terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Mortes de pobres e PMs: pontos comuns e díspares


     Em artigos anteriores, a violência entre as PMs e as populações mal favorecidas tem sido um tema tão recorrente quanto os noticiários que param nas redes sociais, nas quais ganham chuvarada de comentários diversos.   
     E foi após observar, no dia 5/12, uma postagem do deputado Marcelo Freixo sobre as duas primas mortas por 10 tiros na porta de casa atribuídos à PM, que o presente artigo se constrói, novamente focando a violência urbana.
     O tema se torna impagável, mas alvo de nova reflexão, graças a dois destaques ocorridos na semana que finda: o assassinato a tiros das duas primas em uma favela em Caxias, e o outro, à queima-roupa, do Cabo PM Cardoso, numa loja Casa & Vídeo em Mesquita, na baixada fluminense.
     Dois crimes, com dois tipos de alvo diferentes, que os coloca de frente, numa relação muito mais de duelo e competição entre si pela sobrevivência do que de proximidade. Mas, o que esses antagonismos têm em comum? E o que os torna tão díspares?
 
-> Reflexos de um problema histórico 

     Agressão de seguranças sobre cidadãos em supermercados, ou em shoppings. Abordagens violentas de pedestres por PMs em locais mais abastados. Jovens pobres expulsos da praia badalada e postos à força em ônibus com destino a favelas - ou ignorado. E muitos outros fatos, divulgados pela mídia de massa.
     Para o doutor em sociologia Luiz Antônio Machado da Silva, a violência a envolver as populações periféricas mal favorecidas e PMs está longe de ser algo recente, e em especial na zona metropolitana do Rio de Janeiro, as duas partes não sabem o que é viver em paz. Nem um minuto.
     É histórica a disparidade social: a sociedade brasileira parece ter nascido para ser díspar, desigual, com relações de guerra entre dois polos classistas principais. Muros fronteiriços entre barros pobres e ricos, alguns seculares, demarcam claramente uma história de segregação social.
     Em locais comuns como praia, shopping e o centro da cidade, a PM é o muro a separar pobres dos mais abastados, para dar proteção a estes. As abordagens agressivas são para mostrar aos "meliantes" ou suspeitos de o serem, de que "está no lugar e na hora errados". E isso é histórico.
     Nas entradas/ saídas das favelas, os moradores são revistados. Na revista a PM atua diferente dos líderes criminosos locais. Enquanto estes não escolhem cor de pele, sexo ou classe social, aqueles têm preferência pelos não brancos pobres.
     Ainda que os objetivos possam ser claramente distintos, a revista de moradores pelos PMs e pelo crime organizado (tráfico ou milícia) são reflexos claros de uma prática de segregação de quem ou grupo de quem possa oferecer algum perigo à ordem estabelecida. Só que os últimos aprenderam com os primeiros.

-> Pobres e PMs: pontos em comum

     Encontrar pontos em comum entre as mortes de PMs e de moradores de comunidades pobres é um assunto de debate entre especialistas em segurança pública e cientistas sociais. O assunto é complexo, talvez pelos paradoxos representados por alguns desses pontos. De forma sucinta, eis:
     Vítimas da violência- PMs na rua estão na linha de frente na guerra urbana, junto à geral civil. O povo trabalhador está entre o crime organizado e a PM que mata; e os PMs, entre o crime organizado e o pregar da violência contra o inimigo pelos seus superiores, em nome de um sistema muito maior. 
     Pressão psicológica- se liga às pressões da guerra urbana e dos quartéis, e da cobrança da sociedade e seus superiores por sucesso pleno em suas ações. Afloram daí sentimentos de raiva, ódio, frustração ou impotência em caso de insucesso.
     Uma cobrança muito popular criada pela elite é "cancelar CPFs". Na linguagem policial é "bater meta", ou seja, matar os "imprestáveis", na política de higiene social direta. Contando com a ajudinha da C19, eficiente instrumento de morte de Bolsonaro.
     Os efeitos clínicos são devastadores, com diagnósticos de transtorno mental e comportamental (TMC). Alguns desenvolvem de agressividade a psicose, depressão grave e cometem suicídio Tal como a geral pobre, raramente conseguem tratamento profissional adequado e são estigmatizados.
     A pressão psicológica na geral tornou o Brasil o país mais ansioso, e o oitavo mais depressivo e suicida no planetaAlém da maior guerra urbana, há fatores como aumento do custo de vida e diminuição da renda, risco de nunca se aposentar, perda de direitos, vulnerabilidade à C191, etc.
     Patamar socioeconômico- em geral, PMs soldados e cabos moram em subúrbios ou favelas, pois suas rendas são baixas, mesmo em média ligeiramente superior à da geral. Nas favelas, estão entre os alvos de perseguições de traficantes ou milicianos, em especial se denunciá-los.
     Marionetes ideológicas- Por serem da massa popular, os PMs da linha de frente são grandes enganados ideológicos. A elite política se alinha à elite econômica, que controla nos bastidores as políticas públicas.
     Como já previa Machado da Silva em 2010, a ideologia da segurança pública violenta sustentada pelas elites condicionam os eleitores a escolher candidatos a ela alinhados. A eleição de Bolsonaro foi alçada por discursos messiânicos de pastores influentes de grandes 'igrejas' evangélicas caça-níqueis.
     A dominação das PMs se reforçou na ditadura militar, na promessa de modernização que na prática as desqualificou: soldados se transformaram em cães de guerra a ver no povo o grande inimigo, o que os mais jovens entendem ser normal, já que se sacramentou como regra de formação dos policiais.
     As discussões sobre a reforma previdenciária envolvendo PMs e FFAA de patentes baixas e medianas foram acaloradas, pois a ideia era manter privilégios dos de altas patentes. Apesar do recuo midiático do presidente, não se sabe se os soldados, cabos e sargentos serão de fato poupados da reforma.
     Hiperexploração- Tanto os soldados quanto o povo pobre são hiperexplorados em seus respectivos trabalhos. Mesmo sendo ligeiramente maiores do que os salários civis, os soldos aliviam na garantia de mais um mês de sustento. Mas não descansam os corpos cansados da guerra cotidiana. Tal como entre o povo pobre. 

-> Pobres e PMs: pontos díspares

     Há muitos pontos a unir PMs e civis, mas também há os que os distanciam. Enquanto civis atuam em muitas profissões, os policiais são treinados a alcançar metas singulares. Eis os pontos díspares:
     Sobrevivência- circula na web vídeo de PM em defesa da ideologia de honra da PMERJ após o crime em Mesquita. A narração in off legendada fala da sobrevivência dos PMs na guerra urbana. De fato, ser PM no Rio é atuar entre 50% de chance de morrer ou de sobreviver nas operações.
     Mas o civil também luta para sobreviver, desarmado, entre o crime organizado na sua comunidade e a violência policial. Se morre, sua família fica ainda mais vulnerável. Afinal, são duas frentes a vê-lo como o inimigo potencial até prova em contrário - que pode vir tarde demais.
     Direção emocional- a escolha profissional induz a várias formas de controle emocional. Treinados para reprimir e combater em situações de guerra urbana, os PMs precisam desenvolver sangue-frio, e para tanto, a metodologia se baseia na indução à ira direcionada (na prática, para inocentes também).
     Humanamente, cada policial tem personalidade e emotividade próprias. Talvez muitos casos de TMC tenham origem em descargas emotivas "inadequadas" às violentas atribuições do cargo. Vale lembrar que os atuais métodos de treino são da ditadura militar, então...
     PMs e criminosos dominadores das favelas compartilham a agressividade como emoção principal. Já entre trabalhadores civis pobres, o medo domina.  Nos primeiros é herança direta da política de violência da ditadura militar, e entre os dois últimos, indireta.
     Diversidade social- PMs e civis encaram diferente a diversidade. Por exemplo, o racismo na geral ou é religioso ou sócio estrutural, e o da PM é institucional, o que explicaria o paradoxo de soldados negros agredindo pobres negros. Mas, são apenas diferentes expressões do mesmo preconceito.
     Privilégios classistas- a despeito da descrença de parte da sociedade devida à vida criminosa de alguns militares, a PM ainda goza de privilégios, ausentes nos civis, que vão além das especificações salariais e melhor previdência: está no significado de defesa à honra e patriotismo, ideologizados pelos políticos de direita.

-> Mas... (reflexões finais)

     Privilégios à parte, os PMs de patentes mais baixas e medianas têm a mesma origem da patuleia de classes populares suburbanas e faveladas que movimenta a vida econômica: são do povo. Antes de entrar na academia policial, a maioria cresceu com os mesmos medos que seus vizinhos de infância. 
     Viveram o medo de morrer, pois  viram a morte em suas casas: familiares e amigos pelas balas, de criminosos ou de antigos militares. Antes de vestir sua primeira farda, a bagagem que carregavam foi sumariamente destroçada pela realidade paralela e igualmente violenta dos quartéis.
     O respeito especial da parte da sociedade acaba quando os policiais se afastam definitivamente, ou só por um tempo, após diagnóstico de TMC, ou se direcionam para a vida de milicianos ou narcomilicianos. Quem não mora em comunidade pode acreditar que seus moradores "gostam de bandidos". Mentira, ou preconceito: o que eles têm é puramente medo.
     E vale ressaltar que o medo também invade forte os policiais, que igualmente temem mais pelas suas famílias em caso de sua morte. Afinal, há neles humanidade, ainda que destroçada pelas pressões de sua qualificação ideologicamente distorcida.
     Isso mostra como o mau direcionamento ideológico nas corporações militares distorce os valores de humanidade, transmitindo o caos, a anomia social que reflete a presente nas instituições corroídas. E o que tanto une civis populares e policiais da linha de frente é um objetivo: a luta pelo sonho da vida plena de paz e bem-estar. 
     
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Notas da autoria:
1. Não basta a displicência popular, há o governo sem planos de vacinação em massa, no objetivo de sua política de morte.
2. 
3. 

Crédito das imagens: Google.

Para saber mais:

Artigos acadêmicos para baixar:
- https://www.scielo.br/pdf/ccrh/v23n59/06.pdf 
- https://nev.prp.usp.br/wp-content/uploads/2015/05/down1471.pdf 
- http://www.unieuro.edu.br/sitenovo/revistas/revista_hegemonia_22/Jos%C3%A9%20Gilbert%20Arruda%20Martins%20(6).pdf
Reportagens
- https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/e-possivel-uma-policia-que-promova-a-paz-sem-ser-agente-da-violencia/
- https://revistacult.uol.com.br/home/violencia-policial-no-brasil-heranca-da-ditadura-ou-escolha-da-democracia/
- http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932015000300824
- https://exame.com/brasil/pms-sofrem-com-suicidios-e-transtornos-mentais-sem-apoio-da-corporacao/
- http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2014/09/brasil-e-o-8-pais-com-mais-suicidios-no-mundo-aponta-relatorio-da-oms.html
- https://odia.ig.com.br/_conteudo/noticia/rio-de-janeiro/2014-07-27/pms-envolvidos-em-mortes-no-sumare-queriam-executar-mais-jovens-infratores.html




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