#Curiosidade: o paranoide
Nos deparamos com pessoas com desconfianças temerosas tão intensas que mais parecem sofredores loucos. Estas pessoas são sujeitas deste artigo da categoria #Curiosidades, subcategoria Transtornos de Personalidade.
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Fran entrou na estação de metrô. Paga a passagem, foi para a plataforma de espera, onde alguns passageiros já aguardavam a sua hora. Atentou-se às conversas de um grupo próximo, olhando-o de esguelha, querendo entender, muito desconfiada, as suas falas.
No seu pensar, alguém a seguiu, encontrou o grupo e falava dela em meio a risos. Se atentava no outro que olhava o celular, acreditando que lia algo a seu respeito. Um sentimento sofrido a dominava contra aqueles que, na verdade, nunca a viram na vida e nem reparavam na sua presença.
Ninguém sabe, mas Fran sofre muito. De transtorno de personalidade paranoide (TPP).
-> Características, prevalência, comorbidade, diagnóstico, tratamento
O Transtorno de Personalidade Paranoide (TPP) tem como principal característica um padrão de desconfiança e suspeita injustificadas e sem controle em relação aos outros, alegando motivações maliciosas (paranoia). Pode ser um dos mais graves TPs1, mesmo em quem tem alta aptidão funcional.
A pessoa TPP tem afetos, impulsos e ideações intoleráveis e constantes, com dissociação ao outro que desperta desconfiança, temor e indignação. Não perdoa ao acreditar que foi ofendido. Acredita-se alvo de um possível ataque. Na hostilidade projetada, surge a ideação de perseguição pelo outro.
A paranoia também pode se expressar como de dependência humilhante, de intenções sexuais, ou de ciúmes.
No trabalho, tem alto poder funcional, mas a desconfiança excessiva gera relações conflitantes com sua equipe. É hiperalerta a supostas trapaças, ofensas, ameaças e explorações, e pode interpretar oferta de ajuda como julgamento de incapacidade de resolução. Dai achar necessário controlar tudo.
Nas relações afetivas é hesitante por duvidar da lealdade de amigos e da fidelidade e amor do par. pode ser extremamente ciumento e questionar em detalhes o que o par fez ou falou. Resposta negativa pode soar como suspeita confirmada pelo sujeito TPP.
Prevalência: até 4,4% na população geral, e se acredita ser mais comum entre homens (EUA). No Brasil não há dados atualizados, mas se estima em até 6,2% na população geral (o quadro brasileiro entrará na reflexão final).
Comorbidade: a mais comum é com transtornos de pensamento (esquizofrenia), ansiedade (fobia social), abuso de drogas psicoativas e, mais raramente, transtorno de personalidade (limítrofe). É raro um diagnóstico isolado.
Etiologia: há sugestão de história familiar; trauma relativo a abusos sofridos na infância.
Diagnóstico: critério específico DSM-V; sinal-chave: desconfiança e suspeita persistentes. Outros: suspeita injustificada das ações dos outros; preocupação com dúvidas sobre a confiabilidade do outro; desconfiança e ciúme excessivo com o parceiro; intepretação errônea de boas atitudes; rancor e raiva.
Diferencial: esquizoide (este tem desinteresse); esquizotípico (ideias e falas excêntricas); limítrofe (dependência); narcisista (grandiosidade); antissocial (exploração); esquiva (medo da rejeição).
Tratamento: terapia cognitivo-comportamental (ideal a todos os transtornos de personalidade). Em virtude da desconfiança excessiva do paciente, o TPP é um dos maiores (se não o maior) desafios para algum sucesso, devido à posição refratária do transtornado. Em critério médico, a medicação se destina a comórbidos específicos graves.
-> Reflexões finais
Embora sejamos naturalmente relacionais, por fatores biológicos e socioculturais, temos suspeitas e desconfianças, compreendidas como reações defensivas naturais, potencializadas pelas medidas éticas. Afinal, cada cabeça é uma sentença, uma persona. E atitudes e sentimentos negativos são realidades, mesmo tão discutidas na sua etiologia.
Daí não podermos julgar o sujeito paranoide. Ele não tem autocontrole psíquico e discernimento sobre os atos e falas alheios, lhe auferindo uma construção distorcida do outro. Embora não pareça, essa pessoa sofre bastante com a sua condição, pois essa distorção o torna refratário ao tratamento.
A negação é certamente o fator central da ineficácia dos tratamentos com o transtorno, mas há certa taxa de sucesso entre os que se admitem "paranoicos" e aderem à disciplina. A luta mais difícil pelo paciente é este aprender e conseguir controlar ideação, impulsos e sentimentos. Mas, é possível.
Reflexão Brasil sobre estatística do TPP
A reflexão sobre as estimativas epidemiológicas do TPP no Brasil é bastante interessante, visto que há debates sobre desinvestimento em saúde mental nos últimos anos, considerando-se aspectos que têm impactos na vida geral.
Já o da grande São Paulo sugere outras variáveis (pressões psicológicas) para os transtornos, e o paranoide aparece como destaque em situações de estresses urbanos, como violências, desemprego e crescente miserabilização. E essa mesma pesquisa que traz reflexão sobre as variáveis abaixo:
Fatores socioculturais- a cultura de repressão, violência, elitismo, racismo e desigualdades em geral se manifesta hoje no comportamento social. Quanto mais agudo o desprivilégio, mais graves os flagelos citados. Uma porta aberta para os transtornos.
Fatores sociopolíticos- a polaridade político-ideológica vigente reflete como reagimos às ideias do outro, bem como aos impactos das políticas públicas vigentes. A pesquisa da grande São Paulo sugere que a prevalência de TPP ocorre nas camadas mais desprivilegiadas e impactadas por tais políticas.
Infelizmente o momento atual é marcado por uma sucessão de políticas a contribuir para um surto epidemiológico de transtornos psíquicos motivados pela pressão do empobrecimento somado à perda de direitos sociais conquistados a duras lutas de décadas.
Afeto- é uma variável importante. A pesquisa paulista também sugere maior prevalência de TPP e outros entre populações masculinas adultas que enfrentam desajuste afetivo (matrimonial ou familiar), com pico entre os desajustados mais pobres e/ou desempregados.
Populações- a estimativa em até 6,2% de TPP em população geral foi sugerida por Schmidt e Méa (2013); estudo na grande São Paulo (2018) revela uma prevalência média geral obtida após estudos em estratos étnicos e econômicos, chegando à média geral local de 5,4%.
Criminalidade- estudo realizado em Tubarão (SC, 2018) sugere que entre 2 populações carcerárias, uma masculina e outra feminina, sugere prevalências de TPP que podem chegar a 44 e 42%, em respectivo. Destarte, estudo sugere haver uma relação entre TPP e propensão à criminalidade.
Todavia, conforme o DSM-V, a grande maioria de sujeitos TPP é comórbida com transtornos graves tais como a esquizofrenia, o TPAntissocial e o TPLimítrofe, que por sua vez, em surto, compromete penalmente o paciente em internação compulsória por insanidade, por ser inimputável (ou semi-).
A vítima de violência também é propensa a desenvolver transtornos em geral, desde "neuroses" até síndrome de pânico, de ansiedade, evitativo, depressão, paranoide, TOC ou esquizofrenia, com risco maior se houver histórico familiar nuclear ou de primeiro até segundo grau.
Parágrafo final: a exemplo de qualquer transtorno psíquico, todos nós podemos ser vítimas do TPP. Podemos ficar paranoides. O momento é propício. Portanto, o certo é oportunizar a consciência cidadã em reconhecer nossas fragilidades, para não nos cedermos a elas.
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Imagem: Google
Notas da autoria
1. TP = sigla de transtorno de personalidade (em plural no texto).
Para saber mais
- https://www.msdmanuals.com/pt-br/profissional/transtornos-psiqui%C3%A1tricos/transtornos-de-personalidade/transtorno-de-personalidade-paranoide-tpp
- https://www.psicronos.pt/artigos/personalidade-paranoide_48.html
- https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/5155024.pdf
- https://doi.org/10.1371/journal.pone.0195581
- https://riuni.unisul.br/handle/12345/5113
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