Análise: CPI e jogo espúrio paralelo
Estamos numa época que corresponde a pleno outono, mas pelo visto maio está um mês bastante quente. Não na temperatura climática natural - que em alguns lugares ainda está alta e ar seco -, mas na esfera sociopolítica mesmo.
Uma causa importante para o clima quente que impera em Brasília é o Corona. Este surgiu mesmo para valer, tremer as estruturas sólidas e revelar as podridões submersas. Algumas destas sem nada a ver com o vírus, mas correndo em paralelo à revelia da atenção alheia.
CPI da C19
A CPI da C19 foi tratada em artigo anterior, a princípio como uma verdadeira encomenda da oposição, já que a sua autoria é de um conhecido opositor de Bolsonaro, o jovem, mas experiente senador Randolfe Rodrigues, com aprovação unânime pelos ministros do STF.
As ameaças do presidente poderiam, talvez, intimidar certos parlamentares, mas não Randolfe, que se viu mais estimulado ainda na sua determinação de seguir em frente naquilo que Jair considerou como uma guerra contra ele.
Mas, na verdade, o maior inimigo de Bolsonaro é Renan Calheiros (MDB-AL), que tem visível contrariedade com o necropolítico e cuja sagacidade política pode, sim, ameaçar continuidade de sua carreira política. Daí a fracassada liminar contra a relatoria de Renan.
Renan se entusiasmou: se referenciou no depoimento do ex-MS Mandetta para inquirir Teich e, com a descarada borrada de Pazuello, partiu para cima do atual Queiroga, que não difere de Osmar Terra em caráter, sobre a posição em relação ao tratamento precoce da C19.
Inquirindo e desmentindo1 o ex-Secom Wajngarten, Renan foi xingado de vagabundo pelo colega Flávio Bolsonaro, e prontamente devolveu chamando-o de ladrão. Seguiu-se um pequeno incêndio, e a sessão foi encerrada pelo presidente da CPI, Aziz, que se borrou um pouco em nome de Bolsonaro.
Vagabundo vai ser a palavra da moda para os bolsominions xingarem todos os não-Bolsonaro, que só por isso são considerados comunistas ou petistas - a mesma coisa para eles. Para eles, vagabundo é só mais um sinônimo no confuso dicionário bolsominion.
A patuleia temeu por nova pizza, mas logo a CPI retomou com o grande depoimento do executivo da Pfizer, Carlos Murillo, que participou das reuniões com o MS e confirmou as presenças de Carlos Bolsonaro, Wajngarten e Felipe Martins nas mesmas. Renan tomou nota da ferroada.
Enquanto isso, Ricardo Lewandowsky, ministro do STF, concedeu habeas corpus para o ex-MS Pazuello ficar calado na CPI. Juridicamente faz sentido, pois ele está como investigado em 11 fatos. Mas, como disse Renan, "o silêncio é uma confissão de culpa", como reza o dito popular "quem cala, consente".
Mostrando a que veio, Renan protocolou recurso contra a concessão, que agora vai para votação nas duas turmas do STF. Analisando friamente a situação de Pazuello, se ele se cala, se expõe; se fala, está seriamente vulnerável. Será que Wajngarten e Queiroga estão na mesma situação, para justificar seus enroscos na CPI?
Detalhe: para acalmar os ânimos, Lewandowsky fez nova decisão de HC, desta vez parcial, em que Pazuello pode silenciar sobre si, mas não sobre Bolsonaro. Ele irá depor em 19/5.
A CPI interrogará outros nomes no enrosco como Nise Yamaguchi, o ex-ministro Ernesto Araújo, Dimas Covas (diretor do Butantã), Fernando de Castro (União Química), Nísia Trindade (Fiocruz), e Mayra Pinheiro (sec. Gestão-MS), para dar informes sobre a dinâmica da coisa.
De Covas, Castro e Trindade se espera certa tranquilidade. Já dos demais, não se garante.
E em paralelo...
"Reformas" de Guedes
Enquanto o cabaré da CPI pega fogo, o ministério da Economia continua o seu trabalho incessante no submarino. O ministro Paulo Guedes está só sorriso, por ter sido beneficiado com aumento de 69% em seu gordo salário - fora os auxílios e outras mordomias.
Mas, antes dessa notícia do aumento, o trabalho de Guedes já fluía no Congresso, através das suas reformas em trâmite desde bem antes. Vários de seus projetos foram aprovados pelo Congresso e já vigoram, com consequências visíveis sobre quase toda a população.
Outras tramitam ainda no Congresso, em análise ou aprovadas em parte. Entre elas, as privatizações de estatais como a Eletrobrás e, em fatias, Petrobrás e Correios, bem como, entre as reformas, se destacam agora a tributária e a administrativa.
Reparem que todas as suas "reformas" (entre aspas, pois não têm o sentido positivado pela mídia da casa grande) são propositalmente propostas de emendas à Constituição (PECs), porque o ministro desde o início do governo defende uma nova Carta Magna. Soa estranho, mas faz sentido em 2 pontos.
Porque Guedes vê na Constituição de 1988 artigos que supostamente impediriam a alavanca do desenvolvimento econômico e sustenta uma prerrogativa de Estado "muito inchado", na visão da mídia da elite e do mercado. Inchaço esse que sabemos ser falso quanto cédula de R$ 500.
Porque Guedes carrega em seu CV sua passagem pelo Chile do sanguinário Pinochet, para quem trabalhou na área econômica. Ele várias vezes propagandeou a reforma previdenciária em 2019, se referindo ao Chile como "a Suíça da América Latina", um suposto modelo de "Estado moderno".
Tão minimizado que até hoje a mídia da casa grande omite a realidade popular chilena diante da substituição do Estado por entes privados nos serviços essenciais e benefícios sociais, sustentando a mentira de suposta renda per capita de níveis europeus que apenas uma estrita casta de lá possui.
Contrariando a maioria dos brasileiros, a "reforma" da previdência foi promulgada em novembro de 2019, sem consulta do governo e dos parlamentares à população. Aliás, foi Guedes que deu a ideia de o governo decretar a extinção de mais de 100 conselhos populares ainda em 2019.
A PECem trâmite na Câmara é a administrativa, que afeta os servidores em geral. Após publicizar sobre a "modernização do Estado em respeito ao teto dos gastos", Guedes foi lembrado por deputados de suas depreciações mentirosas aos servidores públicos, excessos do governo, cortes na saúde, C&T e educação, doações trilhonárias aos bancos e de a C19 não ser momento de se discutir reformas.
Guedes diz que a proposta visa acabar com privilégios da elite do setor público (milicos, auditores fiscais, desembargadores, juízes e outros) e novos servidores. Mas, já devíamos aprender que a real é o rumo contrário das falas do ministro: os alvos são os de baixo e médio escalões.
Essa proposta é muito criticada em vários pontos: basta seguir o contrário da fala de Guedes. Se publiciza que ela atingirá a elite, mas já se sabe que esta (milicos, auditores fiscais, desembargadores, juízes e outras categorias de alto escalão) não será atingida.
A ansiedade de Guedes para aprovarem suas propostas também repousa na possibilidade de a CPI da C19 ferrar de vez Jair Bolsonaro, a um ano e meio das eleições de 2022. Se Bolsonaro cai, também cai a sua cabeça e as suas PECs. Aí, a mídia da casa grande não poderá mais poupá-lo.
Orçamento secreto
Enquanto isso, em meio ao cabaré da CPI em fogo no Senado, vaza na internet e bomba nas redes notícia de orçamento secreto do presidente Bolsonaro. O vazamento fez morrer, a princípio, a natureza secreta do orçamento em torno de R$ 3 bilhões - é o que sabemos.
A notícia indignou até quem votou em Bolsonaro para "tirar o PT": se não tem grana para ajudar pobres e MPEs, universidades que ameaçam parar, compra de vacinas e reforço à saúde em geral, como surgiu tanto dinheiro para o "orçamento secreto"? Spoiler: a pergunta também vale para Guedes ter trilhões em grana pública para a ciranda financeira.
O vazamento expõe a relação espúria entre Bolsonaro e o Centrão comandado por Arthur Lira: a grana será rateada entre os parlamentares. Só o citado ficha corrida embolsará mais de R$ 75 milhões. As más línguas apontam até alguns opositores na ciranda, mas ninguém cita nomes. E há senadores na boquinha.
A razão dessa nova boquinha seria o reforço de proteção política na Câmara ao presidente, com o progressivo rumo tomado pela CPI da C19. Pois na Câmara a Oposição colhe assinaturas para formar uma CPI para chamar de sua, a Comissão Externa Sobre Ações Preventivas ao Coronavírus.
Não bastando isso, por decreto Bolsonaro aumentou seu salário em 6%, e dos seus ministros em 69%, segundo sabemos. Como se os salários dessa turma já não fossem gordos. Ok, o teto dos gastos só funciona para os que pagam impostos escorchantes para sustentar toda a mixórdia sem contrapartida.
Um ponto que parece interessante é que o orçamento bilionário foi chamado de "tratoraço", em alusão aos tratores adquiridos por valor mais de 200% superfaturado, envolvendo a Cooperativa de Desenvolvimento do Vale do Rio São Francisco (Codevasf).
PL da licença ambiental
Se lembram daquela reunião ministerial de 22/4/2020, na qual o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles fez a sua famosa declaração de "fazer passar a boiada" enquanto a patuleia volta as suas atenções para a tragédia da C19 em formação? Pois é.
É justamente nesse momento que a patuleia está agora atenta à tragédia da C19, agora mostrando a cara do genocídio com mais de 430 mil mortos, que se noticia a tramitação da PL da licença ambiental na Câmara. Ela foi elaborada pelo punho do próprio ministro que, aliás, é um dos diletos do presidente Jair Bolsonaro.
Ela encontra forte apoio entre duas bancadas importantes, a do boi (ruralista) e a empresarial (formada por empresários ou representantes de empresas do setor extrativista, que desejam explorar, para objetivos macroeconômicos, a região ainda intocada das terras públicas ocupadas pelos grandes biomas.
Esses setores poderosos sustentam a velha desculpa de que a "lei de licença ambiental embarga o desenvolvimento econômico", para justificar seus investimentos sem qualquer entrave à ocupação das regiões ricas em recursos diversos, exploradas apenas pela atividade de subsistência dos nativos.
Aliás, povos originários e tradicionais são vistos por Salles como problemas a serem resolvidos. Não por acaso, ele cobrou dos EUA US$ 1 bilhão na desculpa de "salvar a Amazônia" - na verdade, formar com esse dinheiro milícias nessas áreas. Sabemos que o termo milícia tem, literalmente, mau sentido.
Só a patuleia que atua na área ambiental, ambientalistas e indígenas têm consciência desta PL e de seu trâmite, tendo uma decepção: ela foi aprovada na CCJ. Apesar da decepção e temor, não surpreende: a maioria da CCJ é constituída é gente das citadas bancadas e é presidida pela bolsominion Bia Kissis.
A maioria dos brasileiros tem consciência ambiental muito limitada, por motivos óbvios e mais um pouco, se impedindo de se informar e acompanhar a realidade da nossa política ambiental. E totalmente nula é a ciência popular sobre a biografia, a índole e o caráter de Salles.
Graças à índole e ao caráter, que o condenaram por fraude ambiental no governo de SP na gestão Alckmin - e cumpria sentença quando foi nomeado como ministro, num ato ilegal -, Salles representa muito bem a política doentia de Jair Bolsonaro, ajudando o genocídio com ecocídio recorde.
Reflexões finais
O conjunto dos fatos ocorre num momento um tanto inoportuno para um Brasil atravessado pela tragédia da C19, fome, miserabilização crescente, ataques sistemáticos a grupos sociais e patrimônios mais vulneráveis, perda de direitos fundamentais e até recuo da economia e da expectativa de vida.
A CPI foi considerada inoportuna por gente do governo, como fanático apoio dos bolsominions fantasiados que, em coro, se aglomeraram num ato em Brasília, observados por Bolsonaro sem máscara confortavelmente do helicóptero presidencial.
A essa gente do governo, a resposta da maioria: inoportunas e desnecessárias, para não se dizer criminosas, têm sido as ações governamentais que levam o Brasil a rolar abismo abaixo. Inoportuno também é o apoio fanático dos bolsominions com flagrante insensibilidade frente à tragédia.
Ações essas que, diga-se de passagem, têm sido crimes flagrantes e perfeitamente evitáveis. Não, a CPI da C19 não é inoportuna, e sim um contraponto tardio ao genocídio em curso. Tardio, mas pelo menos, o último recurso até o momento viável para dar fim ao caos.
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Imagens: Google
Notas da autoria
1. Wajngarten mentiu, ao negar que comunicou com Carlos Bolsonaro, e a participação deste nas reuniões com executivo da Pfizer que compareceu para depor. Renan chegou a pedir a prisão de Wajngarten pelas mentiras. Então, Flávio xingou.
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