Uma pacificação presidencial
Enquanto a pandemia de Coronavírus prende a atenção pública, Guedes planeja suas reformas de rapina do erário público e outros fatos agitam os bastidores de Brasília, no Rio de Janeiro opera uma realidade totalmente paralela.
O povo fluminense, e especialmente o carioca, enfrentam um cotidiano de medo sob uma aparente paz. Isso há pelo menos 50 anos. E a maioria dos eleitores, iludida pelo discurso forte de um Brasil sem criminalidade, escolheu Bolsonaro.
Voto do cansaço de viver amedrontado sob a mira dos atores do crime organizado. Os de mais idade expressavam saudade do famoso Mão Branca, a quem atribuíam as mortes de bandidos na Baixada Fluminense.
Mal sabendo que o Mão Branca, "justiceiro dos cidadãos" para os abastados da época, segue mais como ficção criada pela imprensa do que alguém real: afinal, até hoje não se conhece a pessoa. Ainda assim, virou uma lenda urbana local, às vezes levada a sério.
Muitas comunidades pobres cariocas são dominadas por diferentes facções do tráfico, e já outras, pelas milícias, os antigos esquadrões da morte formados por ex-PMs e bombeiros, que também são conhecidas como "polícia mineira" em alusão ao famoso rigor da PMMG.
Há dois anos, a violência se intensificou em algumas comunidades da zona norte, não só pelas operações da PMERJ, mas também por milícias, atingindo o clímax no ano passado. As milícias já dominam a zona oeste, com extensões para a zona norte e a Baixada.
Spoiler: da milícia de Rio das Pedras, na Baixada de Jacarepaguá, zona oeste carioca, são nomes importantes Fabrício Queiroz, Ronnie Lessa e Adriano da Nóbrega, conhecidamente ligados aos Bolsonaro.
Neste mês, milícia invadiu comunidade do tráfico na área da Praça Seca, em Jacarepaguá. Ao operar no local, o Bope identificou ex-PMs transportando drogas, os narcomilicianos, que atuavam para o outrora inimigo.
O termo indica um fenômeno recentemente identificado no crime organizado em alguns morros do Rio: a união entre velhas forças antes opostas e inimigas que protagonizam eventos que aterrorizam os moradores inocentes há décadas.
Não é uma fusão, mas uma simbiose de duas forças que, independentemente do terror, tem tudo para ser um negócio tremendamente lucrativo, que já ocorre em 180 favelas.
Com respaldo da PM, os narcomilicianos têm menor risco no transporte de cargas de drogas até o destino de saída do que os traficantes, que passam a atuar nos negócios daqueles, como segurança, internet (gatonet), gás, eletricidade, especulação imobiliária local, etc.
Os escolhidos para o transporte de drogas e armas são os mais fortes, atentos, ágeis e sagazes, enquanto os demais atuam nas comunidades. Tudo em cooperação. São muitos nessa troca.
Embora seja uma tendência crescente, tal simbiose ainda não é realidade em tantas favelas cariocas. E, como já citado, não é garantia de paz para os moradores, como o ocorrido recente na Praça Seca, região de Jacarepaguá, intensificado com a operação do Bope.
Em paralelo, vem a pergunta: como duas organizações velhas inimigas se conciliam assim, do nada, se seus interesses sempre vigoraram distintamente, inclusive os princípios que regem suas atividades e os alvos dos ataques?
Claro que há afinidades, a começar que ambas são organizações criminosas violentas e frequentemente mortíferas. Enquanto o tráfico alicia alguns moradores a consumir drogas para facilitar o recrutamento, a milícia extorque os seus para exercer os serviços já citados.
Mas se sabe que há muito mais além do sucesso da cooperação: a influência política. Já se conhece há décadas as ligações da elite do tráfico e do jogo do bicho com políticos, no Rio e até no Brasil. E da proximidade dos Bolsonaro e outros políticos fluminenses com as milícias.
Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro revogou três portarias que previam fiscalização de armas e munições, o que dificultaria as investigações policiais e rastreamentos do Exército, facilitando colecionadores e cidadãos comuns. Em consequência, as forças do crime se viram com os caminhos livres.
Daí, se torna compreensível a interpretação de que a simbiose tráfico-milícia resultou, em muito, desse afrouxamento presidencial, o que promove uma oposição franca entre as diretrizes de Bolsonaro e o poder investigativo das polícias, Exército e Ministério Público.
Ou seja, a simbiose pode ser fruto de uma diretriz, ou seja, um desejo presidencial, mesmo não sendo público.
----
Fontes em que se baseou o texto:
Mão Branca:
https://oglobo.globo.com/rio/anos-80-grupos-de-exterminio-chegam-ao-poder-4562736
http://g1.globo.com/pb/paraiba/bom-dia-pb/videos/v/exposicao-mostra-historia-do-grupo-mao-branca-que-marcou-campina-grande-nos-anos-80/2879107/
http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/37767772334884404941874398462333204319.pdf
https://periodicos.ufrn.br/clincc/article/download/14862/9868/
https://www.youtube.com/watch?v=wTgHzifP_DY
Narcomilicianos:
https://oglobo.globo.com/rio/narcomilicias-traficantes-milicianos-se-unem-em-180-areas-do-rio-segundo-investigacao-24007664
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/11/01/milicia-do-rio-se-une-ao-trafico-para-enfraquecer-o-comando-vermelho.htm
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/04/17/revogacao-de-decreto-feita-por-bolsonaro-ajuda-crime-organizado-e-milicias.htm
O povo fluminense, e especialmente o carioca, enfrentam um cotidiano de medo sob uma aparente paz. Isso há pelo menos 50 anos. E a maioria dos eleitores, iludida pelo discurso forte de um Brasil sem criminalidade, escolheu Bolsonaro.
Voto do cansaço de viver amedrontado sob a mira dos atores do crime organizado. Os de mais idade expressavam saudade do famoso Mão Branca, a quem atribuíam as mortes de bandidos na Baixada Fluminense.
Mal sabendo que o Mão Branca, "justiceiro dos cidadãos" para os abastados da época, segue mais como ficção criada pela imprensa do que alguém real: afinal, até hoje não se conhece a pessoa. Ainda assim, virou uma lenda urbana local, às vezes levada a sério.
Muitas comunidades pobres cariocas são dominadas por diferentes facções do tráfico, e já outras, pelas milícias, os antigos esquadrões da morte formados por ex-PMs e bombeiros, que também são conhecidas como "polícia mineira" em alusão ao famoso rigor da PMMG.
Há dois anos, a violência se intensificou em algumas comunidades da zona norte, não só pelas operações da PMERJ, mas também por milícias, atingindo o clímax no ano passado. As milícias já dominam a zona oeste, com extensões para a zona norte e a Baixada.
Spoiler: da milícia de Rio das Pedras, na Baixada de Jacarepaguá, zona oeste carioca, são nomes importantes Fabrício Queiroz, Ronnie Lessa e Adriano da Nóbrega, conhecidamente ligados aos Bolsonaro.
Neste mês, milícia invadiu comunidade do tráfico na área da Praça Seca, em Jacarepaguá. Ao operar no local, o Bope identificou ex-PMs transportando drogas, os narcomilicianos, que atuavam para o outrora inimigo.
O termo indica um fenômeno recentemente identificado no crime organizado em alguns morros do Rio: a união entre velhas forças antes opostas e inimigas que protagonizam eventos que aterrorizam os moradores inocentes há décadas.
Não é uma fusão, mas uma simbiose de duas forças que, independentemente do terror, tem tudo para ser um negócio tremendamente lucrativo, que já ocorre em 180 favelas.
Com respaldo da PM, os narcomilicianos têm menor risco no transporte de cargas de drogas até o destino de saída do que os traficantes, que passam a atuar nos negócios daqueles, como segurança, internet (gatonet), gás, eletricidade, especulação imobiliária local, etc.
Os escolhidos para o transporte de drogas e armas são os mais fortes, atentos, ágeis e sagazes, enquanto os demais atuam nas comunidades. Tudo em cooperação. São muitos nessa troca.
Embora seja uma tendência crescente, tal simbiose ainda não é realidade em tantas favelas cariocas. E, como já citado, não é garantia de paz para os moradores, como o ocorrido recente na Praça Seca, região de Jacarepaguá, intensificado com a operação do Bope.
Em paralelo, vem a pergunta: como duas organizações velhas inimigas se conciliam assim, do nada, se seus interesses sempre vigoraram distintamente, inclusive os princípios que regem suas atividades e os alvos dos ataques?
Claro que há afinidades, a começar que ambas são organizações criminosas violentas e frequentemente mortíferas. Enquanto o tráfico alicia alguns moradores a consumir drogas para facilitar o recrutamento, a milícia extorque os seus para exercer os serviços já citados.
Mas se sabe que há muito mais além do sucesso da cooperação: a influência política. Já se conhece há décadas as ligações da elite do tráfico e do jogo do bicho com políticos, no Rio e até no Brasil. E da proximidade dos Bolsonaro e outros políticos fluminenses com as milícias.
Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro revogou três portarias que previam fiscalização de armas e munições, o que dificultaria as investigações policiais e rastreamentos do Exército, facilitando colecionadores e cidadãos comuns. Em consequência, as forças do crime se viram com os caminhos livres.
Daí, se torna compreensível a interpretação de que a simbiose tráfico-milícia resultou, em muito, desse afrouxamento presidencial, o que promove uma oposição franca entre as diretrizes de Bolsonaro e o poder investigativo das polícias, Exército e Ministério Público.
Ou seja, a simbiose pode ser fruto de uma diretriz, ou seja, um desejo presidencial, mesmo não sendo público.
----
Fontes em que se baseou o texto:
Mão Branca:
https://oglobo.globo.com/rio/anos-80-grupos-de-exterminio-chegam-ao-poder-4562736
http://g1.globo.com/pb/paraiba/bom-dia-pb/videos/v/exposicao-mostra-historia-do-grupo-mao-branca-que-marcou-campina-grande-nos-anos-80/2879107/
http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/37767772334884404941874398462333204319.pdf
https://periodicos.ufrn.br/clincc/article/download/14862/9868/
https://www.youtube.com/watch?v=wTgHzifP_DY
Narcomilicianos:
https://oglobo.globo.com/rio/narcomilicias-traficantes-milicianos-se-unem-em-180-areas-do-rio-segundo-investigacao-24007664
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/11/01/milicia-do-rio-se-une-ao-trafico-para-enfraquecer-o-comando-vermelho.htm
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/04/17/revogacao-de-decreto-feita-por-bolsonaro-ajuda-crime-organizado-e-milicias.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário