Na democracia, memória negada
Estamos em março. A maioria
nem se dá conta, mas este mês passou a ter não só um, mas dois fatos históricos
importantes. Um deles se deu em 31/3 e faz 60 anos, e outro no dia 20/3, bem mais
recente. O objetivo deste artigo é trazer à memória o valor sociopolítico
deles.
Golpe de 1964 – em
1960, Brasília já nasceu com crise política. Em 61, meses após a posse, Jânio
Quadros renunciou e seu vice Jango assumiu e enfrentou a crise. Mas, em sua
momentânea ausência, os milicos declararam vaga a presidência da República e
roubaram o poder em 1964.
O golpe-surpresa surgiu em
Juiz de Fora (MG), mas o povo só soube após ver abastados e ultracristãos o
festejarem no centro-sul carioca e em Brasília. Daí nasceu o regime de terror
pró-capital acordado entre milicos, grandes empresas e elite, para eliminar os
críticos ao stablishment.
A cada novo achado, o
número de vítimas da ditadura se altera. Só de mortos são mais de 9 mil
contando indígenas, e ainda não se sabe de quantos desaparecidos. Os milicos
sádicos morreram impunes: nem a CNV¹ de 2012 se moveu. O clima de dívida às
vítimas se mantém.
Festa militar –
entre 2019-22, Bolsonaro publicou “ordem do dia” permitindo a comemoração do
golpe nos quarteis. Os milicos sorriram de satisfação. De volta ao poder, Lula
revogou tal ordem e frustrou os milicos ao suspender a festinha.
Veto de Lula–
no seu festivo retorno, Lula esperançou as vítimas do passado após revogar a
festa militar. Filho de Jango, João Vicente Goulart propôs o Manifesto pela
Democracia, por questão de memória às vítimas do golpe, com apoio de Flávio
Dino e Silvio Almeida.
Os ex-ministros propuseram a criação de um
memorial do governo. O MPF recomendou reinstalar
a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada em 1995 e
extinta por Bolsonaro em 2022, para abrir nova CNV.
Lula assentiu com a PGR, mas vetou o manifesto: “não
vamos remoer o passado”, alegou, argumentando que nas casernas não haverá
mais comemoração de 1964. João Vicente acusou a “política do esquecimento”, o
que é grave, dado o valor histórico do tema. Mas, vale refletir sobre
as intenções do governante.
Quem tem razão? – de
fato, a crítica dos Goulart foi ecoada em outras vozes na esquerda. O governante disse que "não quer melindrar os militares". É uma afirmativa horrível, mas compreensível, dada a relação historicamente tensa com a caserna, mesmo havendo milicos legalistas e respeitadores do poder civil.
Assim, ela soa compatível e sincera, mas também passa a impressão de que a sobrevivência
do seu governo dependesse inteiramente de um acordo de pacificação forçada
entre as partes. Mas vale outro desagrado, ou melhor, incoerência.
Entre as vítimas sobreviventes
da ditadura estão vários políticos do PT, Psol, PCdoB e e até na centro-direita. Como José Genoíno, José Dirceu, Ivan Valente, Dilma Rousseff e o
próprio Lula, que foi preso por ter liderado uma greve histórica no ABC paulista em
1980.
Entendemos a razão conciliadora ou pessoal de Lula na negativa. No voto, ele estancou a sangria tanatófila de Bolsonaro e, para governar, precisa manter uma boa relação com a bolsonarizada caserna. Por fora, o bolsonarismo segue pleno, entre neopentecostais e as redes sociais.
Mas a razão maior é dos
sobreviventes daquele golpe. Até a Covid também foi usada como instrumento indireto
da campanha de golpe em todo o governo Bolsonaro. Vaidades governamentais
à parte, vale mais um manifesto por verdade, justiça e memória.
Nota da autoria
¹
Comissão Nacional da Verdade, que funcionou como tribunal informal que só
puniu, simbolicamente, o torturador Brilhante Ustra.
Para saber mais
- https://www.poder360.com.br/todas-noticias/
(Lula veta eventos críticos ao golpe de 1964 contra tensão com militares)
- https://www.youtube.com/watch?v=Ga3WqRFWKM8
(Meteoro – governo ia pedir desculpas às vítimas, mas Lula não deixou)
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À frente do MJSP, Flávio Dino foi tão ativo que
preocupou sua família devido a seus problemas de saúde. Deixou a pasta após
federalizar o caso Marielle, reforçar recursos estaduais para as polícias, e
mandar a PF caçar bruxos do 8/1 e apreender armas ilegais. E ainda verbalizou a
criação de um memorial pelas vítimas do golpe de 1964.
De Silvio – a proposta de memorial
partiu do ministro Silvio Almeida (Dir. Humanos e Cidadania) com a proximidade
de 2024, quando se completam 60 anos de um golpe sanguinários que ceifou
milhares de vidas e rasgou direitos sociais e políticos, e já esperando
manifestos pró-democracia combinados em redes sociais.
Sem dúvida, seria um marco positivo para o
governo Lula, cuja popularidade está em queda.
Da beleza inicial à negação – o
retorno de Lula não só sepultou a continuidade de execução política de
Bolsonaro, como presenteou a patuleia com a simbologia cênica da subida na
rampa com a esposa Janja, representantes do mosaico popular e a cadela
Resistência – nome dado em homenagem à vitória eleitoral da democracia.
Vieram junto as esperanças dos líderes de
movimentos pró-democráticos de que as vítimas da ditadura militar fossem
homenageadas de alguma forma. Mas logo veio a retumbante negativa do presidente
para “não remoer o passado”.
Sua razão conciliatória foi exposta no texto
anterior, mas mantêm a péssima cultura do militarismo antidemocrático.
Memoriais – variam
de simples obelisco antigo numa avenida moderna, museus de acervos de
referências distintas até centros históricos inteiros, com ruínas, casarios e
templos íntegros, praças e ruas em estado original, para fins educativos ou turísticos.
Na real, o brasileiro não se desprovê totalmente
de identidade histórica. O problema é a construção elitista que aprecia nomes
vindos de classes dominantes omitindo o protagonismo de figuras de segmentos
rejeitados em fatos históricos decisivos.
Monarquistas atuais se espelham nas benfeitorias
do II Império em nichos elitistas das capitais e povoados próximos, em
detrimento das periferias abandonadas, da miséria e do isolamento dos
habitantes do interior. Não é elitismo proposital, é falta de conhecimento mais
amplo.
Fria análise –
a razão conciliatória do governante em recusar manifestos contra o golpe de
1964(se militares não podem comemorar, não vale remoer o passado) foi exposta
no artigo anterior. Mas há outra justificativa: a de participação.
Iniciados no exterior, manifestos populares
organizados nas redes estão confirmados para 27/3, com militantes do PT no
bolo. Mas Lula não entrará. O coletivo de João Vicente Goulart, filho de Jango,
pode se juntar sem problema, se quiser.
Recusar participação reforça a razão
conciliatória de Lula, mas não justifica a recusa em homenagear as vítimas da
ditadura militar. As vítimas da Covid ganharam memorial póstumo pelo Senado, e
o governo (M. Saúde) vai criar o seu próprio.
Os parentes das vítimas do golpe não querem
muito do governo. Basta criar uma placa com inscrições, ou um decreto que
reconheça data específica em memória das mesmas. Ignorar a importância de um
dos fatos mais obscuros da nossa história é mais do que um esquecimento
injusto, é fortalecer a impunidade que beneficia o militarismo antidemocrático.
Para saber mais
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