Eleição popular sim,
democracia não
Há
algum tempo, durante uma entrevista à imprensa, o presidente Lula fora indagado
sobre o regime de governo na Venezuela. Ao negar ser um governo autoritário,
ele explicou: “se há voto popular, tem democracia lá”, disse.
O
jornalista rebateu que eleição livre não é suficiente para afirmar uma
democracia. E o presidente respondeu de boa, usando a questão conceitual: “mas
devemos entender que há democracia relativa”. Causou.
A
grande mídia criticou o relativismo do presidente. Congressistas e populares
bolsonaristas salivaram: grafismos sensacionalistas lotaram Telegrams e Zaps da
geral¹ que se “esqueceu” do ex-mito com o sanguinário príncipe saudita Bin
Salman.
Mais
em 2024 – se no Brasil as eleições
são municipais, em Portugal, Rússia e Venezuela elas são presidenciais. Os três
têm em comum o voto popular facultativo, mas sempre há adesão. Mas cada um
atravessa suas crises políticas.
Portugal – é o mais democrático por ter voto popular de maior
peso. E lá, sempre que acontece alguma crise, como a que desencadeia renúncia
de um chefe de Estado ou de governo, um novo pleito popular se forma para
resolver.
Assim,
o pleito atual decorreu da renúncia do primeiro-ministro socialista António
Costa por confusão do MPF de lá, só resolvida após a saída de Costa, comemorada
pela extrema-direita Chega!. Mas a centro-direita venceu o pleito.
Mas
foi vitória sem maioria das cadeiras legislativas, por recusar a aliança do Chega!.
Terá um governo imprevisível por isso, mesmo prometendo manter o rumo
construído com excelência por Costa. Mas, ao menos, contribuiu para isolar a
extrema-direita.
Rússia – segundo as mídias, a adesão popular que reelegeu
Wladimir Putin foi recorde. Mas isso não configura a democracia de fato, pois o
regime vigente é de extrema-direita² e há suspeita forte de ao menos três
frentes repressivas.
É
sabida a repressão violenta a adversários políticos e à liberdade de imprensa,
com “direito” à prisão, sumiços ou mortes. Aliado à Igreja Ortodoxa Russa, Putin
também reprime minorias religiosas (como as TJs) e sexuais.
Desde
2022 tem havido notícias de desaparecimentos ou mortes de supostos inimigos
políticos de Putin. O último foi Alexei Navalny, morto na prisão em contexto
suspeito. Detalhe: as matérias chegam por mídias fora da Rússia.
Venezuela – inaugurado por Hugo Chávez nos anos 2000, o
chavismo assume aparência meio “soviética”. Após a morte do fundador, o vice
Nicolás Maduro assumiu o governo, dando um toque muito pessoal ao regime.
Por
conta disso sobram acusações idênticas às apontadas para o russo:
autoritarismo, perseguição a opositores e fraude eleitoral. A expulsão de
ativistas da ONU piorou a imagem do venezuelano, e bolsonaristas se
aproveitaram disso.
Fria
análise – em Portugal, a vitória
da centro-direita contrária às propostas extremistas assegura a democracia, mas
há ciência majoritária da crescente popularidade do grupo, a resultar em
constante ameaça à estabilidade local.
Há
muita semelhança ideológica entre o Chega e regimes nazifascistas como o
nazismo, o bolsonarismo e no Leste europeu. Em comum há perseguição a minorias
e opositores políticos, censura e política anti-imigração.
Até onde Portugal continuará com a sorte de mantê-lo afastado do poder, não há como saber. A xenofobia é uma realidade crescente entre os portugueses, e nem mesmo os brasileiros brancos, disciplinados e trabalhadores escapam à discriminação.
Verifica-se
que as informações eleitorais na Rússia e na Venezuela são muito genéricas e
parecidas com o ocorrido recentemente em El Salvador de Bukele, com vitórias
massivas aos respectivos líderes. Um dado claro de suspeita de ilícito
eleitoral.
Por conta disso, se torna especialmente difícil a chance de imaginar os regimes atualmente vistos na Rússia e na Venezuela como democráticos, mesmo reconhecendo-se variações na condução democrática aqui e ali no globo.
Mas há entre nós, brasileiros, uma verdade tácita: se
fosse reeleito, o governo Bolsonaro teria regime muito parecido com os
descritos acima, ou até uma ditadura de fato, à moda de 1964. A nossa sorte é que Bolsonaro em si nasceu para o fracasso. O que o sustenta é outro perigo: a aliança com o neopentecostalismo.
Nota da autoria
¹
já abordado no blog (link abaixo)
²
ainda é incompreensível o apoio de certas alas de esquerda a Putin, que já
abandonou a antiga adesão ao sovietismo.
Para saber mais
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Na mídia
ocidental, duas das mais de 10 guerras presentes ocupam espaço significativo na
mídia internacional: a russo-ucraniana e a nova fase da eterna guerra
Israel-Palestina. Mas aqui vamos nos atentar à primeira.
Já
foi falado no blog sobre o atual líder da Rússia Wladimir Putin, que substituiu
Boris Yeltsin após renúncia deste em 1999. Até então era o chefe do serviço de
espionagem FSB, antiga KGB soviética, onde já atuava. Mas, vale uma pequena pincelada em sua biografia só para constar aqui.
Ex-soviete – apesar de ter sido um aluno mediano, Putin teve
simpatia dos docentes por sua astúcia, participação esportiva, integrar as
fileiras do grupo Jovens Comunistas na adolescência, e cursar Direito e entrar
na carreira militar.
Foi
a carreira militar que o catapultou a integrar, mais tarde, os quadros da então
cobiçada KGB, a CIA soviética. A sua formação acadêmica superior e a dedicação
o facilitaram na ocupação de postos de chefia na instituição.
Mas,
em 1991 a URSS ruiu. Várias republikas (regiões autônomas) viraram países
independentes. O sovietismo se tornou neoliberal, mas deixou marcas antigas,
mantidas por Yeltsin e Putin.
No
caso russo, no artigo anterior há menção a essas marcas, aliançadas com a
Igreja Ortodoxa para repressão à liberdade de imprensa, aos adversários
políticos e a diversos grupos minoritários, como religiosos e sexuais.
Putin
x Zelensky – a guerra russo-ucraniana
iniciada em fevereiro de 2023 preocupou geral o mundo na questão
macroeconômica. Também afetado, o Brasil foi palco de uma agitação muito
particular, de cunho ideológico.
Foram
duas frentes: os bolsonaristas acompanharam a grande mídia no apoio ao
ucraniano Zelensky com direito a certas bizarrices, como Artur do Val com as
moças de lá. Já na esquerda, alguns grupos apoiam Putin.
O
apoio se revela em postagens de cunho histórico, principalmente as da passagem
de Putin como jovem militante do regime soviético e na chefia da KGB. Mas
acontece que tais passagens não cabem mais no contexto atual.
A
começar pelos fatos revelarem que a diferença com Zelensky é nula como governo
e regime. Ambos aliaram com a Igreja dominante em seus países impondo, assim,
um formato semiteocrático idêntico ao do bolsonarismo brasileiro.
Além
disso, ambos se declaram “antissistema”, uma comunicação enganosa para adotar o
anarcocapitalismo, a forma capitalista mais selvagem e solta que caracteriza a
economia da nova e crescente extrema-direita global.
Incoerência na esquerda – é certo que nos governos socialistas totalitários,
restrições à liberdade de informação e ao direito à livre manifestação popular
tenham sido regras em comum aos regimes de extrema-direita como a nossa
ditadura. E hoje, elas ocorrem nos governos “antissistema”.
A
ambição de poder em longo prazo é outro ponto comum. Foram 30 anos de Stalin,
49 de Castro, e assim como Orbán (Hungria) há 14 anos, Putin governa a Rússia
há 25 anos, mesmo no breve período Medvedev, de quem foi primeiro ministro – o
chefe de governo que dita as regras.
Por
todo o exposto, o que explica o incoerente apoio de parte da esquerda a Putin
esteja num saudosismo presente em figuras do político dos tempos de URSS,
talvez mais do que os fatos da guerra não narrados na grande mídia.
Acontece
que o presidente Wladimir Putin não é o mesmo daqueles tempos soviéticos. Tal
como os saudosistas da ditadura que elegeram Bolsonaro, os grupos esquerdistas
apoiadores de Putin se perdem num tempo pretérito e sem volta.
É
certo que conhecer o passado é a chave para entendermos o presente. Mas não há
explicação para esse saudosismo que hoje se torna uma incoerência ideológica. Para
completar, essa guerra estúpida não tem mocinhos, e sim dois vilões da
extrema-direita e milhares de vítimas dos dois lados.
Para saber mais
- https://www.bbc.com/portuguese/articles/c90w2j01l9jo (há quanto tempo Putin está no poder)
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Versada
no artigo anterior na comparação com a Rússia no questionamento sobre
democracia, a Venezuela se destacou novamente, na corrida eleitoral. A nossa
mídia nos levou a entender haver apenas uma candidata de oposição concorrendo
com Nicolás Maduro.
Só
que não é bem isso não.
Nicolás
+ 11 – nas pontuações da nossa grande mídia, a “única”
candidata de oposição a Maduro foi Corina Machado. Sim, foi. Sua candidatura
foi impugnada pela justiça venezuelana, mais especificamente pelo TSE de lá.
Soubemos,
por nossa mídia, que Maduro teria ordenado a impugnação de Machado, dando a
entender ser uma forma de intimidar opositores. Mas a verdade é que há mais 11
candidatos com legendas registradas – todos de oposição. E somente uma
candidatura foi impugnada.
Segundo
a mídia venezuelana, o motivo da impugnação foi o partido Venta não ter
se registrado no TSE de lá. Daí Machado ter posto em seu lugar a xará Corina
Yoris, que foi aconselhada a concorrer pelo Um Nuevo Tiempo, de direita.
Mas esta legenda já tem candidato próprio.
E,
se a Corina titular foi afastada por irregularidade, a Corina substituta
também o será, uma vez que o tempo para o Venta ser registrado já expirou,
e os demais partidos concorrentes têm seus candidatos.
Tal
como no Brasil e nos EUA, a lei venezuelana impede que um partido lance dois
candidatos ao mesmo cargo, e que legendas não registradas concorram a pleitos. Ou
seja, algo comum em democracias. Mas isso faz do regime Maduro uma democracia?
O
que sabemos do regime –
a dificuldade de acesso à mídia venezuelana nos impossibilita uma visão mais confiável e plena sobre o regime de Maduro. Só sabemos pelo que dizem nossas mídias. Se a hegemônica acusa violações, as alternativas não negam, nem afirmam.
As
acusações de violações de direitos humanos, corte à liberdade de imprensa, de
interferência judiciária e fraude eleitoral nos passam a inevitável impressão
depreciativa do chavismo sob a batuta mais autoritária de Maduro.
Nossa
grande mídia acusa Maduro de má conduta econômica que deixa o varejo carente de
muitos produtos. Mas vale citar que a Venezuela sofre sanção econômica pelos EUA
e outros países centrais. Rússia, China e vizinhos como o Brasil enviam vários
produtos básicos.
Fria
análise – a existência de mais 11 concorrentes
nas eleições presidenciais da Venezuela indica a existência de uma democracia de
natureza eleitoral, que em si não difere da nossa. Mas a falta de acesso à
mídia ou aos bastidores de lá nos dificulta amenizar a barra para a imagem política
do país.
A impugnação
da candidatura de Corina Machado se deu por questões exclusivamente legais que
correm em outros países. Mas vale salientar que o STF de lá sofreu influência
de Maduro, com mais magistrados compondo o quadro.
Por
outro lado, Machado é de extrema-direita, tendo apoio de Donald Trump – e isso
também pode ter influído na determinação do STF venezuelano, que já age
conforme os desígnios de Maduro.
Isso
abre brecha para a impressão de um governo autoritário. E, tal como na Rússia,
o pouco que sabemos sobre as eleições de lá vêm da nossa mídia, e a chance de
fraude eleitoral nunca é descartada.
Mas
o fato Corina Machado nos informa que fatores externos podem determinar postura
mais autoritária e defensiva dos governos-alvos, passando a estranha conclusão
de que o clima político da Venezuela é, na prática, dúbio.
Sal Ross
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