terça-feira, 15 de dezembro de 2020

C19 e o duvidoso plano de vacinação

     Enquanto o mundo se mobiliza para receber os primeiros lotes de vacina anti-C19, o Brasil se perde em uma guerra sem fim por conta do disse-me-disse provocado pelo governo sobre se alguma vacina vem ou não em 2021.
     Agora, mais essa: nessa sexta 11/12, Bolsonaro disse que vai fazer o confisco de vacinas. E ainda teve apoio de Ronaldo Caiado, médico e governador de Goiás. Mas o Ministério da Saúde desmente essa afirmação.
     A negação do MS faz mais sentido, uma vez que foi entregue ao STF o documento contendo o plano nacional de vacinação contra a C19, que por sua vez prevê cobertura para 50 milhões de pessoas no primeiro semestre de 2021. 
     Mesmo parecendo promissor, o plano corre sérios riscos, cujas motivações serão explicadas ao longo do presente artigo. Motivações estas que, além de serem sujeitas à reprovação do plano pelo STF, podem arriscar o pescoço do governante. Sigamos.
     
-> Queda da adesão e da crença na ciência

     Conforme Leonardo Sakamoto na blogosfera do UOL, a Datafolha realizou nova pesquisa sobre a adesão brazuca à imunização contra a C19, prevista para 2021, já com certo atraso, pois devido à atual alta pandêmica, alguns países adiantaram para este mês. O artigo foi repassado pelo DCM.
     Nessa pesquisa, 22% não querem se vacinar e 73% sim. Em agosto eram 9% e 89% em respectivo. Pesquisa de outubro revelara que 17% em Sampa, 16% no Rio, 15% em Belo Horizonte e 20% no Recife recusariam a vacina, mostrando o poderio da máquina de fake news bolsonarista.
     Atuando há tempos e sustentada por grupos olavistas e evangélicos radicais que garantiram a eleição de Bolsonaro, essa máquina antipetista tem atacado igualmente a ciência e os cientistas, resultando em ínfimos recursos ao MCT1 e prejudicando a pesquisa científica e tecnológica no país.
     Ela criou várias falácias sobre as vacinas, entre elas a de 'causar autismo', 'modificar nosso DNA', 'ter chip para lobotomizar os povos', e o mais recente absurdo de 'poder mudar o sexo das pessoas'. O alvo principal é, claro, a chinesa Coronavac, considerada uma das mais eficientes até o momento.
     A adesão ainda majoritária significa que tais falácias não têm crédito. Mas viram piadas e memes na internet - uma perigosa distração, enquanto o governo trabalha em silêncio para degenerar as políticas públicas com reformas a destruir os serviços públicos, a política ambiental e outros perigos.
     E, enquanto o Congresso se propunha um decreto legislativo para plano de vacinação em massa, devido à pressão do contexto da tragédia, o governo entrega o plano nacional de imunização do MS ao STF para apreciação.

-> O plano nacional de imunização

     O plano nacional de vacinação do MS foi entregue ao STF para a apreciação, contendo os seguintes dados para grupos prioritários:
     Os grupos prioritários para vacinação são idosos maiores de 75 anos, profissionais da área de saúde e indígenas maiores de 18 anos na 1ª fase; maiores de 60 a 74 anos na 2ª fase; 3ª fase maiores de 18 com comorbidades crônicas, anemia falciforme, transplantados, oncológicos e obesos de IMC >40; e 4ª fase com professores, forças de salvamento e funcionários prisionais, cobrindo 50 milhões de pessoas.
     Seria promissor se tais fases compusessem uma primeira etapa ampla, para prioritários, não fosse a descoberta de polêmicas e falhas pelos pesquisadores, entre estes nomes citados no documento. Numa semana que termina com mais de 300 mil novos infectados oficiais, que excluem subnotificações.
     Como os indicadores do caráter duvidoso do plano são muito minuciosos, neste artigo se preocupa nos principais, em duas categorias: as falhas e a polêmica, ambas suficientemente graves.

Falhas
     A principal falha analisada no documento está na amplitude dessa parcela de prioritários, conforme apontado pela epidemiologista do CNPq e pesquisadora da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), PhD Ethel Maciel, ao Jornal das Dez da Globo News em 12/12.
     Como indicado acima, o plano prevê cobertura para 50 milhões de brasileiros contemplados nos grupos das quatro fases. Segundo Ethel, embora fosse positivo em considerar os grupos prioritários, o plano desconsiderou a grande heterogeneidade dessa supercamada, que é muito maior:
     - indígenas: população geral é cerca de 950 mil, vulnerável, mas só 210 mil foram visados.
     - quilombolas, ribeirinhos, sertanejos, população de rua urbana: vulneráveis desconsiderados.
     - pessoal da educação e saúde: desconsiderou sua heterogeneidade. Administrativos, merendeiras, porteiros, seguranças, atendentes, serviços gerais e limpeza, motorista de ambulância, nutricionistas, assistentes sociais, fisio e psicoterapeutas, técnicos em geral, agentes de serviços gerais, etc.
     - transplantados/comorbidades/oncológicos: desconsiderou sua heterogeneidade.
     Na observação de Ethel, se insinuou o que pode ser interpretado como relativismo do risco do vírus, ao citar que cidadãos de idade produtiva e sem comorbidades compuseram importante parcela das vítimas fatais nos dados oficiais do MS, que excluem as certamente numerosas subnotificaões.
     É uma gama enorme de trabalhadores, a maioria sem qualificação ou mal qualificados, em diversos ramos e de cinturões pobres sem assistência pública adequada. O gênero também é um problema: as mulheres pobres e não brancas são maioria na linha de frente (domésticas, cuidadoras de idosos, área de enfermagem, etc.), sendo as principais vítimas fatais da C19.

Polêmica grave
     Certamente, a mais grave nessa história é o plano não ter sido visto pelos 36 pesquisadores cujos nomes foram citados como se tivessem dado aval. Um deles foi o pesquisador Leonardo Bastos, da FioCruz. O grupo emitiu nota negando ter visto o documento.
     Após leitura da falha do item anterior, decerto os leitores questionarão: se os pesquisadores não viram o documento, como a dra. Ethel analisou a cobertura dos prioritários na Globo News?
     Simples: assim como os demais, ela soube do conteúdo e da citação dos nomes pela imprensa, que nesse caso acabou prestando um enorme serviço ao demonstrar o caráter duvidoso dos atores que o elaboraram, o que lança dúvidas também quanto à validade do conteúdo da proposta.
     Vale salientar que os pesquisadores não negaram conversações com o MS sobe a elaboração do plano, sobre a abordagem dos brasileiros a partir dos grupos prioritários considerando-se os de maior vulnerabilidade, como os de risco (idosos, comorbidades, povos originários e tradicionais, etc.).
     Ao negarem ter visto o plano, os cientistas revelaram a possibilidade de má elaboração em outras variáveis, como organização de campanhas, orçamento, logística e distribuição dos produtos a todo o país, etc. Para essa adequação integral, os cientistas têm que ver para analisar a proposta. 
     Mas, pode revelar muito mais.     

-> Reflexão final

     A ideia de Bolsonaro de confiscar vacinas foi uma resposta ao plano de Doria (SP) de importar a Coronavac sem aprovação prévia da Anvisa. Ou seja, mera briga política, para fazer desviar o foco popular na vacinação. 
     Por outro lado, o suposto confisco, se fosse algo sério, seria logo desfeito: não há previsão legal. Já a proposta de Doria tem previsão legal, haja vista o caráter emergencial, previsto pela Constituição. Por isso Doria respondera a Bolsonaro de ser o confisco uma insanidade. E o próprio MS negou a ideia.
     O parágrafo acima é só um pequeno detalhe, pois revela a maestria de Bolsonaro na arte de distração da geral do poder avassalador de seu governo sobre os pontos mais urgentes e graves, que põem a saúde e a economia popular em sério risco de colapso geral.
     Já o plano nacional de vacinação é, de fato, o mais grave. A possibilidade de invalidação pelo STF é enorme. Para quem não sabe, é praxe os governos entregarem planos de vacinação periódica em todo o país, e nunca houve um caso reprovado. Pode ser o primeiro e vergonhoso caso.
     Vergonhoso por se relacionar a uma situação de extrema emergência. E por revelar, muito além das falhas na abordagem de populações, o obscurantismo sobre o uso dos recursos a serem gastos na campanha pondo em xeque as possibilidades reais de haver vacinação no primeiro semestre de 2021.
     Para se ter uma ideia, clínicas privadas já se prontificam a oferecer vacinas, com lista de espera e tudo, segundo seus responsáveis, ainda que não seja para 2021. E os preços podem ser para poucos.
     Nesse sentido se revela a irresponsabilidade do governo, ainda que pelas mãos de terceiro, no caso o general Pazuello, alçado a ministro da saúde e que assinou o plano em nome do ministério. E o fato de ser ministro o faz parte do governo liderado por Bolsonaro. 
     A posição dos pesquisadores envolvidos em suas análises certamente influenciará os ministros do STF, que pode solicitar presencialmente alguns deles para análise minuciosa, como o fizeram para a legalização do aborto em casos específicos há anos atrás. Ou, pode abrir caminho para a reprovação do documento.
     Se o veredicto final dos ministros for a reprovação, o governo sofrerá uma pressão absurda para fazer outro documento com a presença de alguns dos cientistas. A pressão, do Congresso e STF no Brasil, e OMS e Biden lá fora, junto com a gravidade do plano, pode levar ao colapso do governo Bolsonaro.
     De qualquer forma, além da maestria do absurdo kafkiano, da aposta a um fracassado sistema econômico e de toda a sorte de destruição da unidade interna e da anomia social, o governo Bolsonaro pode terminar prematuramente, deixando como novos legados o descontrole da C19 e um plano de vacinação que de nada servirá.

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Notas da autoria:
1. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, de Marcos Pontes.
2. 

Imagem: Google

Para saber mais:
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/alem-de-mortos-e-desemprego-bolsonaro-deixa-legado-de-descrenca-em-vacinas-por-leonardo-sakamoto/
https://noticias.uol.com.br/colunas/josias-de-souza/2020/12/11/governo-bolsonaro-agora-cogita-confiscar-vacinas.htm
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/12/ministerio-da-saude-nega-plano-de-confisco-ou-requisicao-de-vacina-contra-covid.shtml
https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-12/governo-entrega-ao-stf-plano-nacional-de-vacinacao-contra-covid-19
- https://catracalivre.com.br/cidadania/pesquisadores-dizem-que-nao-assinaram-plano-do-governo-contra-covid-19/
- https://revistaforum.com.br/coronavirus/meu-nome-saiu-e-eu-nao-li-diz-pesquisador-que-assina-plano-de-vacinacao-do-governo-bolsonaro/
- https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/saude/especialistas-dizem-nao-ter-dado-aval-a-plano-de-vacinacao,b4e49b3151c13ef4da750ca86f43a134ifxbfacd.html
- https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/12/13/O-plano-de-vacina%C3%A7%C3%A3o-em-xeque.-E-outros-atropelos-do-governo
- https://oglobo.globo.com/sociedade/professora-listada-como-elaboradora-do-plano-nacional-de-vacinacao-diz-que-nao-teve-acesso-ao-documento-24794992
- https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2020/10/30/a-falta-que-mortos-na-pandemia-farao-tambem-para-a-riqueza-do-brasil.htm
- https://www.conjur.com.br/2020-set-05/barbosa-direitos-sociais-covid-19-morte-anunciada

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