sábado, 2 de março de 2024

CURTAS 66 - ANÁLISES (Damares e Marajó; violência de Bukele)

 

Marajó e a extrema-direita

            2022: em campanha para o senado, a ex-chefe da pasta da Mulher, da Família e Direitos Humanos Damares Alves palestrou num culto evangélico em Brasília apresentando a sua proposta Abrace o Marajó, como mote eleitoral de combate à exploração sexual infantil em Marajó.
            2024: vídeo da cantora gospel paraense Aimée Rocha viraliza com uma canção em que denuncia o citado flagelo no mesmo local, com direito a fotografias de crianças em um telão. Com isso, Damares ressuscitou o tema que voltou à mídia e em páginas de fast-checks especializadas em verificar a veracidade de notícias virais.
            Marajó – localizado na desembocadura do rio Amazonas, no litoral do Pará, o arquipélago de Marajó é o maior do mundo em formação fluvial. De mesmo nome, a principal ilha também é a maior dessa natureza do globo. O clima equatorial, a beleza amazônica e a pororoca em alguns canais atraem turistas brasileiros e de fora.
            Os 590 mil marajoaras se espalham em 17 municípios. A maioria descende de indígenas e europeus e muitos vivem em vilas de palafitas na beira dos rios. A fé cristã é entremeada de lendas e superstições herdadas dos originários.
            Na economia agropastoril e pesqueira há coleta de castanha-do-Pará e outros frutos amazônicos. O IDH pode chegar a menos de 0.5, o mais baixo do país. Pobreza, educação e saúde precárias, altos índices de doenças tropicais vetoriais e eventual contaminação por mercúrio oriundo do interior completam o quadro.
            Falas macabras – ao justificar sua proposta, Damares disse que “crianças têm dentinhos arrancados para o sexo oral e recebem comida mole para o sexo anal” para famílias com crianças no culto. Tais detalhes levaram a AGU a notificá-la para apresentar provas. Ela respondeu que “ouviu relatos dos locais”. Impune, foi eleita senadora.
            O tema foi então esquecido, até vir o vídeo de Aimée. Damares ressuscitou amplamente o tema, que foi divulgado pelos bolsonaristas nas redes sociais – o que suscitou a busca da veracidade pelos fast-checks de notícias.
            Verdade x mentira – a gravidade do flagelo é real em Marajó. Em 2022 houve mais de 500 casos. O MP-PA registrou 69 casos de estupro de vulnerável infantil e adolescente, deficiente ou usuário de psicoativos, a cada 100 mil habitantes. No Brasil houve 56.820 ocorrências em 2022, ou 28/100 mil habitantes.
            Os Estados do Norte e Centro-Oeste saltam aos olhos. Por 100 mil habitantes, os recordes pertencem a Roraima (87,1), Acre (67,1), Amapá (64,5), Mato Grosso do Sul (64), Tocantins (56,2) e Rondônia (46,8). No Pará são 46. Isso, em estupro de vulnerável.
            Dos 889 casos de exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil em 2022, 29 ocorreram no Pará, ou 1,8/100 mil no país ou 1,2 no Estado. Desses 29, 5 foram em Marajó, ou 0,85 ocorrência/100 mil habitantes, sendo abaixo, portanto, das médias do país e do Pará inteiro.
            Estupro de vulnerável x exploração sexual – o primeiro é um crime hediondo, o último já revela um drama social, cultural e/ou fiscal/político, conforme singularidades locais ou regionais. Mas, ambos são igualmente execráveis e repugnantes. No caso da Marajó, a conivência parental na exploração é fomentada pela miséria.
            Mas os dados revelam que o estupro de vulnerável é um flagelo maior do que a exploração sexual infantil. E vale acrescentar que todos os dados acima são casos confirmados pelas autoridades, o que pode mascarar ima realidade mais ampla.
            Desinformação – os relatos de tortura supostamente ouvidos por Damares levaram as autoridades locais a investigar a sua veracidade. Foi constatado não haver absolutamente nada que confirme tais relatos. Ainda assim, a hoje senadora reafirma sua fala.
            Quanto ao vídeo envolvendo a cantora Aimée, as fotos de crianças retiradas de um carro por policiais foram divulgadas por Damares como flagrantes de exploração em Marajó. A checagem da origem revelou que as fotos são do Uzbequistão, um país centro-asiático habitado principalmente por uzbeques de fé islâmica.
            Riscos – em fria análise, a existência de crime com crianças e adolescentes – estupro ou exploração prostituta – deve ser, sim, denunciada. Mas a divulgação massiva e irresponsável, sem verificar a veracidade dos fatos incita a desinformação e, em consequência, prejudica as investigações agravando os riscos criminais reais na região.
            No Congresso, o tema virou debate acalorado. Governistas criticaram a divulgação de vídeos falsos atribuídos ao drama marajoara com incentivo da senadora e outros colegas bolsonaristas. Pois, uma vez provada a falsidade dos vídeos divulgados, o risco de cassação de mandato é maior, dado ser um tema de implicação social muito ampla.
            Lula – como a proposta de Damares nunca saiu do papel, o MDHC do governo Lula assume novo programa de incentivo aos marajoaras com uma central de denúncias, incentivo educacional e maior alcance de famílias contempladas com o Bolsa-Família, a fim de mitigar a miséria local e a suscetibilidade aos crimes sexuais. É pagar para ver o combate de um antigo drama.
            Enquanto isso, que as instituições competentes punam de verdade a irresponsabilidade dos nomes da extrema-direita com a divulgação de desinformação.

Para saber mais
- https://www.youtube.com/watch?v=uFB442Ohqt4 (Meteoro Brasil – Damares ressuscita fake news sobre Marajó)
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El Salvador
Violência: das gangues ao regime

            Se quiserem cargos no Supremo, que corram para as ruas”, escreveu abertamente o deputado extremista Eduardo Bolsonaro em sua rede em meados de 2021. À época, a publicação passou quase despercebida pela patuleia que via a coleção de óbitos no ápice do surto pandêmico de C19.
            A clara provocação ao STF devido à voadora jurídica nos arroubos de seu pai então presidente da República se referiu a uma figura distante, “muso” inspirador do deputado: Nayib Bukele. Figura já descrita no blog em sua biografia e foco de governo, Bukele se vende como um vaidoso millenial.
            Como já descrito, o seu governo ganhou notoriedade por sua política de segurança pública que agiu efetivamente sobre gangues ligadas às pandillas (gangues ou facções do crime organizado). As prisões foram tantas que a população carcerária corresponde a 2% da população do país. Mas, será que todos os presos são pandillas?
            Desafios à Corte – como Bolsonaro aqui, Bukele desafiou a Corte de seu país. E foi mais longe: rasgou a Constituição, que veda reeleições e autoritarismo, aparelhando a entidade com substituição de ministros contrários pelos favoráveis à sua reeleição. E dessa forma foi reeleito.
            Esmagando direitos – muito criticado por presumir penas brandas para crimes como homicídio, latrocínio, tráfico e estupro, o código penal foi modificado por Bukele para se ter prisão perpétua – o que não seria ruim em si, não fossem os relatos de violações.
            Segundo entidades de direitos humanos (DHs), arbitrariedades jurídicas e prisionais têm sido apontadas. Como desrespeito à presunção de inocência até prova em contrário, baseado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) da ONU de 1948. No regime Bukele, os julgamentos têm sido condenações diretas ou inexistentes.
            Ou seja, não há a presunção de inocência garantista do direito à ampla defesa, prezado internacionalmente.
            Possíveis inocentes – os presídios gigantes em El Salvador estão lotados. Muitos são tatuados com os logos de suas pandillas. Mas as tatuagens não são unânimes na população carcerária, desde o início do regime Bukele. O que desperta suspeita.
            É muito possível que detidos sem ligação com pandillas ou outra organização criminosa qualquer estejam compartilhando o mesmo espaço com os supercriminosos citados. E ainda é possível que tais detentos “menores” nem sejam criminosos.
            Críticos ao regime – dada a evidência de violação à harmonia entre os 3 poderes, não se descarta que os “detentos menores” sejam cidadãos cujo único crime – se é que se pode chamar assim – foi criticar o regime Bukele. São quaisquer cidadãos, de defensores da democracia e direitos humanos aos LGBTQIAP+.
            Relatos de persecução política preenchem o banco de dados em sedes locais de ONGs internacionais como a Human Rights Watch (HRW) da ONU, e Anistia Internacional. Entre os relatos há persecução a servidores e cidadãos comuns, minorias sexuais e forte censura midiática com risco a fechamento de jornais por possível publicação de denúncias ou críticas ao governo.
            Apesar das evidências, Bukele zomba dos que o chamam de ditador. E, com pinta narcísica se autoproclama “o ditador mais legal do mundo”, por causa de suas interações nas redes sociais com populares, passando a impressão de inteira liberdade de expressão. Seu regime saliva os líderes da extrema-direita brasileira e tem simpatia do argentino Milei, dos Bolsonaro e de Trump.
            A eficiência comunicativa da interação com populares camufla a real intenção de Bukele: implantar uma ditadura disfarçada de democracia de curral,  que se insurge não só para eliminar as pandillas. O principal objetivo do regime é eliminar todos aqueles que se representem possível ameaça aos seus desígnios políticos e de poder.

Para saber mais
- https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51v1vqywqlo (Milei e Bukele triunfos de Trump)
- https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72gz6k2l54o (como foi a visita de jornalista da BBC à megaprisão de Bukele)
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