Reflexão: um dia de muita luta
Já é sobejamente conhecido por nós de que o dia 8/3 é o Dia Internacional da Mulher. O que muitos não sabem, certamente, é de sua historicidade. Ele surgiu de uma reunião comemorativa no estadunidense Partido Socialista da América, de orientação social democrata, no início do século XX, por igualdade e luta pelo voto feminino.
Sim, partido Socialista da América, nos EUA. Que existe até hoje, ao contrário do que pensam os críticos do pluripartidarismo brasileiro. Ele é apenas um entre as dezenas de partidos que se adensam em dois grandes blocos famosos, o Republicano, de tendência mais conservadora, e o Democrata, mais progressista por sua vez, conforme autodeclarados.
Nesse sentido, o pluripartidarismo estadunidense se distingue do brasileiro por não existir, na legislação partidária brasileira, esse adensamento que ocorre nos EUA. O citado partido devia se destacar como independente à época.
Mas, por que essa decisão? Sigamos um pouco mais na história.
-> Primórdios
A iniciativa do citado partido estadunidense, que visou a igualdade de direitos civis, foi louvável, na influência da assimilação filtrada do ideal marxista sobre o papel feminino na vida produtiva. Marx e Engels já percebiam a hiperexploração do trabalho delas, enfatizando seu valor nas lutas de classe.
No auge da I Revolução Industrial, já havia participações femininas em protestos de trabalhadores nas fileiras da Revolução de 1848 e na Comuna de Paris (1871), entre outros manifestos menores na época. Em média, mulheres e crianças trabalhavam até 12 horas diárias, com ganhos bem inferiores aos dos homens.
A ideia de comemoração anual veio da alemã Clara Zetkin1, mas sem especificar um dia, o que viria depois, em manifestos ocorridos nos EUA em março de 1911 por conta de incêndios em fábricas nos quais quase todas as centenas de vítimas fatais eram mulheres, e outro grande na Rússia em 8/3/1917, que eclodiu mais tarde na Revolução soviética.
O manifesto feminino russo foi o chute final para a determinação do dia da mulher, estendendo as homenagens às vítimas estadunidenses dos supracitados incêndios de 1911, o que se chegou a se cogitar ser uma sabotagem, o que não foi oficialmente confirmada.
Outros eventos se seguiram, e a ONU tornou 1975 o Ano Internacional da Mulher, num resgate da data após certa queda de seu significado entre o grande público. E desde então muita coisa ocorreu de forma a promover maior visibilidade ao gênero feminino.
-> Reflexão final: nada a comemorar, muito a lutar
Que o papel social da mulher ganhou uma relevância considerável no mundo nas últimas décadas, não resta dúvida. Todavia, a sombra de numerosas violações as acompanham, muitas delas tornadas leis em alguns países.
Apesar da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW em sigla em inglês) documentada pela ONU, ainda se registram muitas violações de direitos contra meninas e mulheres no mundo inteiro. Há numerosos exemplos.
Apesar da imensa maioria de países signatários, a CEDAW é amplamente desrespeitada, em parte por conta da influência das profundas tradições que predizem sobre o papel social feminino em muitas culturas.
Em países de regime islâmico (sharia2) há papeis distintos de gênero. A elas são vetados certos esportes, sexo pré-casamento, andar sem hijab (lenço da cabeça) e/ou niqab (rosto), calça comprida, e até escolas laicas, exceto madrassas3, variando localmente. Nos laicos, o valor da sharia é relativo.
Mesmo no Ocidente e no Oriente high tech (China, Japão, Taiwan, Coreia do Sul), desigualdades de gênero são flagrantes, não importam o bom espaço no mercado de trabalho e mais estudo. Persistem os tabus das médias salariais mais baixas, assédios em geral, violência doméstica, crimes sexuais, etc.
A ascensão da extrema-direita, tornada governo em alguns países, promete reveses. Emblemático, o Brasil de Bolsonaro retrocede ao negar recursos para abrigos às vítimas de violência doméstica, com o recrudescer de crimes sexuais e feminicídios, propostas de criminalização total do aborto, etc.
A exótica diplomacia atual tem polemizado em eventos internacionais de direitos femininos no plano sexual-reprodutivo. Para se fortalecer, aproximou-se de países conservadores como Polônia, Hungria, Ucrânia, Arábia Saudita, Indonésia e outros, para a contenção de tais direitos.
Embora sem prática conhecida no Brasil, a mutilação genital feminina (MGF) é comum em mais de 30 países na África, Ásia e até da UE. Mesmo sendo crime em quase todos eles, ela ainda é praticada, com prisões eventuais. A Pleno News acusa os grupos feministas de hipocrisia com as vítimas da MGF.
Vale lembrar que nos países da sharia as lutadoras são muito reprimidas. Mas, em outros países de ocorrência, as denúncias partem de grupos feministas locais, graças aos quais a ONU publicou, em 2012, resolução internacional condenando a prática, ameaçada pela turva aproximação do Brasil dos países onde a prática é recorrente.
Portanto, não é nada fácil lutar contra os interesses dos grandes grupos transnacionais, que roubam as atenções dos governantes que terminam invisibilizando os direitos das mulheres nos países mais pobres, que mesmo não sendo vítimas da MGF, o são de outras tantas violações de nível global.
O Dia Internacional da Mulher pode ser mercadologicamente comemorado. Mas, sobretudo, é para todas as mulheres, um dia de luta. Muita luta, nada a comemorar.
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Imagem: Google
Notas da autoria
1. Líder feminista da época, ela se destacou na Internacional Socialista de 1910 em Copenhagen, Dinamarca, onde explicitou a ideia acima escrita.
2. Lei islâmica, que determina os caminhos a serem seguidos na legislação e na vida política de países de maioria islâmica.
3. Escolas de alfabetização e leitura do Corão para meninas. Em países laicos são opcionais, por haver escolas laicas.
Para saber mais
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Dia_Internacional_da_Mulher
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Partido_Socialista_da_Am%C3%A9rica#:~:text=O%20Partido%20Socialista%20da%20Am%C3%A9rica,do%20Partido%20Socialista%20Trabalhista%20da
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Inc%C3%AAndio_na_f%C3%A1brica_da_Triangle_Shirtwaist
- https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw.pdf
- https://pleno.news/opiniao/marisa-lobo/a-hipocrisia-feminista-e-a-circuncisao-feminina-na-africa.html
- https://memoria.ebc.com.br/2012/11/onu-aprova-resolucao-condenando-mutilacao-feminina
- https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-09/cruzada-ultraconservadora-do-brasil-na-onu-afeta-ate-resolucao-contra-mutilacao-genital-feminina.html
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