Ford, BB e o inferno Brasil
Tudo indica que o Brasil iniciou 2021 ruim das pernas. A montadora Ford decidiu fechar as suas fábricas no país, a princípio até o fim do ano, limitando-se à venda automóveis. Em seguida, o governo anunciou nova etapa do desmonte do Banco do Brasil (BB), encerrando 361 agências.
Os mais impactados, lógico, são trabalhadores. Pois isso implica jogar na sarjeta o total de 10 mil funcionários de várias esferas de produção, alguns com décadas de experiência e aperfeiçoamento.
Nas redes sociais, que repassaram a notícia, reinaram a estupefação com o sentimento de horror, entre a quase totalidade dos internautas, que nem imaginava um fato que na real não tem nada de surpreendente.
Mas tais reações e sentimentos são naturais, e não deixam de ter sua razão. Afinal, é a primeira vez, desde a sua primeira fábrica, que a empresa estadunidense anuncia o fechar das portas de seu setor produtivo.
-> BB: vida e riscos de um patrimônio histórico
Primeira instituição financeira no Brasil, o Banco do Brasil evoluiu em quatro versões: a primeira (1808) com D. João VI; a segunda (1851) com Barão de Mauá1; a terceira (1853), pelo Visconde de Itaboraí2; e o retorno ao original em 1906. Sua sede inaugural foi na então capital Rio de Janeiro.
Surgiu para incentivos à indústria local, isenção de impostos sobre matéria-prima, exportação de industrializados; foi banco central emissor3 de títulos e de papel-moeda, até as várias funções atuais. Já foi o único remunerador de funcionários públicos, e hoje compartilha função social com a poupança.
Hoje é uma entidade de economia mista, com 50% de capital público e 50% privado, com amplo destaque em ativos financeiros, depósitos totais, carteira de crédito, volume de clientela, câmbio de exportação, administração de recursos de terceiros e faturamento no cartão de crédito.
Com o governo, o BB sofre sérios riscos. Ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes tem como uma das metas prioritárias a privatização da metade pública do BB, desconsiderando o seu valor histórico e a sua contribuição para a competitividade do Estado brasileiro na economia.
Segundo o governo, com o fechamento das 361 agências e a demissão em massa, há a planificação de demissão voluntária (PDV), uma vez que a contratação dos funcionários é via concurso público.
-> Ford do Brasil: vida e ocaso
O estadunidense Henry Ford foi um desbravador: expandiu sua indústria automotiva fora dos EUA. Sua primeira filial foi na Argentina (1914) e a segunda foi aqui, em São Paulo, em 1919, num galpão antigo. Dali saíram os primeiros produtos brasileiros, o modelo T de passeio e o TT de caminhão.
Fordlândia: breve história de um fracasso
Nos anos 1920, o governo do Pará queria doar terras a plantadores de seringueiras, e H. Ford quis investir. Ciente disso, o cafeicultor Jorge Dumond Villares obteve 7 áreas. Mas vendeu 1 milhão de ha de área privada e solo ruim de plantação a Ford, obtendo U$ 125mil com o golpe.
Ainda assim, vieram a vila Fordlândia e a plantação. Uma embarcação servia de hospital; e embora morassem em casas modestas de madeira, os operários, qualificados ou não, ganhavam acima da média brasileira. Mas logo veio o preju: o ritmo da plantação era muito baixo e o "mal-das-folhas" arruinava a produção. E, em 1932, Ford contratou o especialista James Weir.
Weir recomendou a mudança da vila para a região de Belterra, mas o ritmo da plantação continuou baixo. Na II Guerra Mundial surgiu a borracha sintética, que minou o interesse pelo látex, bem como a indústria mudou e veio a terceirização. Resultado final: hoje, Fordlândia é uma cidade-fantasma.
Nos centros industriais, produção e ocaso
Em 1967 a empresa no Brasil lançou o Ford Galaxie, a primeira linha de automóveis seguindo o padrão dos EUA. Com o controle acionário da Willys Overland do Brasil, passou a produzir as linhas mais conhecidas, como Corcel, Belina, Perua, Escort, etc.
Apesar do anúncio supracitado, a possibilidade de fim da produção da Ford no país já era esperada. Em 2018 se limitou a fabricar SUVs e caminhonetes. Em 2019 encerra atividade em São Bernardo do Campo, e, neste ano, pelo Brasil, alegando "baixa de vendas e capacidade ociosa da indústria".
Aponta-se também a C19 descontrolada como causa da redução das vendas. Embora a previsão de início seja temporária, a empresa já está no plano de indenizações aos empregados demitidos, o que gera a incerteza sobre o retorno da atividade industrial da Ford no país.
-> O governo e a Ford
Diante dos impactos da notícia,
o presidente Jair Bolsonaro acusa a Ford do Brasil de “querer subsídios em vez
de investir mais na indústria”. Uma mentira deslavada. Toda empresa recebe a sua cota de subsídios estatais como medidas de incentivo à produção no território nacional.
Essa cota não é ilegal, desde que não prejudique os serviços públicos essenciais. Limite que sempre foi desrespeitado por empresas (Ford é um exemplo) e políticos. O acinte leva a geral a encarar os subsídios negativamente. É aí que Bolsonaro explora o tema com mentiras a seu favor e bel prazer.
A maioria não sabe, mas eles existem desde a era JK, em países desenvolvidos e nos periféricos como o nosso. O método varia. No Brasil as empresas preferem a cota em grana pública, considerada menos burocrática, mas algumas acatam a isenção de encargos por tempo determinado em contratos,
Essa isenção pode ser mais burocrática, mas não ameaça tanto os serviços públicos essenciais. Em 1999, a própria Ford deu piti contra uma proposta mista do governador Olívio Dutra (RS), que não prejudicava os serviços públicos, e foi para Camaçari, na Bahia.
A grande mídia diz que subsídio é interferência estatal na economia. Pelo contrário, é empresarial sobre o Estado. E nisso os bancos, para quem Guedes trabalha, são exemplos claros: por eles o ministro corta recursos dos serviços públicos convertendo-os em dívida pública para as entidades.
-> Reflexões: o inferno Brasil
O encerrar da produção da Ford do Brasil e de 361 agências do BB trará um impacto bem imediato à população: mais de 10mil novos desempregados de uma só vez, o que causa demanda posterior sobre o próprio Estado.
No final de 2015, o desemprego era menos de 10%. No fim de 2016 eram 12%. Em 2019, 13,5%, e 2020 fechou com 14,3%. E mais de 10 mil, pela mídia. Em 2020 mais de 2 milhões foram ferrados em razão da falência das micro e pequenas empresas, que empregam mais de 70% da geral4.
O artigo não deprecia o impacto inerente à Ford e ao BB, só salienta que não houve alarde na mídia e no governo sobre os milhões de desempregados no ano passado. O alarde só veio com o fechamento da Ford, até mais do que o BB e várias sedes da Petrobrás, que no conjunto demitiu mais de 10 mil.
Além disso, vale salientar que o desemprego antes de Bolsonaro não foi resolvido com a reforma trabalhista, que alterou a CLT na alegação de desonerar as empresas com pessoal. Se funcionasse de fato, não teria havido a crescente disparidade de mais demissões e menos contratados. A ociosidade alegada pela Ford se explica aí.
Outra consequência é a desindustrialização, que embora já ocorresse há uns 30 anos, atingiu uma velocidade inaudita na era Bolsonaro. E se uma indústria fecha, vem efeito cascata devido à relação entre elas: uma montadora depende da miríade de fábricas que fornecem todo tipo de material a ser usado na montagem. E o desemprego acompanha.
O problema: Paulo Guedes. Sua atuação e o passar de pano pela grande mídia são insustentáveis. Desmontar o Estado não funciona, este precisa existir para solidificar a economia interna. EUA e UE são exemplos claros de Estados fortes.
O Brasil tem jeito, bastando tributar as grandes fortunas e cortando parte dos excessivos auxílios da classe política, que a tornam a mais cara do globo, para se recuperar e investir no retorno do mercado privado, sem precisar privatizar uma vírgula. É um Estado forte que gera crédito, e não um inferno privatizado.
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Imagem: Google
Notas da autoria
1. Título de nobreza de Irineu Evangelista de Souza.
2. Título de nobreza de Joaquim José Rodrigues Torres.
3. Foi o quarto emissor do mundo, atrás dos Bancos da Suécia, da Inglaterra e da França.
4. Números oficiais do IBGE, que só considera desempregado o trabalhador desocupado.
Para saber mais
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Banco_do_Brasil
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Ford_do_Brasil
- https://congressoemfoco.uol.com.br/economia/banco-do-brasil-pdv-fechamento/
- https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/fim-de-uma-era-presente-no-brasil-desde-1919-ford-encerra-producao-de-veiculos.phtml
- https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/fim-de-uma-era-presente-no-brasil-desde-1919-ford-encerra-producao-de-veiculos.phtml
- https://exame.com/negocios/oito-marcas-de-carros-que-decidiram-abandonar-o-brasil/
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