quinta-feira, 15 de outubro de 2020

 Ustra, Bolsonaro, Mourão e a barbárie de Estado


     Esses dias, o vice-presidente Mourão soltou um elogio ao falecido coronel do Exército Brilhante Ustra, que ficou conhecido como torturador no regime militar. A reação nas redes foi muito mais indignação de muitos e admiração de alguns, do que surpresa.
     Mas não surpreende: o elogio partiu do vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, junto a Jair Bolsonaro, conhecido admirador de Ustra e ex-capitão na reserva. Ambos, do Exército.
     Assim como tantos profissionais, os militares também têm corporativismo de classe. Nesse sentido, o elogio é compreensível, mas, considerando-se fatores históricos e sociopolíticos mais amplos, aí, sim, a crítica se faz necessária. 
     Afinal, vale frisar: Ustra faz parte da "lista maldita" de personagens da ditadura militar (1964-85), que foi um dos períodos mais sombrios da história moderna do Brasil, com um número ainda incerto de vítimas que morreram e/ou sofreram nas mãos dessa lista.
     Gaúcho de Santa Maria, Carlos Alberto Brilhante Ustra (1938-2015) entrou no Exército aos 18 anos e seguiu na carreira militar. Coronel, foi para o DOI-CODI do II Exército em São Paulo em 1970, onde ficou até 1974. Os prisioneiros políticos¹, o conheciam como Dr. Tibiriçá. 
     Em 1986, adido no Uruguai, Ustra foi reconhecido como torturador pela então deputada Bete Mendes. Ela pediu sua exoneração, que foi negada pelo ministro do Exército². Respondeu, em sua versão, no livro Rompendo o silêncio. Em 2006 lançou A verdade sufocada, sua versão sobre a vida em SP. Mesmo na reserva, foi ativamente político, pró-ditadura militar e anticomunista.
     Bolsonaro declarou o livro de 2006 como "de cabeceira". Mourão nunca afirmou ter lido algum deles. Essas linhas podem parecer bobagem, mas a admiração de ambos e o ativismo extremista de Ustra determinaram o papel desempenhado pelas forças militares desde o regime militar, e os engodos populares que reforçam essa atuação.

-> Barbárie e censura "pela ordem"
     A tal "tranquilidade das ruas" dos nostálgicos era só aparente. Mal sabiam estes que as PMs trocaram seu papel de segurança pelo de repressão gratuita. Se acreditam que "bandido não tinha vez", também não a tinha qualquer cidadão pobre, negro, minoria étnica e sexual, mesmo sem ter "ficha corrida".
     A violência urbana grassava tanto quanto hoje. Nas periferias e na Baixada Fluminense, por exemplo, sempre ocorreram muitas execuções sumárias, atribuídas sempre como misteriosas pela grande mídia: crimes "sem solução", que caiam nas gavetas do esquecimento. Só nos anos 1980 que foi possível atribuir a maioria dessas execuções aos esquadrões da morte³.
     Chamadas de justiceiras, essas forças paralelas sempre foram temidas pelos moradores das periferias, que continuam a viver sob dupla opressão, delas e oficial. Elas matavam traficantes e criminosos comuns. Assim, tiroteios e homicídios eram tão comuns quanto hoje, mas sempre muito segredados devido à pesada mão da censura. E em nome da vida. 
     Se as pessoas acham que a violência das operações nas favelas do Grande Rio é recente, vale saber: sempre foram violentas no terror da ditadura militar. E classista desde sempre: aos mais abastados, o trato camarada, aos populares e mais pobres, tiro, porrada e bomba. 
     As prisões se tornaram verdadeiros presídios políticos. Salas de tortura foram criadas, tanto no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) quanto no Departamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) em todo o país. O primeiro foi criado em 1924, e o segundo, pela Operação Bandeirantes (Oban) em 1969, fruto do AI-5.
     Nas ruas centrais, a temida Polícia do Exército (PE) reprimia cidadãos com violência, alegando "restauração da ordem pública". Manifestações populares eram duramente reprimidas, sendo totalmente proibidas pelo AI-5. Mídias apoiadoras do regime fotografavam furtivamente. Foi aí que o termo "vândalo" passou a denominar os manifestantes populares. Até hoje.
     Por ordem institucional (AI-5), a PE rondava também nas ruas de forma a dissipar grupos de jovens estudantes e trabalhadores, visando silenciar possíveis conversas políticas. Gíria nova já era motivo suficiente para ir à delegacia para revistas humilhantes e responder perguntas num interrogatório longo e ameaçador.
     Nos distritos industriais do país, trabalhadores eram extremamente vigiados pelas chefias. Nas áreas abertas os grupos eram dispersados. Qualquer suspeita era comunicada pelos empresários às autoridades, que ordenavam a prisão dos "suspeitos" para averiguação - e houve perseguições, como na Wolkswagen, que fechou acordo para indenizar as vítimas.
     O caso Wolks vemos ser emblemático, pois foi o mais conhecido. Mas não o único. A diferença é que houve em torno de 100 empresas envolvidas em perseguição e delação, que tinham como recompensa muito incentivo fiscal e dinheiro. 
     E falando em censura e punitivismo, outro alvo conhecido foi a cultura. Numerosas peças de teatro foram punidas, e não raro uma peça liberada era interrompida pelas "duras" da PE para dispersar o público e gerar prisões de averiguação, sumárias, visando flagrar algum subversivo infiltrado. Muitos artistas foram presos, torturados, ou exilados.
     Ironicamente, um saldo positivo, um só, pelo menos, foi proporcionado nos tempos da censura: a imensa criatividade dos artistas nos mais variados ramos da arte. Sem apagar o tom da visada crítica política. Músicas e artes cênicas que são sucessos intermitentes. Um legado positivo na politização da patuleia. 
     A reabertura política em 1985, com a entrada de José Sarney, que baniu a censura, permitiu à grande mídia maior expressão de várias notícias. Todavia, ela permaneceu escrava do sistema econômico liberal sustentado pelos governos, com notícias e editoriais sem o contrariar. O que se esperava de educação política não ocorreu, nem no petismo. E agora tende a regressar.
     
-> A barbárie da concentração socioeconômica e educativa
     O regime militar também foi o período em que se iniciou legislação favorável a um dos atos que a história recente já mostrou ser um dos maiores problemas brasileiros: a privatização. Detalhe: o primeiro serviço a entrar nesse molde foi a educação. Não é por acaso que pipocou tanta escola particular a partir do citado período.
     Pode parecer não ser nada, mas a profusão de escolas particulares pode ser vista como outra forma de barbárie antissocial do Estado autoritário, pois, junto à aguçada concentração de renda, houve concentração de acesso à alfabetização por alunos de famílias de rendas médias a altas, excluindo a maioria dos pobres moradores das favelas das periferias.
     A ditadura foi a época dos vendedores ambulantes de mapa-múndi e coleções enciclopédicas. Nas bancas era muito comum comprar fascículos para encadernar em volumes depois. Parecia tudo muito liberado, só que não: muito das informações sobre sexualidade e gênero, entre outras coisas, eram sumariamente censuradas.
     A economia também foi muito concentrada na época. O Brasil tinha uma indústria centrada em distritos em SP e RJ. A economia agropecuária em crescimento e a mineração moviam o status quo econômico de exportador de matéria-prima para comprar, com taxas altíssimas, manufaturados. A inflação depauperava muito a economia popular e favorecia os mais ricos.
     A pujança estava nos estados do Centro-Sul do país, enquanto as regiões Norte e Nordeste eram restritas a respectivos projetos de mineração (Jari e Carajás) e turismo de praia. Como há décadas, hordas de sertanejos miseráveis migravam ao Sudeste, onde moviam mais a economia com o seu trabalho, mas continuavam pobres, morando nas favelas.
     A continuidade do êxodo rural nordestino, que ocorreu desde a era Vargas, foi fruto da pobreza extrema alimentada pela "indústria da seca", através da qual coronéis da política local e ditadores em Brasília compartilhavam a riqueza ilícita com a grana pública que seria destinada ao sertão.
     Enfim, a vida na ditadura militar não foi tão fácil assim. A exposição de tantos problemas da época se faz necessária no atual governo de admiradores de torturadores. Afinal, depende de nós resistir para que não voltemos totalmente 56 anos em 4 anos, ou menos. E desenganar a doce nostalgia.


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OBS: trechos em azul ou roxo são links, podendo estar na lista abaixo ou não. Fotomontagem de imagens via Google.

Notas da autoria:
¹ Junto com Fleury (DOPS/SP), Ustra foi reconhecido por numerosas vítimas, e condenado em 2008. Falecido em 1979, o colega não foi penalizado.
² Na época eram três ministérios militares, Exército, Aeronáutica e Marinha, reunidos em um só, a Defesa, desde 1990.
³ Antigo nome das atuais milícias, formadas por PMs, PCs, bombeiros e militares das FFAA.

Para saber mais:
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Alberto_Brilhante_Ustra
- https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Verdade_Sufocada
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Comiss%C3%A3o_da_Verdade
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Departamento_de_Ordem_Pol%C3%ADtica_e_Social
- https://pt.wikipedia.org/wiki/DOI-CODI
- https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/historia-quem-foi-coronel-ustra-ditadura.phtml
- https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160419_torturado_ustra_bolsonaro_lgb
- https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-32622008000300002&script=sci_arttext (acadêmico)
- http://www.ets.ufpb.br/pdf/2013/2%20S1%20Politicas%20Publicas%20na%20Educacao%20Superior/08%20GHIRALDELLI%20JR,%20Paulo.%20Ide%C3%A1rio%20Autorit%C3%A1rio%20e%20Leis%20da%20Educa%C3%A7%C3%A3o%20sob%20a%20Ditadura%20Militar.pdf (acadêmico)
- https://www.dw.com/pt-br/volkswagen-vai-indenizar-v%C3%ADtimas-da-ditadura-no-brasil/a-55034209
- https://operamundi.uol.com.br/permalink/66818
- https://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/08/politica/1410204895_124898.html 




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