sábado, 9 de janeiro de 2021

200 mil mortos: até quando banalizar a vida? 


     Nessa primeira semana útil de 2021, a sindemia1 de C19 no Brasil atingiu a faixa de 200.000 mortos. Sim, 200 mil, após recorde de mais de 1800 mortos em 24 horas, entre quarta e quinta feiras. São números oficiais do Ministério da Saúde, divulgados pelo consórcio de imprensa.
     Mas, segundo estimativas de um modelo estatístico da Fiocruz, que considera as subnotificações, essa marca pode ser bem maior, na faixa de 260 a 280 mil vítimas. Ou, quem sabe, até mais. Em menos de 1 ano, a C19 encolheu 1% da população brasileira.
     Não bastando a C19, as mais de 82 mil vítimas fatais de homicídio (incluindo autoria policial) e trânsito em 2019, atingindo em cheio as camadas mais desfavorecidas do poder público e econômico, que são significativas na população em geral.
     Enquanto isso, o governo não se manifesta conforme o esperado. Assim como ainda não definiu novo plano de vacinação após aquele que nenhum cientista viu e que deu chabu, ainda defende armar a população e descriminalizar o excludente de ilicitude. Por que ele nada soluciona?

-> Por que o governo banaliza a morte: reflexões

     Cientistas do Butantã afirmaram a eficácia de 100% da Coronavac contra adoecimento moderado e grave e 78% em leves, dissolvendo fake news sobre os efeitos desta vacina. Todavia, o MS preferiu a Pfizer, conforme discurso de Pazuello e carta de recomendação do fármaco de Bolsonaro à Índia.
     Chinesa, a Coronavac é a segunda vacina com dados de testes fase 3 concluídos em brasileiros, após a Pfizer, que já apresentou os seus. Ambos os laboratórios solicitaram o uso emergencial das vacinas no país. Com dados ainda em análise, Janssen e AstraZeneca/Fiocruz ainda não se pronunciaram.
     Enquanto os laboratórios já se adiantam, o governo brasileiro segue na moleza e já irrita os sensatos, sem plano definido de vacinação analisado por pesquisadores. Nada. Algumas prefeituras se ajustam conforme o plano de prioridade: profissionais de saúde, idosos, comorbidades e a população geral.
     No tema da guerra urbana, este blog já abordou sobre a morte como constante na era Bolsonaro, seja na violência legitimada na ação das PMs, pela criminalizada participação de criminosos comuns, seja pelo descaso completo com a saúde pública "em nome da economia". E segue o baile.
     Ao que tudo indica, a morte é algo que acompanha o currículo do presidente. "Sou especialista em matar", dissera ele em uma ocasião na Câmara federal, na mesma época em que fez defesa explícita às milícias. Apesar de, até prova em contrário, nunca ter sujado as mãos diretamente.
     De família de classe média baixa e assimilado os valores da sua formação militar, Bolsonaro teria, na tradição moralista, uma ética mais humanista. Só que não, pelo menos segundo o laudo psiquiátrico do EB2 para motivar a sua expulsão transformada em reforma, pela qual teve patente de capitão.
     Devido à ambição exagerada de se enriquecer, a política foi o caminho mais cômodo, onde mostrou a sua boa expertise em conquistar votos junto ás parcelas mais reacionárias da sociedade e se expor como é pessoalmente. Não é por mero acaso que se sente tão à vontade na política.

-> Reflexões finais

     Nomes como o jornalista Leonardo Sakamoto e José Fernandes, do canal do Youtube Portal do José, afirmam ser Bolsonaro reflexo direto de nossos defeitos de valores culturais. É válida por ser correta, mas por si só não completa a definição da personalidade do presidente, nem se entende suas políticas.
     É triste, mas vale refletir sobre a personalidade do presidente, pela psicologia ou psiquiatria. A personalidade é a soma do inato (índole, têmpera) com adquirido sociocultural (caráter). O primeiro é estável, o segundo é mutável. São inatas de Bolsonaro agressividade, ambição e desejo de controlar o outro pela ética militar retratada na repressão (valor cultural).
     O negacionismo de Bolsonaro reflete a têmpera desafiadora, dirigida contra a ciência, a profilaxia de vida, as regras de boa convivência, ao defender o indefensável, como as milícias nos morros e o ato do excludente de ilicitude3, evento potencialmente fatal de ação policial, e minimiza a gravidade da C19 comemorando cada milhar de novos enterros e negando a vindoura vacina.
     O desafio se estende ao negar a entender o aborto como um problema de saúde pública. Bolsonaro diz se preocupar com a vida intrauterina, mas despreza as milhares de vidas infantis abandonadas, sem família, sem escola, sem assistência, doentes, roubando para sobreviver - a estas últimas enseja morte.
     Bolsonaro é um egoísta inato, e mostra suas atividades políticas não só como o desafio à sensatez, como claramente reflexos de si mesmo: "quem manda sou eu". Em seu nome o vírus contagia todos os lugares passíveis de lotação, as balas mandam nos morros, a imprudência mata no asfalto.  
     O seu machismo, em parte aprendido em família e o resto no Exército, se multiplicou em desprezo à vida feminina: assim foram extintas as políticas de proteção à mulher, a mulher morre por violência doméstica que para ele é como discussão de botequim, sem importância alguma.
     Assim ele vive, e assim ele repassa a seus apoiadores, a maioria masculina e classe média não por mero acaso, acompanhada de algumas quimeras como mulheres e LGBTQs. E os apoiadores, tal como lobotomizados, reproduzem a visão distorcida de seu "mito". E assim a relativização da violência e a banalização da vida e da morte seguem o triste baile desse Brasil.
     Vamos continuar a moda de banalizar a vida depois de mais de 200 mil mortos? Quem viver, verá.

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Crédito das imagens: Google

Notas da autoria
1. Termo criado pelo antropólogo e medico Merrill Singer para definir a interação mútua e sinérgica de 2 ou mais problemas de saúde gerando danos maiores que sua soma de complicações, em determinado contexto social.
2. EB = Exército Brasileiro.
3. Proposto por Sergio Moro, se refere à atitude eventual: o policial desacorda ou mata a pessoa "sob forte emoção". 

Para saber mais
https://dasa.com.br/blog-coronavirus/sindemia-covid-19
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Sindemia
- https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/download/901/1262/1322 (leitura acadêmica em pdf)
- https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2020/05/e-dai-o-esgar-genocida-e-dai-lamento.html
- https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2020/11/violencia-instituida-sim-cidadania-zero.html
- https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2020/10/ustra-bolsonaro-mourao-e-barbarie-de.html
- https://www.dw.com/pt-br/o-brasil-vive-a-banaliza%C3%A7%C3%A3o-da-morte/a-54663838
- https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/07/22/mortes-por-covid-19-no-brasil-na-pandemia-superam-soma-de-vitimas-de-homicidios-e-de-acidentes-de-transito-em-2019.ghtml
- https://g1.globo.com/bemestar/vacina/noticia/2020/12/16/anvisa-diz-que-pfizer-enviou-dados-de-testes-de-fase-3-de-vacina-contra-a-covid-19.ghtml

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