Violência instituída sim, cidadania zero
Diariamente, as mídias noticiam atualização oficial de mortes e confirmações de novos casos de Covid19, referendada no consórcio de imprensa ligada ao ministério da saúde. A atenção geral à patologia se deve à novidade da informação ao grande público, e mesmo que os contrários neguem, o vírus e a doença não devem ser subestimados em sua importância para a saúde pública.
Todavia, é compreensível porque a maioria dos trabalhadores não desempregados encara diariamente os riscos para não ser demitida sem direitos. Os riscos a que me refiro são a violência e a C19.
-> Violência policial e de classe
Polícia na favela que mata cidadãos em baile funk, mas não em área nobre. Para a grande mídia, ponto de droga em subúrbio é boca de fumo, e na zona abastada, ponto de drogas. São a mesma coisa, mas é "uma questão de classe". Operações policiais que deixam rastro de morte, sangue, filhos órfãs e pais sem filhos, numa orfandade inversa.
Prisões arbitrárias de cidadãos a cuja inocência governos, justiça e elite fecham os olhos. Se estima que mais de 50% da população carcerária sejam cidadãos aguardando julgamento, muitos presumivelmente inocentes.
Todo mundo sabe que a violência marca o Brasil desde o início. É tão histórica e cheia de significados que, como tradicionalmente se diz, "somos construídos de sangue e dor". Faz todo sentido.
Como o uso e manutenção intensivos da repressão como tática das PMs. A repressão em si não é ilegal, desde que usada conforme a lei o para a segurança de todos. Portanto, o problema não tem sido a repressão em si, mas o método e o alvo. O que poderia causar estranheza, só que não. O alvo é o popular trabalhador, o "inimigo perigoso" segregado para não atemorizar o abastado cidadão "de bem". Samba e fé afro já foram criminalizados por isso. Em seu livro Os Sertões1, Euclides da Cunha critica a violência militar na guerra de Canudos. Reflexos de uma sociedade que já nasceu elitista.
A ditadura militar piorou a qualificação das polícias, agudizando a visão do povo como o inimigo a ser combatido diluindo, então, o caráter meramente ideológico. A herança ditatorial permanece na violência das supramencionadas operações policiais.
Menores índices de homicídios do Anuário brasileiro de Segurança Pública de 2019 aliviaram as mídias e autoridades. Sim, diminuiu na autoria de criminosos comuns, mas houve aumento da letalidade policial, o que suscita clara desconfiança aos números: no cômputo geral, a violência é a mesma de antes.
Mas, surge a conta: a desconfiança dos populares no papel das PMs. É pleno e justo o temor dos mais pobres ao ver PMs na sua comunidade, por gerar incerteza de sobreviver à tradicional revista diária.
E há uma violência policial simbólica: o machismo. Apesar do crescimento de denúncias, raros são os crimes de gênero resolvidos: essa é a categoria criminal mais encoberta pela PM. O motivo é valorativo-religioso, que determina os papéis de cada gênero e posição social, baseados em relações de dominação.
-> Violência judicial e sociopolítica
A Anuário é importante para contabilizar números oficiais da violência urbana, mas é diluído por outras violências que, mesmo como notícia diária, não são quantificadas. Todavia, seus valores revelam o quão assustadoras elas são.
O político eleito com atrativos moralismos, mas que decepciona no poder ao protagonizar crimes comuns e políticos diversos e graves, naturalizar o ódio e mentir para se omitir nas políticas públicas em plena calamidade, e o conivente aceno de autoridades eleitas para impor limites.
O ex-empregado processa judicialmente o ex-empregador pelos erros deste, mas perde causa e ainda tem que arcar com as custas processuais. Ou processo judicial em que cidadão não-branco é mais perdedor do que o branco, seja réu ou autor.
Vários desvios de recursos públicos, nepotismo ilegal descarado, tráfico de influência, descaso com a saúde, educação e ambiente em grande escala, reformas que aumentam a tragédia socioeconômica, defesa a organizações criminosas, tudo isso são violências políticas sobre toda a coletividade.
A proposta (ainda de pé!) de privatizar os serviços de todas as esferas da saúde pública é tão violenta quanto o foram as reformas trabalhista, da previdência, do congelamento dos gastos públicos essenciais, o fim do coronavoucher em pleno surto de Covid, e a independência do Banco Central aprovada na surdina pelo Senado enquanto a geral se atenta à eleição estadunidense.
Também são violências certas ações das excelências do judiciário, ao aplicar dois pesos e duas medidas nos processos em geral, conforme seus interesses. Quanto aos ganhos, os penduricalhos desnecessários são outra violência: mais de 90% dos gastos públicos com pessoal são sugados pela cúpula dos serviços.
O caso do "estupro culposo" que absolveu o estuprador e condenou Mariana Ferrer em audiência on-line em Santa Catarina merece, sim, crítica. A vítima foi violada fisicamente, e duas vezes moralmente na audiência (injúrias pelo promotor e o veredicto do juiz). Olhem o tamanho do trauma para retrabalhar.
Apesar de a depreciação do promotor ser lícita nos processos, há de se debater sobre as dimensões e os limites dessa ação e buscar solução para os casos que extrapolam os limites. Tamanha necessidade disso justificou a posição da OAB sobre a conduta do profissional no caso acima.
Pois, como exemplificado na relação entre PM e crimes de gênero, o caso Mariana abre precedentes para uma linha de análise sobre o fator cultural da depreciação dirigida, num linguajar moralista muito semelhante ao usado pelos bolsominions.
Até porque, tal como exemplificado no item anterior sobre crimes de gênero, o caso Mariana também abre precedentes para esta linha de análise. Afinal, a depreciação contra a vítima teve caráter moralista, em linguajar muito utilizado pelos bolsominions, que seguem uma ideologia agressiva.
-> Violência na pandemia
Assim como a polícia e a justiça, a pandemia tem sido sistematicamente politizada, minimizada em seus perigos à saúde coletiva a uma "gripezinha". Gripezinha que tem causado estragos, conforme as estatísticas oficiais atualizadas.
A politização da C19 se iniciou nas primeiras mortes, sobre cidadãos de classes mais abastadas, mas se intensificou quando se alastrou entre as classes populares dos subúrbios e favelas.
Com o conivente silêncio de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, a politização da C19 contou com dois focos de apoio: de setores da grande mídia próximos do governo, que amenizaram o tom sobre o tema e poupam críticas às rapinas do poupado2 Paulo Guedes arruinando o país.
O negacionismo do governo encontrou nos bolsominions, muitos destes populares, contribuintes no alastramento comunitário do vírus, aumentando as dimensões da tragédia. Um claro recado do líder dera quando deputado: "sou especialista em matar".
Daí a agressividade do bolsonarismo, que tornou o C19 instrumento político de extermínio de pobres e minorias étnicas, sexuais e religiosas, com reforço nos índices dos vários crimes de ódio, fortalecendo as desigualdades nas relações humanas em geral e seletividade em ações institucionais.
Nisso, a C19 não inibiu a violência urbana produzida pelas PMs e milícias. Com o tráfico mais recuado, a criminalidade violenta aumentou muito, exceto onde há narcomilicianos4, ligados ao bolsonarismo.
Ainda não foi feito somatório estatístico com números da C19 e os das violências, talvez por perda de confiança nos números ou desinteresse em cruzar os resultados da ainda corrente era bolsonarista. Mas já é possível inferir uma projeção qualitativa, que escancara a maior perda do povo brasileiro invocada por esta ideologia: a perda da cidadania.
Bolsonarismo: violência instituída sim, cidadania não - ou só pra que interessa seus ícones.
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Notas da autoria:
1 A passagem da Guerra de Canudos (Bahia, início do século XX) foi um relato pessoal do escritor, repleto de ricos detalhes que se refletem na vida atual. Vale a leitura.
2 Poupado por toda a grande mídia em nome dos grandes grupos transnacionais e mercado financeiro.
3 Já conceituado e discutido em alguns artigos pretéritos deste blog.
4 Fusão milícia-tráfico, no artigo deste blog, Uma pacificação política, de 25/7.
Para saber mais:
- https://g1.globo.com/retrospectiva/2019/noticia/2019/12/16/monitor-da-violencia-assassinatos-caem-em-2019-mas-letalidade-policial-aumenta-no-de-presos-provisorios-volta-a-crescer.ghtml
- https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/06/policia-do-rj-cometeu-1-em-cada-3-homicidios-no-estado-em-maio.shtml
- https://ponte.org/em-sp-quanto-mais-a-pm-mata-menos-policiais-sao-presos-por-homicidio/
- https://www.pnbonline.com.br/policia/taxa-de-homica-dio-cai-em-2019-e-tem-alta-em-2020/70865
- https://diplomatique.org.br/um-cenario-que-atualiza-uma-politica-estatal-de-exterminio-dos-indigenas/
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