Biopoder na punição da vítima
Nessas duas últimas semanas foi noticiado em larga escala o fato de uma menina de 10 anos que ficou grávida mediante estupro cometido por seu tio, em São Mateus, no norte do Espírito Santo. Para variar, o caso foi parar nas redes sociais.Com dores abdominais constantes, a menina foi levada a um hospital, com constatação da gravidez de 22,5 semanas. Ela revelou os estupros de que foi vítima de um tio desde os 6 anos de idade, não o denunciantes devido a ameaças dele. O acusado estava foragido até ser preso em MG (links abaixo).
Antes da prisão do tio, a notícia da menina grávida por estupro gerou debates ferventes nas redes sociais e em mídias noticiosas. Tudo porque veio um tema sempre tão delicado quanto discutir sobre religião e fé: o aborto.
O aborto sempre gerou debates no Ocidente. Sua criminalização teria ocorrido ainda na Antiguidade, desde antes da era greco-romana, mas não parece ter sido hegemônica naqueles tempos. Mas Hipócrates, o pai da Medicina, era contra. Tudo parece indicar que surgiu mais como assunto da área do direito do que propriamente na esfera religiosa.
Faz sentido, até porque se deve ter cautela com a conduta das várias interpretações sobre a relação entre a visão jurídica atual e a posição de diferentes religiões, o que torna o aborto um assunto ainda mais delicado e sempre fácil de gerar polêmicas nada agradáveis entre diversos movimentos.
Cada religião, ou grupo religioso, assume posições precípua sobre o aborto, como no grupo abraâmico (judaísmo, cristianismo e islamismo), cujas muitas correntes interpretam o tema, desde posições totalmente contrárias às mais favoráveis, conforme reflexão contextual.
Em países de forte religiosidade há forte imposição de limites. No Brasil, o Código Penal de 1940 já aceitava os casos de estupro. Apesar da pressão da bancada bíblica na Câmara, o STF em 2016 estendeu a legalização em caso de risco à vida materna e para anencefalia.
Uma vitória nada gratuita para as feministas, graças à avaliação das provas médicas pelos ministros por oferecimento de médicos, e muito debate na sociedade. A bancada bíblica se calou na tribuna, mas conseguiu montar o forte grito ideológico em suas igrejas.
O barulho da bancada se fundamenta no Deuteronômio (antigo testamento), muito tocado em igrejas pentecostais. Mesmo passível de interpretações várias, ele é base das desigualdades de gênero na história e foi assumido pelo bolsonarismo sobre direitos de gênero e da mulher, o que gerou forte polêmica em recente encontro internacional na ONU.
Foi por defender bases como esta que grupos ultracristãos se juntaram em frente ao hospital onde a criança fora internada para a interrupção da gravidez, entre distribuição de insultos à vítima e à esquipe de saúde responsável, e orações em voz muito alta. A PM interviu após um conflito entre os religiosos e um grupo feminista que defendia a vítima.
Detalhe: a menina entrou segura no hospital após chegar no porta-malas por autorização visando exposição de sua imagem e tumultos de grupos contrários. O que, por outro lado, não foi bem exitoso.
A confusão ocorreu por instrução da ativista de extrema-direita Sara Giromini, que expôs os dados pessoais da vítima na rede violando o ECA. Mas não fez sozinha: a ministra Damares entregou à sua dileta ex-funcionária os dados proibidos e deu a ordem do tumulto. A ministra é pastora pentecostal e foi vítima de abusos na infância.
O dr. Olímpio, chefe da equipe responsável pelo aborto, revelou a natural inaptidão devida à imaturidade física e pelo diabetes gestacional desenvolvido. Ele foi o mesmo que salvou a vida da conterrânea de 9 anos que engravidou de gêmeos via estupro, e foi excomungado 2 vezes pela ICAR. Por ter salvado vidas.
O foco dos fanáticos religiosos no caso dessa semana centrado no aborto transcende a mera hipocrisia moralista. Há forte componente que visa a degradação ou eliminação da vítima pelo valor funcional que eles enxergam. No caso em tela, a menina-mulher é reduzida a um útero a serviço da sociedade, independente de qualidades mais concretas.
Esse componente, o biopoder de Foucault, ou necropolítica de Mbembe, é extensivamente estudado na sociologia (links abaixo). O primeiro é seletivo e é citado pelo filósofo Paulo Ghiraldelli, enquanto o segundo é defendido por Reinaldo Azevedo, jornalista, ambos críticos do governo Bolsonaro.
A ira dos fanáticos religiosos contra a vítima ocorre basicamente se esta não reagiu ao crime e ao criminoso. O que não se revela na consequência, no caso em tela, a gravidez abortada, por sua vez interpretada na ideia na ideia de um ser indefeso. Desprezam se a grávida é menina ou mulher, se é gravidez indesejada ou indevida.
Não foi a decisão da jurisprudência (exceção legal por excepcionalidade) e a atitude médica que mais os irou, mas a representação, para eles, da contrariedade à lei divina - incoerência: no Antigo Testamento há abortos atribuídos à ira divina. Talvez nem se dão mais conta, pois há o hábito de ler apenas o que lhes convém.
Quando as vítimas são meninos ou jovens (vide o filme Spotlight, segredos revelados), o biopoder pode se revelar na superioridade hierárquica, social ou etária do criminoso em relação à vítima, e também no silêncio forçado desta última. Vitimas masculinas podem sofrer como as femininas, por causa da condenação à suposta homossexualidade.
Pois a população LGBTQ como um todo sofre também as consequências do biopoder. Seus índices de suicídio são maiores, bem como os de homicídios em relação ao seu total. Se são vítimas de um crime homotransfóbico ou não, sofrem duplo trauma, do preconceito e do seu silêncio forçado pela indefesa perante o criminoso e da sociedade.
O biopoder não explica a origem dessa cultura de dominação propriamente, mas o método político de controle social mais rígido. O que soma mais dois traumas na estigmatização da vítima. Por isso, o aborto terapêutico das vítimas estupradas e a punição dos criminosos em geral, possam se revelar seus potenciais antídotos.
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Fontes - para saber mais:
Menina grávida/aborto/estuprador/Damares:
https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2020/08/18/tio-suspeito-de-estuprar-e-engravidar-menina-de-10-anos-e-preso-diz-governador-do-es.ghtml
https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2020/08/17/estupro-da-menina-de-dez-anos-foi-sequestrado-por-subcelebridades-do-odio.htm
https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2020/08/16/voce-e-contra-o-direito-de-meninas-estupradas-poderem-fazer-aborto-jura.htm
https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/08/18/interna_nacional,1177031/preso-na-grande-bh-tio-suspeito-de-estuprar-e-engravidar-menina-de-10.shtml
https://www.agazeta.com.br/es/policia/tio-acusado-de-estuprar-menina-de-10-anos-no-es-e-preso-em-minas-0820
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-18/policia-prende-tio-indiciado-por-estupro-e-gravidez-de-menina-de-10-anos-que-estava-foragido.html
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/08/veja-o-que-damares-e-outros-disseram-sobre-caso-de-menina-de-dez-anos-gravida-apos-estupro.shtml
https://www.pragmatismopolitico.com.br/2020/08/menina-gravida-10-anos-aborto-damares.html
http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,evolucao-historica-do-aborto,56669.html
https://www.migalhas.com.br/quentes/283844/codigo-penal-e-o-aborto#:~:text=a%20tr%C3%AAs%20anos.%22-,%22Art.,de%20um%20a%20quatro%20anos.
Biopoder/necropolítica:
https://www.youtube.com/watch?v=svwMJPfv-Jk (Paulo Ghiraldelli)
https://www.youtube.com/watch?v=OOlLm6-WS4o (filme)
https://www.scielo.br/pdf/ln/n63/a08n63.pdf
https://www.geledes.org.br/necropolitica-por-oscar-vilhena/
https://www.geledes.org.br/biopoder-por-sueli-carneiro/
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/205632/PJOR0124-T.pdf?sequence=-1
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v70nspe/03.pdf
http://www.direitorp.usp.br/wp-content/uploads/2017/01/ebook.O-lugar-da-v%C3%ADtima-nas-ci%C3%AAncias-criminais.pdf
https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/ebook-conceitos-formas_2.pdf
https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2020/08/biopoder-de-hitler-bolsonaro-quando-o.html
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