segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Gente religiosa nada boazinha


     Embora seja atrasado no sentido das notícias envolvendo figuras como Damares Alves, Flordelis, padre Robson, João de Deus e outros, o artigo se centra em uma reflexão sobre o envolvimento desses importantes personagens em ações no mínimo suspeitas.
     Tal reflexão tem ocorrido há tempos, embora somente agora foi possível um ensaio com palavras mais adequadas ao tema em tela. A intenção deste artigo é afastar, ao máximo, generalizações e ofensas, sem perda da exposição dos casos mais conhecidos, nem da necessária visão crítica popular sobre os feitos de seus atores.
     Como é de conhecimento de quase todos que a religião tem sido ostensivamente utilizada como elemento de controle social em toda a nossa história civilizatória, o texto vai se centrar nas principais reflexões acerca das polêmicas em que se envolvem as instituições na pessoa de seus fundadores ou atores.
 
-> A fé como negócio

     Religião é tema recorrente em debates acalorados.  Embora a preocupação dominante seja a de influência política, há de se refletir sobre como a instituição religiosa chegou a um nível de domínio em espaços de comunicação em massa e mesmo na internet, com mil promessas ligadas à fé, popular, e compra e venda dos produtos cuja sacralidade se torna análoga à dos santos católicos: a fé como produto.
     A fé como produto é cada vez mais debatida em temas sobre religião. Existe uma preocupação com a atuação de instituições religiosas no meio público, num Estado republicano laico. É cada vez maior o espaço religioso em meios de comunicação em massa e na internet, com mil promessas ligadas à fé popular, e compra e venda de produtos simbólicos, com sacralidade análoga à auferida aos santos.
     Mas, o uso econômico da fé não é recente. Nas redes se divulgam cartuns e frases bíblicas de Jesus metendo o sarrafo em religiosos vendendo objetos sacros em templo, o que teria sido base para Martinho Lutero se rebelar contra a "venda de indulgências" pela Igreja Católica nas suas 95 teses, inaugurando a Reforma Protestante. Daí,  Lutero deixou de ser monge agostiniano, tornando-se o fundador e pastor do protestantismo luterano.
     Mal sabia ele que o ramo cristão que acabara de fundar,  abriria caminhos para novas denominações protestantes históricas como o calvinismo, metodista (e batista) e outras, como também para as denominações pentecostais mais dogmáticas, que derivaram em ministérios neopentecostais, hoje os grandes protagonistas do mercantilismo a dominar o cenário religioso no Brasil e mesmo no restante de toda a América.
     Quem não conhece os famosos fatos de Edir Macedo treinando seus subordinados a convencer os fiéis mais refratários, do Waldomiro vendendo objetos "ungidos" a preços estapafúrdios, RR Soares cheios de sorrisos expondo a sua conta bancária e o histriônico Silas Malafaia bradando horrores em púlpito, cada um ao seu modo, e todos com o mesmo objetivo?
     A conjuntura das razões do mercantilismo da fé pela teologia da prosperidade nas igrejas neopentecostais é complexa, reunindo fatores socioeducacionais deficientes, sociopolíticos, a liberdade econômica exacerbada que alimentou a ambição acima da noção caritativa, conluios políticos que privilegia os líderes religiosos mais ricos e influentes.
     Isso afronta a legislação que prevê limites relativos às doações mensais, como o que veda a obrigação do fiel de pagá-las. Mas, em algumas igrejas, o fiel se sente obrigado, pois os obreiros passam com as maquininhas de cartão enquanto oram "Deus abençoe os dizimistas", e também porque os "irmãos" encaram mal o congregado que não contribui.

-> As polêmicas da religião na política

     A ligação entre política e religião é bastante antiga: muitos sustentam que a religião é uma política de controle social e apontam exemplos no Oriente Médio. Aqui no Brasil não chega a tanto, mas ocorre situação parecida.
     A aproximação de lideranças bíblicas com a era PT é fichinha perto da era Bolsonaro: o atual governo já propôs dar às igrejas poder intervencionista em importantes decisões de Estado - daí o ministério de direitos humanos ser chefiado por uma pastora pentecostal, Damares Alves.
     Conflitos nas reuniões da ONU sobre direitos humanos sempre existiram, pois nunca houve interesse, em quase todos os países, em findar as violações internas. A posição brasileira atual tem sido irascível aos direitos sexuais e reprodutivos femininos. O Brasil se aproximou da Arábia Saudita num tópico pouco conhecido por aqui: a mutilação genital feminina (MGF).
     Tradicional em 28 países africanos, no Oriente Médio e partes da Europa e Ásia, a MGF ocorre em outras nações improváveis ao senso comum, disfarçada de nomes técnicos como vaginoplastia, labioplastia, etc.: é o caso dos EUA e alguns países sul-americanos como a Colômbia e até o Brasil, segundo a ativista somali Hibo Werdere, mutilada ainda criança antes de fugir.
     É notório que a estranha posição brasileira nessa questão fosse levada pelos acordos econômicos com a Arábia Saudita, e a afinidade religiosa específica ao papel social da mulher, que se acredita "naturalmente precípuo", que a rebaixa submissa ao papel masculino. O ministro do Itamaraty Ernesto Araújo, católico ultraconservador e fiel ao olavismo, chancela que "o globalismo marxista é uma ameaça ao cristianismo".
     Talvez, em parte, isso explique a conspiração da cristofobia que Bolsonaro declarou no horroroso discurso na ONU, desmentida por analistas da ONG internacional Portas Abertas, que produz ranking anual dos países mais "cristofóbicos" do mundo: o Brasil não aparece em nenhum ranking da série histórica. E não faria sentido algum, sendo um país 89% cristão.
     O que facilitou a penetração das igrejas na política em um Brasil laico e secular? O historiador estadunidense Andrew Chesnut, aponta 5 fatores: coesão ideológica, adaptação cultural dos ritos, maior flexibilidade na formação de pastores, redes de apoio comunitário em zonas carentes e capacidade de ecoar as ideias mais conservadoras das classes mais abastadas aos mais pobres. 
     Com uma ressalva, não apontada por Chesnut, mas não descartada: o poder econômico pela financeirização da fé que conta muito na influência. Líderes das mais ricas organizações evangélicas pouco fazem em caridade, e são minoria os que têm carreira política, mas os principais nomes desse ramo não fazem essa carreira, mas expõem publicamente o seu poder de influência. Econômica e política¹.
     Para se ter uma ideia dessa influência, os discursos de políticos como Bolsonaro (Brasil), Añez (Bolívia) e Trump (EUA) são pentecostais em moralidade, mesmo não sendo seguidores: os dois primeiros são católicos, o terceiro, metodista, e o último, ortodoxo². Eles acenam aos evangélicos pelos fatores já citados e, no Brasil e EUA, pela principal base eleitoral deles.
     Uma polêmica de líderes religiosos e fiéis influentes de carreira política é o envolvimento em crimes como corrupção, peculato, abuso de poder (político, econômico ou religioso), etc. O Congresso em Foco de 2018 apontava um ranking de 1 a cada 3 da bancada envolvidos em crimes políticos. Os dados da bancada atual ainda se restringem a poucos nomes em crimes comuns, como a deputada Flordelis (homicídio) e Damares (sequestro infantil).
     A maioria dos projetos de lei da bancada bíblica nos legislativos federal e regionais sequer é votada. Por não serem prioritárias, ou por fugirem do senso de ridículo. Como a PL da Calcinha, ou confinar LGBTIs numa ilha³, por exemplo. Embora aprovado, o cura gay não sai do papel nem na era Bolsonaro, por ser inconstitucional.
     Na política estadunidense, a influência pentecostal na eleição e na política de Trump se revela em assuntos mais amplos, como a política externa, o maior protecionismo nacionalista e a exportação da cultura religiosa dos EUA  para fins políticos em países africanos e sul-americanos. 

-> Finalizando:
     Enfim, todas as linhas acima explicitam claramente o uso da religião, e da religiosidade, como instrumento de controle sociopolítico, o que já é mais do que suficiente para mostrar que essa gente religiosa, de boazinha, não tem nada.

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OBS: Trechos em azul e roxo no texto são links, constados abaixo ou não.

Notas da autoria:
¹ A caridade das grandes igrejas neopentecostais não é totalmente ausente, Mas o poder arrecadatório delas denunciam a ética duvidosa dos fundadores e principais líderes.
² Ramo católico surgido no Cisma do início da era medieval em Constantinopla (Istambul), A Igreja ortodoxa é liderada pelos patriarcas, que podem se casar, como os pastores.
³ Proposta de deputado estadual de Santa Catarina, inspirada em lei fascista aprovada na Itália em 2013.

Para saber mais:
- http://direito.folha.uol.com.br/blog/joo-de-deus-e-os-limites-entre-curandeirismo-charlatanismo-exerccio-irregular-da-medicina-e-a-proteo-da-f
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Reforma_Protestante
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Mutila%C3%A7%C3%A3o_genital_feminina#:~:text=A%20mutila%C3%A7%C3%A3o%20genital%20feminina%20(MGF,os%20%C3%B3rg%C3%A3os%20sexuais%20externos%20femininos.
- https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-09/cruzada-ultraconservadora-do-brasil-na-onu-afeta-ate-resolucao-contra-mutilacao-genital-feminina.html
- https://www.cartacapital.com.br/sociedade/quatro-milhoes-de-meninas-devem-ser-sexualmente-mutiladas-em-2020/
- https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47136842
- https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/opiniao/2020/07/01/internas_opiniao,868335/abuso-de-poder-religioso.shtml
- https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50462031 (religião e política)
- https://jus.com.br/artigos/35695/os-crimes-contra-o-sentimento-religioso
- https://www.agazeta.com.br/es/gv/o-que-e-estelionato-espiritual-e-como-voce-pode-denunciar-0120
- https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54254309
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Bancada_evang%C3%A9lica
- https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/um-em-cada-tres-deputados-e-acusado-de-crimes/
- https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/12/politica/1565621932_778084.html

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