Que as cenas das enormes filas de supermercados encheram o mundo de espanto e certa consternação pelo
retrocesso apresentado pelo Brasil, não se tem a menor dúvida. Ainda mais por
ser o país que mais produz e exporta carne bovina do planeta, e quase lá de
proteína aviária e suína.
Mas agora, nem as classes C e a quase B escaparam de
reveses na aquisição de carnes em geral. Enquanto ainda não precisam pegar
restos antes descartados ou usados em indústrias de embutidos, gelatinas, balas
de goma, ração e matérias plásticas, elas deparam com má qualidade ou...
podridão. Isso mesmo. Carne podre.
O crescimento inaudito das denúncias se encontra no
site Instituto Reclame Aqui, portal eletrônico com 30 milhões de
cadastrados. Além da resolução de conflitos e avaliação da reputação de
empresas e serviços, ele tem grande volume de informações adicionais acessíveis
aos consumidores.
Um problema mais amplo
O primeiro raciocínio que vem em
mentes analíticas é: se o Brasil é o maior produtor de carne bovina e um dos
maiores de carne aviária do mundo, por que chegamos a 25 milhões (mais de 10%)
em miséria e fome, e 135 milhões (mais de 50%) em insegurança alimentar,
segundo dados do IPEA?
Bem, antes de irmos adiante no objetivo, vale aqui um spoiler explicativo para combater confusão: por insegurança alimentar se define a condição em que pessoas ou grupos não sabem se terão o que comer no dia seguinte, com risco de subnutrição e/ou desnutrição. Já a fome é a condição já instalada de ausência de alimentação por um período grande, amainada somente por solidariedade eventual.
O consumo de carne baixou. Em maio de 2021, segundo a
CNN Brasil, a média foi reduzida a taxa similar à de 25 anos atrás, na média de
4% no período 2020-21, com 26,7 kg/ano/ pessoa. Seis meses depois, o Bloonberg
Business1 revela rebaixamento a patamar similar ao de 28 anos atrás,
chegando a 25 kg/ano/pessoa. A única exceção é a carne suína, menos cara.
Os dados do Bloonberg Business podem parecer pouco significantes para qualquer leigo, ou para economistas tipo Paulo Guedes da vida. Mas, seguindo-se a realidade da economia popular, a coisa é bem maior e se relaciona com o maior peso inflacionário sobre a patuleia.
Os dados dessa redução no consumo geral não foram
postos pelas mídias à toa. Eles foram obtidos por minucioso estudo de série
histórica, feitos pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A série revela
forte queda após pico entre 2000 e 2014.
Hiperinflação na economia popular- A hiperinflação dos preços é o principal fator da
redução de consumo, que soa drástica para uma cultura que supervaloriza a
grande ingestão de proteína. Um paradoxo que só tende a aumentar, considerando-se a
incessante política de cortes que subtraem a renda familiar até na classe
média.
A suspensão temporária da importação da nossa carne
bovina pela China, devido a achados de doença da vaca louca (causada por príons e contraída por quem
ingerir a carne doente) não fez os megapecuaristas e frigoríficos baixar os altos preços do excedente retido, resultando na decomposição no estoque, que foi liberado para comércio e consumo internos, aliviando o prejuízo dos envolvidos.
Isso tudo revelaria, na prática, um problema mais
amplo, mas desconhecido da patuleia por falta de divulgação na grande mídia:
obediência a uma ordem do mercado. Sim, do grande mercado de capitais. É exatamente o mesmo fator que eleva absurdamente os preços dos combustíveis,
tema já tratado no blog.
Ressalta-se, porém, que nenhuma fonte afirmou tal
ordem, nem pelo investigativo The Intercept. Pelo menos não ainda, por falta de
dados que possam revelar o esquema, o que leva ao cuidado de só especular. Mas,
em linhas gerais, a natureza da coisa toda é, no mínimo, muito, muito parecida,
daí a suspeita.
Solução "sádica"
A redução consequente do consumo em decorrência da
alta extrema dos preços preocupou em especial os comerciantes de açougues, em
geral microempresários, no temor de significativo prejuízo sobre suas vendas, após um período feliz de
máxima no consumo nos anos 2000 a 2015, pelas médias de renda significativamente mais altas e economia estável com inflação controlada.
A alternativa desses comerciantes açougueiros foi uma ideia com jeito de perversa ou sádica: se voltar para as restos (carcaças - pelancas, tendões, enervações e vasos), separados no processamento dos cortes de primeira, segunda e terceira categorias, como produtos rentáveis, uma alternativa para compensar ou minimizar o prejuízo potencial da baixa venda das peças obtidas dos abatedouros.
E não tem sido tão barato para os consumidores finais: os ossos, fonte do famoso mocotó (medula esponjosa presente em alguns ossos do esqueleto), são vendidos de R$ 3 a 8, e as carcaças (os restos moles) entre R$ 8 e 15, dependendo do comércio e da região do país. Agora, a carne podre entra no rol das novas alternativas rentáveis.
E a carne podre? Bem, ela surge nas grandes promoções de segunda-feira dos supermercados, após um fim-de-semana pífio. Seus preços são costumeiramente mais altos do que dos restos acima citados, mas o pior disso não é a má apresentação no momento que quem está na cozinha abre o pacote.
Mas, por incrível que pareça, a ideia de se
capitalizar sobre rejeitos que antes eram destinados à indústria de
transformação já mencionada foi iniciada pelos supermercados, provavelmente por
terem sido os primeiros a previrem as consequências da queda de compra. Mas os
açougues não perderam tempo, seguindo o modelo de seus grandes colegas comerciais.
Tal ideia “brilhante” praticamente zerou as tais
‘filas do osso’ que antes obtinham gratuitamente essas carcaças dos caminhões
de rejeitos, por falta de opções. São raríssimos os casos realmente solidários,
destinados a famílias ferradas por desemprego e/ou suspensão do programa Bolsa
Família, e ainda foram excluídas do provisório Auxílio Brasil.
Quem se sente leve e solto com isso é o governo federal. Sim, principalmente ele. Enquanto seu chefe curte a vida adoidado com picanhas superfaturadas a níveis estapafúrdicos, em claro deboche a seus eleitores mais pobres, a patuleia sofre para conseguir um mero pacote de restos ou carne podre.
Enfim, essa solução na prática sádica, se materializa
como mais um elemento da política de extermínio que atinge duramente as
famílias desprivilegiadas e, hoje, ameaçam até a classe média.
Sem poder escapar do capitalismo, mas pela saúde, lucram melhor os veganos e vegetarianos, que usam alternativas plant-based ("à base de plantas"), muitas delas imitando sabor de carne para a nossa memória afetiva, e mais variadas para livre escolha, muitas com vitamina B12 adicionada.
E, nesse caminho alternativo, a classe média cada vez mais empobrecida se garante, com saúde para manter a sua pompa e seu nariz empinado para continuar vivendo com cara de riqueza.
Imagens: Google (fotomontagem pela autoria deste artigo).
Notas da autoria
1. É um portal de dados econômicos muito visitado pelos empresários ligados à produção (pecuária e indústria) e comércio de carne (extensivo a restaurantes, bares, hotéis e outros).
Para saber mais
- https://www.bloomberglinea.com.br/2021/12/29/consumo-de-carne-bovina-no-brasil-e-o-menor-em-28-anos/
(dez/2021).
- https://www.cnnbrasil.com.br/business/consumo-de-carne-no-brasil-cai-ao-menor-nivel-em-25-anos-com-disparada-de-precos/
(mai/2021)
- https://theintercept.com/2022/01/13/voce-esta-comprando-carne-podre/
(jan/2022)
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