Descendentes de escravos
libertos reunidos em comunidades preservando muito das tradições ancestrais, os
quilombolas estão no Brasil todo. As tradições estão na festa, na fé,
nas rezas e simpatias, na medicina tradicional e na língua, bem como na luta
contra a histórica marginalização imposta pela sociedade branca e cristã.
Até o dia 17/8/2023, um
quilombo em particular estava liderado por Bernardete Pacífico. Sim, foi: sua vida
teve um fim trágico. Mas, quem foi ela, e qual a sua importância? Escrutinar é
o objetivo deste artigo.
Mãe Bernardete
Bernardete Pacífico era mais conhecida como Mãe Bernardete, por ser mãe-de-santo (em ioruba ialorisà,
ou ialorixá, um elo direto entre orixás e o povo). Além de dirigir o terreiro,
ela liderava a comunidade Pitanga dos Palmares e recebia visitantes locais e
adjacentes e turistas curiosos ou fiéis. Era muito querida no quilombo e
respeitada em toda a região.
Essa reverência de décadas
transcende a fé. Ela coordenou a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de
Quilombos), lutando pela preservação do patrimônio socioambiental, cultural e
comunitário na terra da segunda maior população afro do mundo fora da África.
Teve uma vida ativa até 17/8, aos 72 anos de idade.
Ela foi assassinada a
tiros. Uma barbárie piorada em seus motivos, somados em um multifacetado rolo compressor que ameaça a sobrevivência de Pitanga dos Palmares, e demais
quilombos de todo o país.
Rolo compressor
Pitanga dos Palmares se
localiza na zona rural de Simões Filho. Remanescente secular de um quilombo antigo, ele atualmente
abriga 290 famílias e foi tombado pela Fundação Cultural Palmares. Mas ainda não tem o devido reconhecimento pelo Incra, o que o torna bastante vulnerável a ameaças.
Conflitos fundiários – localizado estrategicamente na zona metropolitana
de Salvador, Simões Filho tem área rural ambicionada pelo agro, e também sofre
pressão da expansão urbano-industrial por especulação imobiliária. Daí os
conflitos fundiários serem a maior ameaça sobre Pitanga dos Palmares e posseiros
familiares de pequenos sítios.
Grandes monoculturas de
cana-de-açúcar, frutas e milho avançam na zona rural da região. Atribui-se ao
agro a maioria dos assassinatos e expulsões de indígenas, pequenos sitiantes e
lideranças quilombolas. Até o momento, na região citada não há dados sobre
outras lideranças quilombolas além de Mãe Bernardete e o seu filho Fábio Gabriel, o Binho, entre lideranças vitimadas.
De qualquer forma, o agro
responde direta ou indiretamente por parte considerável dos assassinatos de mais de 40
quilombolas em 15 anos, e dos 796 indígenas que tombaram somente no período
2019 a 2022.
Missões religiosas – a conversão foi um facilitador da
colonização de terras antes dominadas pelos indígenas. Depois, “para civilizar
e progredir”. É a partir das missões cristãs pretéritas que culturas indígenas
inteiras foram extintas e os primeiros quilombos devastados, ao longo dos
períodos mais sombrios da nossa história.
Os missionários apenas
abriram caminhos para os mal-intencionados. Por outro lado, respondem até hoje
por dois crimes interligados: intolerância religiosa ligada ao racismo.
Voltando ao caso Pitanga dos Palmares, não há até o momento indícios de
possível relação entre fanáticos religiosos (que já invadiram o local antes) e
os homicidas.
Mas, a ameaça gospel à
cultura quilombola é extremamente forte e fortalecida pelo lobby político.
Hipóteses
É possível que Mãe Bernardete
tenha sido assassinada após esgotados todos os recursos por seus inimigos, seja
lá quem estes sejam. Seu filho Fábio Gabriel, o Binho, foi igualmente morto em
2017, um crime que até hoje não foi solucionado. Para as autoridades investigativas baianas, as
mortes são obviamente relacionadas. O problema é o autor, bem como seu(s) mandante(s).
Alertas acesos
O caso desperta muitos alertas, que vão além dos quilombos. O primeiro deles foi a Mãe
Bernardete ter pedido proteção nunca atendida pelo Estado. Ela precisou
recorrer às câmeras de segurança no seu terreiro, que foram quebradas pelos
invasores para evitar identificação em investigação posterior. Outros alertas
se destacam.
Ameaça e ausência do Estado – filho sobrevivente, Jurandir Pacífico acusa o
Estado de omissão. Primeiro, em não dar pistas da morte do irmão mesmo passados
seis anos. E agora, por não ter atendido ao clamor de sua mãe, que pedia
proteção diante da crescente frequência das ameaças, deixando o quilombo
mergulhado em medo e apreensão.
Invisibilidade – assim como os não-brancos das periferias urbanas, a
população quilombola sofre com a sua visibilidade reduzida a números trágicos impostos
pelo elitismo institucional. A proeminente Mãe Bernardete precisou ser
assassinada para estarrecer o país com a realidade vivida por todo esse conjunto
populacional.
Preocupados com o futuro do
quilombo onde nasceu e cresceu, Jurandir e família foram aconselhados a sair dele pela Secretaria de estadual
de Promoção da Igualdade Racial, cujos agentes se juntaram aos da PM-BA para proteger
a comunidade. O atual coordenador da Conaq Denildo Rodrigues disse que, só na
Bahia, 11 quilombolas foram mortos em 10 anos.
Intolerância religiosa – a intolerância religiosa é uma infeliz realidade
que o país não conseguiu superar. Talvez seja um reflexo da natureza
proselitista do cristianismo desde os seus primórdios na história. Mas vivemos um
contexto bastante diferente de antes, em que o conhecimento e a capacidade de
questionar nos dão mais racionalidade e tolerância.
A intolerância religiosa
não é somente uma derivação ou forma de racismo manifestada contra as fés de
matriz africana – ela existe também contra os xamanismos ou pajelanças
indígenas. Ela não permite reconhecer a real profundidade das influências
africanas em numerosos traços culturais. Daí se pregar sandices como “religião falsa”,
por exemplo.
Única proposta possível
O elitismo nos setores públicos
e privados está por trás do descaso sobre os grupos étnicos e culturais historicamente
marginalizados. Mas isso não significa, porém, que flagelos não possam ser
enfrentados. Investir pesado em política de reeducação massiva de promoção
da cidadania real será a única saída.
Ela deverá ser iniciada na
escola básica e continuar nas instituições e empresas. Claro que não há lugar
para ilusão: o prazo para resultar em mitigação será bastante longo, e somente
graças a uma aplicação permanente e pétrea. Talvez não vivamos o suficiente para
ver sua efetividade, mas as gerações futuras vão.
Mas, pode ser que, numa situação tão grave, fortalecida nos últimos anos pelo bolsonarismo, o investimento nessa educação qualitativa seja mesmo uma ilusão. Por outro lado, a repressão sistemática como única solução é ainda mais ilusória, pois já sabemos que não haverá resultado algum, nem a longo prazo.
E pensar nisso já nos felicita.
Para saber mais
- https://www.ipatrimonio.org/simoes-filho-quilombo-pitanga-dos-palmares/#!/map=38329&loc=-12.769365039836629,-38.38824239016606,17 (sobre o quilombo)
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