quarta-feira, 14 de abril de 2021

Análise: CPI da C19 despe Bolsonaro


        Essas últimas semanas seguem agitadas em Brasília, sem previsão de acalmar. Primeiro foram os incômodos causados pelas decisões monocráticas dos ministros do STF, ainda que elas sejam demonstrações legais da autonomia de um dos três poderes constitucionais do Estado. Esse tema foi abordado neste blog no artigo mais recente.
        Agora ressurge a ideia de uma nova Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), aquele famoso interrogatório em tribuna que geralmente termina em pizza. A CPI das fake news, na verdade, não terminou, ela foi interrompida por conta da necessidade de atuar online devido à sindemia de C19.
        A nova CPI em vista de se iniciar se relaciona a outro tema - que também tem sido alvos de intensas fake news massificadas pelo bolsonarismo: a condução do governo federal na sindemia de C19.
        Uma pergunta foi ressoada por cidadãos céticos: será que vale a pena ressuscitar a ideia de nova CPI após tantas na história do Legislativo federal que gastaram milhões de reais e têm terminado em pizza? Sim, pois o andamento da coisa induziu à decisão. E Bolsonaro está bastante nervoso.

Da sindemia de C19 à CPI: breve compilado histórico

        No fim de 2018, a notícia de uma nova SRAG1 na Ásia causada por um vírus "misterioso", varreu de leve o mundo. Mas, por ser muito local e sem novas notícias, passou batida sem nova atenção. 
        Em Dez/ 2019 surgiram novos casos chineses de SRAG cujo vírus misterioso é o SARS-Cov-2, o novo Coronavírus. Era a C19. Incomodou: a China manda no mundo hoje. À confirmação se seguiu a onda de informações, verídicas e falsas, em 2020, já explorada neste blog.
        A 1ª morte brasileira por C19 em março/2020 é apenas oficial: epidemiologistas apontam que este vírus já circulava em nossos esgotos, como atesta estudo em Florianópolis em 2018. Foi a partir dessa morte que surgiram os primeiros conflitos entre o presidente Bolsonaro e o ex-MS Mandetta.
        A C19 revelou as intenções do presidente: tão logo foi anunciada a pandemia pela OMS, ele fez, com crescente frequência, tudo contra as normas da OMS, como aglomerações públicas e promoção de fármacos inertes contra a C19. A pandemia virou sindemia na época da demissão de Mandetta.
        Explosão de fake news sobre profilaxia; boicote a ofertas de vacinas; negação de ajuda financeira às MPEs2; cortes repetidos no SUS; interferências no MS; desprezo aos grupos vulneráveis e aos mais de 350 mil mortos; crise do oxigênio no Amazonas e outras regiões; maquiagem estatística; etc.
        Muitos populares seguiram suas "recomendações" resultando em descontrole da C19 e numerosos hepatopatas, cardiopatas, nefropatas e neuropatas devido ao uso indiscriminado de cloroquina e do kit. Alguns estão na fila de transplante. A conduta toda foi criticada no Congresso.
        A gota d'água foi o boicote do governo à oferta de 70 milhões de doses da Pfizer em outubro. O senador Randolfe Rodrigues (Rede) lançou o texto da CPI da C19, com assinatura de 31 dos 81 nomes, enquanto se acumulam os pedidos de impeachment até o inalcançável recorde de 115.
        Assim como os pedidos de impedimento, o texto da CPI foi engavetado pelo balcão de negócios até março de 2021, quando foram precisas mais de 3000 mortes diárias e notícias trágicas para que o texto fosse repassado à Câmara e ao STF, com aprove imediato de todas as instâncias.
        Detalhe: a determinação de Barroso foi monocrática, com amplo apoio dos colegas, e o STF mantêm a liminar da execução da CPI em forma única.

Kajuru, Randolfe e a gravação

        O aprove geral do texto da CPI da C19 causou furor direto no Palácio da Alvorada. Bolsonaro não escondeu a irritação, estendendo-a até a apoiadores no seu cercadinho, que lançaram pontos críticos de seu governo. Nervoso, ligou para o senador goiano Jorge Kajuru, eleito via bolsonarismo, para saber da íntegra do texto.
        Kajuru confirmou ser o governo o alvo central das investigações. Bolsonaro se irritou ainda mais, xingando a ameaçando o senador da Rede Randolfe Rodrigues de agressão, e o pressionou Kajuru para acrescentar como alvos os governadores e prefeitos como maus gestores na C19. Até citou impeachment de ministros do STF.
        Na conversa, Kajuru pareceu concordar com Bolsonaro. Sobre o impeachment dos ministros do STF, citou Alexandre de Moraes, o principal nome contra os crimes da família Bolsonaro, sobre essa possibilidade, acalmando o presidente. 
        Kajuru gravou toda a conversa. Para a mídia, disse ter avisado o presidente da gravação, e que este não se opôs. A gravação foi sendo mostrada em partes, a partir do início. O que Bolsonaro não havia se dado conta, pelo visto, é que a gravação gerou repercussão.

Repercussão à guisa de reflexões finais
        Divulgada pela mídia com direito a requinte de customização da gravação em vídeo, a conversa sacolejou sentimentos de muita gente nos bastidores do poder em Brasília, bem como entre juristas, cientistas políticos e, em escala menor, parte da patuleia.
        Desiludida e costumada com as pizzas das outras CPIs, a maior parte da patuleia acredita que "as instituições estão aparelhadas e farão tudo para manter o Bolsonaro onde está". É esperar para ver.
        No palácio, Bolsonaro se irritou profundamente com a entrega da conversa gravada por Kajuru aos colegas e a mídia. Ao saber que o texto não foi amplificado conforme queria, ele acusou o senador de traição. Sim, de traição.
        Foi aí que, em sua autodefesa, Kajuru disse que avisara previamente o presidente da gravação da conversa. Só não disse o que faria, depois, com a gravação, daí a amarga surpresa, pois ali estava toda a sua reação, falas, e impropérios ameaçadores contra Randolfe.
        Por sua vez, ao saber da hostilidade presidencial, Randolfe não se intimidou, respondendo que a "violência costuma ser uma saída para os covardes que têm muito a esconder". Historiador, sem ter ligação com escândalos, o senador tem forte estilo combativo e franco, e já se acostumou com ataques dos colegas bolsonaristas.
        Na Câmara, o ex-presidente da casa Rodrigo Maia (DEM) disse que todo o teor da conversa, em especial "contra a CPI e um ministro do STF, é gravíssimo". Orlando Silva (PCdoB) disse que o teor revela crime de responsabilidade e a classifica como "o maior escândalo da história da República", por articular contra inimigos políticos e pessoais.
        O deputado do PSOL-RJ Marcelo Freixo acrescentou: "o objeto da CPI da Covid não pode ser modificado. Bolsonaro está morrendo de medo e tenta sabotar as investigações". O parlamentar tem currículo conhecido de inimigo das milícias, após perder irmão assassinado por elas. 
        A fala de Freixo concorda com argumentos de juristas e cientistas políticos segundo os quais a CPI em tela é próprio da parte federal, não podendo incluir governadores e prefeitos. Para estes, se conta o mister com as assembleias legislativas estaduais e câmaras de vereadores, respectivamente.
        Impichar ministro do STF é quase impossível. Possivelmente Bolsonaro se valeu de nomeação pela presidência da República para se considerar com poderes para tal. Mas a prerrogativa é do Senado, que não parece querer tirar Alexandre de Moraes: não há motivo sólido e o processo é muito desgastante.
        No STF, a ministra Carmem Lúcia entrou com notícia-crime contra o governo por conta de usar a C19 para genocídio indígena, e pediu a Luiz Fux para marcar julgamento da mesma em plenário. O doc aponta o "veto ao fornecimento de água potável e insumos médicos durante a crise sanitária". Mais um rasgo de roupa aí.
        O PGR Augusto Aras tentou manter o que resta de roupa do presidente ao dizer, sem explica, que "Bolsonaro fez cumprir a Constituição ao vetar parcialmente projeto de lei. Caso não agisse assim, poderia ser responsabilizado". Não, Aras: o veto viola artigos da CF/1988, e o STF vai julgar por isso mesmo.
        E não para aí: o MPF processa o ex-MS Pazuello e o secretário de saúde estadual do Amazonas Marcellus Campello por omissão no combate à sindemia entre dezembro e janeiro últimos. É certo que Bolsonaro seja citado nos autos, pois as ordens executadas pelo MS partiram dele. Mais roupa tirada.
        O mesmo vírus que tem sido instrumento para justificar o objetivo mortal de Bolsonaro, contra este agora se volta e o expõe nessa série de fatos interligados pelo fio da gestão negacionista da sindemia. Está exposto, despido, através da CPI da C19.

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Imagem: Google (com corte)

Notas da autoria
1. SRAG = síndrome respiratória aguda grave (do inglês SARS, severe acute respiratory syndrome)
2MPEs = micro e pequenas empresas
3. Água potável e insumos médicos.

Para saber mais
- https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2021/04/12/cpi-da-pandemia-salvara-milhares-de-vidas-se-frear-sabotagem-de-bolsonaro.htm
- https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2021/04/14/por-evitar-mortes-cpi-da-pandemia-e-atividade-essencial-e-precisa-comecar.htm
- https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/04/4917650-em-ligacao-bolsonaro-pede-a-kajuru-que-cpi-da-covid-mire-governadores.html
- https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2021/04/12/apos-dialogo-bizarro-com-kajuru-bolsonaro-alerta-seguidores-preparem-se.htm
- https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/04/12/em-audio-gravado-por-kajuru-bolsonaro-xinga-e-ameaca-agredir-senador-randolfe-rodrigues.ghtml
- https://jornalggn.com.br/congresso/autor-da-cpi-da-covid-ve-interferencia-de-bolsonaro-apos-conversa-gravada-por-kajuru/
- https://www.poder360.com.br/governo/carmen-lucia-pede-que-stf-julgue-noticia-crime-contra-bolsonaro-por-genocidio/
        

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