domingo, 18 de abril de 2021

Análise: o "novo" Brasil embrutecido 


        "Mulher que se dê o respeito não se deixa ser estuprada", ou "foi estuprada porque quis". "Foi morto porque provocou com certeza". "O que você fez pra seu marido te bater? Ele não iria bater à toa". "Chega de mimimi, vão ficar chorando até quando?". E outras, muitas outras pérolas.
        Notícias ainda mais frequentes do que antes da violência por motivo torpe - ou sem motivação conhecida - que recheiam os sanguinários jornais policialescos em plena hora de almoço, capazes de embrulhar o estômago.
        Uma incrível banalização da morte, da vida, do silêncio dos bons sentimentos e do escancaro do pior da essência humana. Hoje, no lugar do sorriso fácil, faceiro ou debochado, está a gárgula carranca, olhar vidrado pelo ódio.
        Pessoas que, na conquista de seu diploma, se acreditam merecer um prestígio a ser negado aos menos instruídos. Injúrias de classe social, racial, de gênero/ sexualidade e de crença vindos de quem chegou "lá em cima", em franca manifestação de ódio. Por quê? Política tem a ver com isso ou não?

>Breve compilado histórico sobre nosso constructo socioeducativo

        Como se sabe, o Brasil foi colonizados pelos portugueses, que após fracasso com os índios foram à África pegar levas e mais levas de africanos e sobre eles impuseram o mais longo e vergonhoso sistema escravista das Américas.
        Em todo o tempo de Brasil colônia, surgem as primeiras elites, através da espoliação de recursos naturais (que incluem minerais) preciosos e do trabalho escravo. Por espoliação aí se entende também roubar ou enganar outrem para ter grana para obter títulos de nobreza.
        Elite e escravismo se harmonizaram, quase simbióticas. A elite se apropriou do maior número de escravos, e muitos se enriqueciam ainda mais como tráfico. A elite também já se beneficiava com as isenções da Coroa e, depois, do Império e da República.
        Em 1888, no crescente clima de republicanismo, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea. Sumiu o escravo legal, mas permaneceram, até hoje, reflexos do sistema que governa as relações de trabalho, como os assédios dos patrões e chefes sobre os empregados, agravando-se com cor de pele e gênero.
        A sociedade mudou, com mais acesso à escola do que naqueles tempos brumosos. As tecnologias também ajudam. Mas a elite de hoje nem tanto: é principalmente na nata do serviço público que são identificadas irregularidades e corrupções, e a sua impunidade. É mais fácil punir os da base social.
        A historicidade e a impunidade dessa disparidade consolidaram a cultura de privilégios, pela qual se inventam mecanismos a reverberar negativamente sobre os populares (dois pesos, duas medidas). Essa cultura se tornou um defeito cultural, fortemente alimentado por governos autoritários.
        A cultura de privilégios tem encontrado um terreno fértil na consolidação da disparidade de dois pesos, duas medidas: a condução econômica do país. Ministros liberais e neoliberais têm reiterado a austeridade e a contenção cujo sofrimento imposto sempre recaiu sobre as classes populares.
        E quando o governo é autoritário e economicamente liberal (ou neo), entram dois alimentadores para o clímax desse defeito: instituições religiosas e politização dos valores e costumes, que se unem para legitimar a repressão violenta sobre os populares. Receita do fundamentalismo bolsonarista.

>Escolarização x educação

        Quando ocorre uma propaganda de governo ou há notícia estatística transmitida pela imprensa, ouvimos que o Brasil está ficando "mais educado porque a média de tempo de estudo aumentou". Sim, desde que Bolsonaro entrou não vemos mais notícias sobre esse assunto, mas a mídia tem dito isso.
        Não é bem um erro, nem culpa da mídia. Tradicionalmente, Educação significa o serviço essencial de oferecer meios de alfabetização e instrução ao povo. Nossa legislação considera crime de abandono intelectual a recusa dos pais e matricular os filhos na escola, não importa o motivo. 
        Na verdade, o certo é a escolarização, por sua vez assimilada no senso comum e nas entidades burocráticas como nível de instrução. Da creche à universidade, escolarização é elemento da educação, indicando esta ter abrangência muito maior - desde o início ao fim da vida das pessoas.
        A Educação tem três etapas cruciais, harmônicas e complementares. A primeira é familiar, na qual aprendemos os nossos valores éticos e morais; a segunda é escolarização, que complementa com a instrução; e a última social, abarcando esferas sociais, afetivas e profissionais diversas.  
        Tendo a base moral familiar, complementada com regras de vida em sociedade, a fase social molda os indivíduos em alguns costumes e mede a civilidade, para o bem ou o mal. Daí se depreende como se saem tantas distorções ou inversões de valores, como vemos nas relações sociais, por exemplo.
        Elementos de civilidade foram distorcidos pela legitimação da violência e da estupidez. Gentileza colaborativa e solícita; tolerância à diversidade étnica, sexual, política e religiosa; e criminalização dos delitos sexuais pelo povo hoje estão distorcidos. 
        Má vontade com o outro, ódio à diversidade e punição às vítimas violadas estão muito em voga, não importando a escolaridade do autor, derrubando em definitivo a tese da pobreza fator de violência. Ela aumenta o risco, mas a causa é o afago aos interesses dos abastados em desprezo às necessidades dos populares e mais pobres.
        Doutores com diplomas que idolatram um disseminador do ódio e da morte, enquanto muitos sem diploma lutam para manter em atitudes o seu resquício de cidadania. E cidadania é o que mais vem se perdendo com o crescente cenário de ode ao ódio.
        Há revanche político, pois essa distorção toda foi amplamente alimentada pelo bolsonarismo que hoje ocupa o poder máximo, e se estende às pautas econômicas de Paulo Guedes, com consequências negativas sobre as camadas mais pobres, que se veem duramente reprimidas se protestarem.
        Como se vê, foi sobre os valores da educação social que o bolsonarismo focou para alimentar as distorções e inversões acima. O bolsonarismo foi com tudo nesse sentido, mas também foi alimentado.

>Reflexões finais

        A violência nas nossas relações sociais não é novidade. Sua historicidade é fruto da construção megaestrutural elitista e predatória na espoliação de camadas subordinadas. Todavia, havia regramento, mesmo delicado, de harmonia social, para um mínimo gentil, solidário, solícito, respeitoso.
        A comoção com a morte violenta do pequeno Henry é tão tocante quanto a banalização de mais de 372 mil vítimas (oficiais) da sindemia de C19. Efeito do modelo dois pesos, duas medidas. Ou será que é tão pouca empatia para muita gente? Vale refletir mais um pouco sobre.
        Sem dúvida alguma que o analfabetismo escolar e funcional é ruim. Mas, pior é o sociocultural, seguido agora da degeneração do vestígio de visão racional dos fatos pelo bolsonarismo. Conversas mais elevadas foram substituídas por visão de sangue na TV em horários antes destinados à infância.
        Se tornou um iletrado social, incapaz de perceber as entrelinhas de um tema para discuti-lo. Nas entrelinhas está o segredo de uma leitura aprofundada da realidade da atuação do mega sistema sobre nós, como nos moldamos pelo meio social e como podemos transformar isso.
        A menção ao bolsonarismo foi inevitável, pois ele aparece como exemplo notável de politização dos nossos defeitos culturais, morais e éticos. Ele é o reflexo do pior que temos humanamente. O que não livra da culpa pelo rumo negativo de seus atos, na forma de anomia social e tragédia genocida.
         Desregramento da harmonia social, a anomia é o que se estampa na catarse violenta consequente às distorções e inversões de valores de convivência/ conduta. A democratização dos costumes nas eras anteriores (FHC e Petismo) não se mostrou um monstro a eliminar os defeitos culturais. Uma pena.
        Como nação e diplomacia, estamos num barco à deriva. Mas, ainda é possível nos salvar. O que se deve fazer é um desafio poderoso, pois implica revolver sentimentos tão brutalizados e custa tempo. É bem aí, porém, a necessária solução para salvarmos o Brasil antes que desapareça como nação. 

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Imagem: Google cartuns

Notas da autoria
1. Código Penal Brasileiro, de 1940, teve progressivas alterações e leis complementares mais avançadas.

Para saber mais
- https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/muralinternacional/article/view/48071 (acadêmico, 2020)
- https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/muralinternacional/article/view/48071 (bolsonarismo)
- https://jus.com.br/artigos/81394/bolsonarismo-e-sua-introspeccao-cultual (bolsonarismo, 2020)
- https://apublica.org/2019/07/o-bolsonarismo-e-o-neofacismo-adaptado-ao-brasil-do-seculo-21/
- https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/download/52477/751375149586/ (acadêmico, 2020)



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