas erodidas pela água e pelo vento, entre tabuleiros, chapadas e planícies onduladas e amplas. 
        O conjunto revela um ambiente complexo de vegetação diversa (uma transição de cerrado, mata-seca e caatinga), nascentes, vazantes, rios, lagos e nichos brejosos, conhecido localmente como "gerais" em alusão à sua própria diversidade, a ocupar tanto a extensão do parque quanto o vale.
        O Vacaria é o principal rio do conjunto hidrográfico regional, que também abrange outros, como Ventania, Jequitinhonha, Itacambiruçu e seus afluentes, que desembocam em lagos, brejos ou quedas d'água vertendo para formar piscinas naturais aqui e ali, especialmente em temporada de chuvas.
        Tais afluentes já foram perenes, formando rica rede d'água. Agora estão intermitentes, devido às monoculturas de eucalipto, árvore australiana usada para secar os pântanos no Rio para combater a malária há mais de 100 anos, por sugar até 550 litros por dia. Os afluentes só oferecem água durante as chuvas.
        Tradicionais ameaçados- na região do Vale das Cancelas há povoados de pequenas propriedades rurais dos geraizeiros, famílias tradicionais que vivem da agricultura de subsistência. A sua pecuária é pequena e solta, e as roças são de milho, feijão, mandioca, hortifrútis e plantas medicinais.
        Somente as sobras da produção são comercializadas, em comunidades vizinhas ou em feiras, em forma inteira ou processadas e embaladas. Alimentando-se das ervas nativas, o gado gera baixíssimo custo de criação e manutenção, sem afetar negativamente o ambiente.
        Essa prática denuncia a antiguidade e sabedoria seculares dos geraizeiros, na convivência pacífica com os ecossistemas e as belezas locais turisticamente atrativas, numa relação estreita, engajadora por sua proteção. Pois, no fundo, sabem que algo muito ameaçador pode surgir ali.
        Esse sentimento surgiu em 2011, após eles notarem um grupo de estranhos de roupas sociais que conversavam entre si como que em sussurros, indiferentes aos locais mais próximos, a perscrutar com atenção o lugar ora clicando com seus celulares, ora telefonando. 
        Mas o que eles provavelmente não sabem é das dimensões reais da SAM e de seus impactos, como a remoção de comunidades inteiras do local de origem para terminarem em outro de natureza parecida. Mas, já com sobrevida ameaçada pela futura falta da água de superfície e da contaminação dos lençóis freáticos.

Violação no pacto federativo

        Por pacto federativo se define o conjunto de regras que determina a divisão de responsabilidades públicas para a União, Estados e Municípios, tanto no campo de atuação quanto na participação nos movimentos de recursos públicos e outros atributos relacionados, segundo o art. 1º da Constituição. 
        Por ser constitucional, os juristas afirmam esse conceito como a essência do pacto, independente das recentes propostas de alterações em alguns dispositivos legais que já circulam no Congresso desde que Jair Bolsonaro tomou posse da presidência da República.
        No tema tratado neste presente artigo, o pacto federativo foi lembrado pela advogada e antecessora de Bim, Suely Araújo, como sendo o dispositivo ferrado pela violação à Constituição, com a instalação da megaestrutura. Suely explica pelo menos dois aspectos principais dessa ferrada:
        1. a instalação da mina e das barragens de contenção de resíduos em área reconhecida e protegida por lei federal que delega, em certa medida, a responsabilidade a MG pela colaboração, cedendo ou embargando licença para edificar - se ceder, arcará sozinho com os estragos socioambientais da SAM.
        2. a megaestrutura atingirá dois Estados (a mina, as barragens e início do mineroduto em MG e a maior parte na Bahia), e a previsão é a de que a licença e posterior fiscalização nas ações da mina já instalada caberão apenas a Minas Gerais, retirando da Bahia o direito fiscalizador sobre o duto em seu solo.
        No relato de Suely, não bastando as duas violações, o projeto também fere a lei de segurança das barragens ao apresentar distância menor do que 10 km das comunidades tradicionais realocadas, tendo-se em conta a chance de avarias com potencial de vazamento acidental por chuvas concentradas ou por manutenção insuficiente ou ausente.
        O secretário Germano- o empresário Germano Vieira foi nomeado secretário do meio ambiente (Semad-MG) ainda na era Aécio-Anastasia. Ele foi aproveitado depois pelo governador eleito Fernando Pimentel (PT) em 2010. Era figurinha fácil nos círculos dos executivos do ramo da mineração.
        Essa boa relação se estendia aos representantes da SAM, de quem recebeu sem hesitar o projeto Bloco 8, que foi encaminhado ao Ibama-MG para avaliação técnica. Recebeu nova visita dos executivos da empresa, aos quais prometeu dar-lhes a resposta do órgão. Após certo tempo chegou a resposta.
        Segundo os avaliadores, o projeto apresenta dados da estrutura subestimados para a cota mínima estimada de minério extraído, e das capacidades também estimadas das barragens de rejeitos, com o objetivo claro de causar a ilusória sensação de grande margem de segurança socioambiental.
        O grosso parecer técnico foi parar em Belo Horizonte (Semad-MG) e em Brasília (MMA e Ibama), havendo assente do órgão ambiental em impedir a licença. Mas Germano foi mantido no posto para, na era Zema, dar nova chance  à SAM e ser substituído depois pela atual Marília Carvalho de Melo.
        Era Bolsonaro- Bolsonaro sempre foi anti ambiental. Só manteve o MMA por intensa pressão popular e do Congresso. Mas vingou ao nomear Ricardo Sales ministro. Salles ficou conhecido por se juntar a milicos para comandar exportação ilegal de madeira amazônica.
        Para presidir o Ibama, Salles substituiu Suely Araújo por Eduardo Bim, que liberou as atividades ilegais em áreas protegidas e terras indígenas, bem como licenças a projetos antes embargados, entre eles o Bloco 8 da SAM, que trata sobre a estrutura de mineração e do orçamento.
        Governo Zema- Para que a SAM toque o projeto, Zema, Germano Vieira e Thiago Toscano (ex-diretor presidente do Instituto de Desenvolvimento Integrado, Indi) assinaram protocolo de intenções que viabiliza finalmente toda a prática da instalação ad megaestrutura no Vale das Cancelas.
        Sabrina Felipe (The Intercept) indagou à Secretaria de Desenvolvimento Econômico sobre liberar um projeto que viola a lei mineira Mar de Lama Nunca Mais. A direção foi errática: tergiversou sobre "detalhes sigilosos dos protocolos de intenções, conforme decreto que regula o acesso às informações do Executivo".
        É o decreto 47.740/2019. Ele fere a publicidade constitucional, pois é dever de todo ente público informar à sociedade de seus atos e objetivos, direta ou indiretamente, via meios comunicativos oficiais, por se sujeitarem ao controle social, salvo as relativas à segurança das autoridades públicas e familiares. 
        Atos públicos envolventes um setor que envolve a biosfera planetária e a vida humana, portanto essencial, devem ser informados à sociedade sim, e qualquer sigilo em protocolos de intenções fora da previsão legal, como o caso da SAM, se torna ilegal. O citado decreto bonificou as mineradoras.
        Obstáculos- se a SAM e o governo estadual se felicitaram, um inquérito do MP-MG e MPF deu origem à ação civil pública ajuizada no fim de 2019 na 3ª Vara de Justiça Federal em Montes Claros, onde o juiz federal Marco Fratezzi Gonçalves favoreceu o MPF determinando que cabe só ao Ibama licenciar a atividade da SAM. Mas, havia uma brecha.
        Mas, um despacho de 08/2020 permitiu ao Ibama delegar a licença a MG. Em 09/2020 a SAM se reuniu com Bim em videoconferência, sem revelar detalhes da pauta. Em 03 e 04/2021, Bim assinou 2 acordos de cooperação com a Semad, que formalizam outorga ao governo de MG licença à SAM. 
        Delegação de licença- a permissão de licença pelo Ibama a Estados existe há 24 anos e se baseia em resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) de 1997, e na lei complementar 140 de 2011. Desde então, 85 licenças (rodovias, hidrelétricas, portos, projetos de mineração e outros) foram delegadas assim, mas nenhum deles como o mineroduto da SAM. 
        Mas, muitos casos seguem em tramitação desde 2011, segundo informa a Semad-MG. O caso da SAM se seguiu graças aos acordos de cooperação assinados por Bim e pelo governo do estado. Uma questão de privilégio, estendida à própria Semad-MG para licenciar por dois Estados (mineroduto).
        E na Bahia?- A Semad-MG disse que procurou o governo baiano para tratar sobre os impactos do mineroduto da SAM. Repórteres investigativos da TIB procuraram a Secretaria de meio ambiente e o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, que não deram respostas sobre o tema.
        Afastamento de BimBim foi afastado por 90 dias pelo STF logo após assinatura dos acordos de cooperação, graças a uma denúncia do TIB em 2020 de afrouxamento de regras ambientais para facilitar o tráfico internacional de madeira e liberar o garimpo ilegal. Após os 90 dias, retomou a presidência, continuando a sua atuação ecocida, que segue.

Percepções de Suely Araújo e outros nomes: reflexões

    
    
A cientista política Suely Araújo foi nomeada presidente do Ibama em junho de 2016. Ela foi avaliada pelos servidores do órgão como liderança de "boa ética ambiental". Foi mantida na era Temer, apesar de dos rumores de possível "novo nome". E com Bolsonaro presidente, o ministro Salles e asseclas de confiança.
        Salles veio para depreciar tal ética ambiental e administrativa. Para completar, já pensava em radicalizar no Ibama, daí veio um plano: criar uma denúncia contra Suely, que já juntava suas coisas para se demitir, por conhecer o ministro.
        Ela saiu logo após o post de Salles no Twitter sobre o contrato "caro e irregular" de R$ 30 milhões da locação de caminhonetes para rondas e flagrantes de crimes ambientais. Evitou conflito e explicou o valor baseado no número de veículos, frequência rotineira e combustível, via pregão publicado no DOU em 2016.
        No Twitter, Bolsonaro elogiou o post de Salles como exemplo de "desmonte de irregularidades da esquerda", sem provas. Suely apenas classificou as publicações como "desconhecimento". 
        Hoje em dia, ela atua como especialista em políticas públicas no Observatório do Clima, de onde percebe e aponta os problemas legais e técnicos no caso da SAM (citação com adaptações):
        "O controle a ser efetuado pelo órgão de apenas um Estado, sem um possível acordo entre eles, pode vir a prejudicar a gestão ambiental do empreendimento", por "invasão de atributos legais de um Estado por outro"; pode haver "dificuldade operacional nas vistorias [...] em eventuais aplicações de sanção administrativa [....] caso (haja) infrações pelo Estado que não participa do licenciamento".
        Sobre federação, ela se refere ao art. 60 da CF: "há que se lembrar que o respeito à federação está na essência da Constituição. Tanto é assim que o tema é um dos poucos (como) cláusula pétrea". Ela aponta uma PEC submarina do Congresso que propõe abolir a forma federativa de Estado.
        Para mineradoras tão ambiciosas quanto a SAM, tal abolição é supra sumo dos desejos, tal como um supercelular para um adolescente, freado no caráter pétreo do art. 60, como se esbarra na falta de grana de compra.
        Autor de Avaliação de impacto ambiental: conceitos e métodos e professor da Escola Politécnica da USP2, Luis Sanchez descreve problemas na fragmentação pela SAM e liberada pelo Ibama: "com avaliação separada, não se analisam os impactos que podem resultar da construção e da operação simultâneas de ambos os empreendimentos. As medidas [...] para mitigar esses impactos cumulativos não são consideradas".
        O professor Bruno Milanez, da Faculdade de Engenharia da UFJF2, concorda: "se os estudos de impacto são feitos (separadamente), é a mesma coisa que comer um ovo cru e depois um pedaço de queijo para enfim dizer que comeu uma omelete".
        A defensora pública Ana Cláudia A. Storch considerou "permissivos" os parâmetros de negociação dos entes estatais com a SAM, dada a premissa de "desenvolvimento econômico" que move até o MP. Mas adverte: "não temos nem clima, água e meio ambiente que possam suportar tamanha exploração sem critérios objetivos".
        População ignorada- Após a assinatura dos dois acordos entre Ibama e governo de MG, o MP- MG3 de Jarbas Soares Jr (nomeado por Zema) favoreceu a SAM. Jarbas assinou termo de compromisso para a SAM bancar uma equipe técnica que auxilie o órgão a entender sobre licenciamento. Depois, Zema e Jarbas tiveram a audácia de publicar fotos da solenidade nas respectivas contas no Instagram. 
        Tal equipe técnica é da estadunidense Aescon, que presta serviços de assessoria a gigantes como Rio Tinto, BHP Billington (envolvida na tragédia de Mariana) e Anglo American, estas últimas com negócios no Brasil.
        Em vídeo-ligação, Jarbas disse que o acordo assinado "é exatamente para ouvir a comunidade", e afirmou que "os que serão mais afetados pela empresa não participaram da formulação do acordo". Houve mesmo participação popular?
        Atenta, a comunidade acadêmica representada pela assessora jurídica Margarida Alves e grupos como Associação Brasileira de Antropologia criticou a pressa do MP-MG na empreitada, e desmentiu Jarbas: "nenhuma comunidade teve acesso ou foi consultada quanto ao acordo firmado".
        Jarbas é o mesmo que, junto com o MPF, DP-MG, DPU3 e Vale, acordo bilionário como forma de reparação pelo crime socioambiental em Brumadinho. Esse acordo é criticado pelo movimento dos atingidos pela lama da empresa, por não ter sido chamado a participar da negociação, que foi sigilosa. O mesmo pode ter sido o acordo firmado com a SAM.
        O que se confirmou em ligação feita pelo TIB à SAM para acesso aos acordos: "o acordo possui cláusula de confidencialidade, principalmente considerando que os trabalhos são desenvolvidos para o MP-MG como destinatário da avaliação que ainda está em curso, não cabendo qualquer divulgação pela SAM".
        Se os locais foram totalmente desconsiderados nos acordos, imaginem sobre a capacidade retida pelas barragens e o cenário de um hipotético derrame de lama.
        Impactos da SAM- Por ser proibida por lei, mas constada no Bloco 8, a construção de 2 barragens equivalentes a 90 Brumadinhos a menos de 10 km das comunidades já constitui prova pesada para um ente ambiental indeferir e embargar em definitivo, sem caber recurso judicial.
        A lei veda licença ambiental para construção, instalação, ampliação ou alteamento de barragem cujos estudos de cenários de ruptura identifiquem comunidades na zona de autossalvamento, área de raio até 10 km de distância da linha de projeção da eventual língua de lama. 
        Estima-se para a barragem maior reter quase 900 milhões de m³ de rejeito (em Brumadinho vazou 12 milhões de m³ por mais de 3 mil km²). Dificílimo imaginar a área de hipotético derrame do volume projetado. E, calma que nem precisa chegar a tanto para se saber dos impactos físicos irreversíveis.
        A simples construção levará à perda de terras de famílias tradicionais em três municípios da área; submergirá cemitérios, casas e grande parte de cerrado do Parque Nacional de Grão-Mogol. Além de inacessível às famílias, os três municípios terão abastecimento seriamente comprometido.
        E disso tudo as populações locais certamente não têm a menor ideia. 

Esperança- Em dezembro-/2021, a DPU e a DP-MG ajuizaram ação civil pública contra governo de MG, SAM, Lotus, ANA3 e Ibama, pedindo suspensão do projeto até que conclua a regularização fundiária do território dos geraizeiros impactados, alegando violação do direito à consulta prévia, livre e informada dos povos tradicionais do Vale das Cancelas.
        Tal prazo para se efetuar, de forma completa e detalhada, a regularização fundiária e o direito à informação prévia, livre e íntegra que permita aos habitantes tradicionais da região pode ser bastante longo, principalmente pela sujeição de envolver um trâmite judicial que pode se arrastar por anos.
        Que assim ocorra. Que a justiça funcione pra valer - até para que o meio ambiente sustente todas as populações, mesmo que meliantes socioambientais, sejam eles empresários, políticos, procuradores, ou aqueles por mera vocação, também vivam, com suas eternas ameaças. 
        
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Imagens: Google (montagem da autoria do artigo) - barragem de Brumadinho, para ilustração.

Notas da autoria
1. Tipos rochosos por processo gerador: ígneas (magma intruso na crosta ou extrusão vulcânica); sedimentares (por deposição, condensação e solidificação) e metamórficas (ígneas ou sedimentares retrabalhadas em profundidade e soerguidas à superfície por tectonismo).
2. Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Universidade de São Paulo (USP) 
3. Siglas: ANA e ANM = Agências Nacionais de Águas e de Mineração; MP-MG e MPF = ministérios públicos MinasGerais e Federal; DP-MG e DPU = Defensorias Públicas de MG e da União

Para saber mais
https://theintercept.com/2022/01/11/barragens-gigantes-90-vezes-brumadinho-minas-gerais-ibama/
- http://www.evento.abant.org.br/rba/31RBA/files/1539444348_ARQUIVO_artigo_JulioCBorges_RBA2018.pdf
- https://oglobo.globo.com/politica/lama-da-barragem-em-brumadinho-afetou-area-de-quase-3-mil-quilometros-quadrados-23433589
- https://www.nexojornal.com.br/extra/2022/01/10/7-cidades-em-MG-est%C3%A3o-sob-risco-de-rompimento-de-barragem
- https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/01/13/tres-barragens-de-residuos-da-vale-em-mg-correm-o-risco-iminente-de-rompimento.ghtml
- https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/01/13/tres-barragens-de-residuos-da-vale-em-mg-correm-o-risco-iminente-de-rompimento.ghtml
- https://www.brasildefatomg.com.br/2022/01/17/artigo-mineradoras-tem-que-ser-responsabilizadas-pelos-estragos-das-enchentes (BdF 1)
- https://www.brasildefatomg.com.br/2022/01/17/caso-vallourec-revela-falta-de-prioridade-das-mineradoras-com-a-seguranca-da-populacao
- https://www.jusbrasil.com.br/busca?q=Responsabilidade+por+Rompimento+de+Barragem
- http://www.evento.abant.org.br/rba/31RBA/files/1539444348_ARQUIVO_artigo_JulioCBorges_RBA2018.pdf (estudo da 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, abordando geografia física, flora e fauna e a vida dos geraizeiros).
- https://www.ouvidoriageral.mg.gov.br/noticias/1385-normativos
- https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/07/presidente-do-ibama-pede-exoneracao-depois-de-ministro-questionar-contrato-de-aluguel-de-carros.ghtml

CURTAS 98 - ANÁLISES (Brasil- Congresso)

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