Um decreto a desafiar a inclusão?
Em 30/9, Jair Bolsonaro assinou o decreto 10.502/2020, o novo Plano Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e Com Aprendizado ao Longo da Vida, no qual enumera as diversas variantes da educação especial, e outras providências.
E, tal como já ocorreu com outros decretos diferentes, este já veio para causar polêmica tão logo foi disponibilizado para a geral.
Ainda que o grosso da essência de documentos anteriores ao supracitado, mas a partir da LDB-1996, passados sem grande celeuma popular, tenha se mantido.
O objetivo deste artigo se centra em analisar a reação social sobre a educação especial.
-> Pontos da grande polêmica
A primeira foi no Inciso I do artigo 2, sobre o acolhimento "preferencialmente na rede regular de ensino...". A 'preferência' fez muita gente cuspir fogo.
Vale dupla linha de análise aí. Numa delas, a LDB-1996 obriga a rede regular de ensino de acolher os alunos especiais (com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento (TGD) e altas habilidades-superdotação). Só os casos muito específicos e graves são encaminhados normalmente à escola especial.
Na outra, a maioria das escolas regulares brasileiras carece de infraestrutura adequada para acolher a todos os 15 milhões de alunos especiais em vários graus de gravidade. As poucas realmente completas da rede pública já atendem à sua cota, e as particulares são inacessíveis para famílias de rendas mais baixas. Assim, milhares estão fora ou mal atendidos.
Outro alvo de análise é a ligação entre os incisos III (educação equitativa) e VI (escolas especiais), que pode explicar o ápice da polêmica.
Educação equitativa* é um conjunto de "práticas necessárias e diferenciadas para que todos tenham oportunidades iguais" de modo a "valorizar ao máximo as potencialidades" e "eliminar ou minimizar as barreiras" a impedir a vivência plena do educando na sociedade. Mesmo sentido empregado há décadas para definir a "normalização".
Escolas especiais são instituições de ensino paralelo especializado, com equipe múltipla** para atender a alunos que não foram beneficiados na rede regular. Idealizadas e fundadas nos anos 50 na Europa e EUA, as primeiras sedes brasileiras, dos anos 60, são regularizadas pela LDB-1971 na missão de "normalizar" para integrar os alunos na rede regular e na sociedade.
As escolas especiais foram regulamentadas na LDB 5.692 de 1971, justamente quando surgiram as primeiras críticas às escolas especiais: elas eram mais depósitos de alunos, muitos deles desnecessários lá, e a normalização não resolveria o problema da segregação social dos alunos. Eram críticas de várias vertentes, que se convergiam nesses pontos críticos.
Outro fator crítico foram os primeiros manifestos pela educação inclusiva, nos EUA e logo em seguida na Europa, na mesma época. Segundo seus organizadores, a inclusão seria uma vertente oposta à da normalização - tópico a ser exposto e analisado no item seguinte.
Apesar das muitas críticas, as escolas especiais não foram banidas pela LDB de 1996, que prevê a elas a ação de intervir nos casos já explicados. O temor na polêmica com o novo decreto é de ameaça do retorno da normalização, embora não tenha, ao menos aparentemente, depreciações à prioridade inclusiva.
-> Inclusão vs normalização: análise da crítica pontual ao decreto
Este item trata de um assunto central da análise dos críticos do decreto de Bolsonaro: afinal, o decreto deprecia a inclusão e faz voltar a temida normalização? Inclusão é utopia?
É preciso entender que, sim, faz inteiro sentido o argumento que fundamentou a crítica dos primeiros manifestantes pró-inclusão à normalização das escolas especiais, o de serem práticas opostas, tese sustentada até hoje.
A educação inclusiva se referencia na teoria socio interacionista de Lev Vygotsky***, que aponta a aprendizagem estimulada pelas interações intensas; e na construtivista de Jean Piaget, para quem os alunos são sujeitos ativos do aprendizado mediante a construção experimental, individual e coletiva dos conhecimentos.
Embora não fossem educadores formais, Marx e Engels (séc. XIX) deram subsídios para se entender a educação crítica, dialética e dialógica, defendida por Paulo Freire (que Bolsonaro deprecia) e Noah Chomsky, entre outros. Subsídio este bem explorado nas teses de Vygotsky, e implícito em Piaget.
Se a inclusão se baseia nas interações constantes entre os comuns e especiais a estimular o aprendizado e minimizar as limitações dos últimos, daí a defesa da educação destes na rede regular, explanar em como se processou a normalização não é muito simples, mas a sua compreensão não é difícil.
A normalização ocorria por intervenções para maximizar a proximidade comparada entre o "grupo controle" de pessoas comuns e o especial, até o especial estiver apto a conviver em sociedade. Nos EUA houve o tipo mainstreaming, uma "integração" forçada para uma vida de produtividade, assistida ou não, após período interventivo na instituição.
As críticas à normalização residiam tanto no processo em si, alegando instituir negação da deficiência, quanto na acusação de segregação, uma vez que, tanto na forma estadunidense quanto na brasileira, pois os sujeitos eram logo apresentados como "excepcionais", mesmo comprovada sua plena capacidade produtiva.
Nesse sentido, e considerando-se a descrição conceitual de educação equitativa, se pesou a crítica ao decreto de Bolsonaro. Seria uma forma de fazer maximizar a importância das escolas especiais e da normalização? Será o retorno às intervenções educativas dos anos 60-70? Não há como afirmar: o documento não deprecia a educação inclusiva.
Mas, ainda que o temor possa parecer exagerado ou sem fundamento, vale atentar, quando se trata de um destaque às escolas especiais e aos detalhes da sua supracitada missão.
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OBS: os trechos em azul ou roxo contém links que fundamentam as análises deste blog.
Notas da autoria:
*O conceito descrito é baseado no inciso III do art. 2 do decreto 10.502/2020.
**Equipe de vários profissionais especialmente habilitados para atender aos alunos conforme necessidades individuais. Nas escolas especiais trabalham educadores, médicos, fonoaudiólogos, psicólogos clínicos e terapeutas, psicopedagogos e neuropsicopedagogos.
***Principal nome de referência dos seguidores da inclusão, na especificidade da educação especial.
Para saber mais:
- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10502.htm (decreto na íntegra)
- https://periodicos.ufsc.br/index.php/pontodevista/article/download/1042/1524 (normalização, inclusão)
- https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782006000300002 (debate inclusão)
- http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/2086 (práticas normalizadoras)
- https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2020/10/o-golpe-de-bolsonaro-contra-a-politica-de-educacao-especial-inclusiva-por-paulo-pimenta/ (crítica ao decreto)
- https://campanha.org.br/noticias/ (carta de análise do decreto na íntegra)
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