Reflexão: escravismo e capital
O caráter definitivo e universalista dessa citada Lei dá sentido a essa alegria infantil, após sabermos dos paliativos de antes: a proibição do tráfico em 1850, a Lei do Ventre Livre de 1871, a Lei do Sexagenário de 1885.
O que muitos talvez não tenham assimilado são outros detalhes, que mostram uma falha social que entra na história, a partir da própria Lei Áurea. Eles serão expostos sem muitos detalhes, e analisados de forma reflexiva.
-> A Lei Áurea e as consequências sociais mais imediatas
Como aprendido nas aulas de História, a Lei Áurea foi elaborada e assinada meio "às pressas", diante do crescimento de pró-abolição e republicanos na classe intelectual, com apoio de parte da imprensa. Bem, demais detalhes já sabemos, como os personagens e outras circunstâncias.
Vale ressaltar que essa Lei veio um tanto tardiamente em relação a outros países americanos de viés escravocrata e já eram repúblicas, exceto o México. Até o Haiti libertou seus escravos antes do Brasil, através de uma atuação revolucionária no pequeno território.
De tão objetiva e direta, a Lei foi um tanto sucinta, com apenas dois artigos. Talvez tenha sido a pressão dos movimentos, ou por ter precípuo da legislação de então. Mas isso não vem ao caso, o fato é que deixou lacunas... sobre o futuro dos libertos.
Os destinos dos libertos
Passada a ressaca das comemorações pós-assinatura da Lei Áurea, os libertos foram imediatamente substituídos pelos imigrantes europeus que, além de aprenderem a trabalhar na produção de café, trouxeram características culturais até então desconhecida dos brasileiros.
Nas grandes fazendas de café, alguns deles foram reabsorvidos como trabalhadores assalariados junto aos imigrantes na produção e em serviços domésticos; ou fundaram novos quilombos, alguns referências vivas de cultura ancestral autossustentada. Bem ou mal, se arranjaram.
Nas cidades, exceto uma minoria reabsorvida assalariada, a maioria ficou à deriva, sem perspectiva de sobreviver dignamente. Em terras ao redor fundaram cortiços, as futuras favelas, como abrigo e para se proteger das investidas policiais.
Isso não saiu barato.
Reação
Se a abolição causou euforia do "surgimento do novo Brasil", por outro lado a situação dos libertos nas cidades causou reações, devido ao mau cheiro com sujeira e algumas abordagens por dinheiro ou comida. Tais reações foram estampadas em editorial do Diário do Maranhão:
"Centenas de indivíduos sem ofício, que terão horror ao trabalho, entregando-se por isso a toda sorte de vícios, precisam ficar sob um rigoroso regime policial para assim poderem ser mais tarde aproveitados, criando-se colônias, para as quais vigore uma lei, como a que fora adotada na França, recolhendo a estabelecimento especiais os vagabundos, sujeitando-os à aprendizagem de algum ofício, ou da agronomia, para que mais tarde o país utilize bons e úteis cidadãos [...]".
A citação acima pode parecer absurda, mas mostra a mentalidade de stablishment hierárquico de classes, caracterizado pela repressão policial que segregava os libertos, trabalhadores e sem trabalho, nas comunidades por eles construídas, as futuras favelas, em nome do bem-estar dos mais abastados.
-> A mentalidade que ficou: reflexões finais
A despeito da progressiva modernização das cidades, a realidade dos ex-escravos não mudou nada, praticamente, vindo um pouco melhor para os descendentes, muitos dos quais absorvidos em novos ofícios, em geral subalternos e mal pagos.
Tal como nos tempos escravistas, as relações hierárquicas de trabalho não se modificaram muito. Só a substituição do chicote e outros instrumentos de tortura por assédios diversos. Se antes o problema basicamente era ser afro, hoje é ser pobre e subalterno, pois até brancos e pardos pobres sofrem com os abusos patronais.
A favela foi muito mais do que o local de assentamento de ex-escravos e descendentes, virou um curral de segregação imposto pela repressão policial. As repressões às festas regadas a samba de antes se tornaram operações violentas com garantia de morte, sem distinguir criança, jovem, adulto, com ou sem emprego.
Spoiler: as repressões do passado eram amparadas por leis coercitivas e tribunais correcionais para os "vadios" (festeiros, trabalhadores ou não). Hoje essa lei se transformou em "abordagem policial de segurança", baseada na violência com garantia de morte.
Na questão trabalhista, a reforma da CLT pelo governo Michel Temer em 2017 implicou na volta à precariedade das relações de produção, com importante subtração de direitos trabalhistas e brechas a dificultar provas de abusos cometidos pelos empregadores, evitando processos judiciais.
A reforma ficou conhecida popularmente como o fim do protecionismo da CLT em muitos artigos. Outros tantos artigos protegiam os empregadores, para não prejudicar o capital, daí ter durado 70 anos. Mas os empresários em sua ambição nunca se satisfizeram.
Eles viam a CLT como onerosa e com "direitos demais" aos trabalhadores, e viram na bancada do boi o coro para atenuar o conceito de trabalho escravo1. Alguns juristas viram na reforma CLT grande margem de insegurança jurídica aos aos trabalhadores e possível aumento de irregularidades patronais.
Sem a antiga segurança da CLT e com a afrouxada fiscalização de trabalho irregular, vemos a volta do antigo sistema, em nome do capital, que travestido de sapatênis e ideias arrojadas recrudesce, via uberização e correlatos com sobras de assédios, o escravismo.
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Imagem: Google
Notas da autoria
1. A atenuação foi proposta em portaria, por sua vez revogada pelo STF através da ministra Rosa Weber.
Para saber mais:
- https://pilulas-diarias.blogspot.com/2021/03/abolicao-para-jornais-ex-escravos-eram.html
- https://pilulas-diarias.blogspot.com/2021/03/130-anos-depois-da-abolicao-mentalidade.html
- https://blog.sajadv.com.br/reforma-trabalhista-acordo-coletivo/
- https://www.conjur.com.br/2017-out-24/portaria-mudou-definicao-trabalho-escravo-suspensa-stf
Muito bom!
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