segunda-feira, 28 de junho de 2021

Análise: vacinoduto e reforma do Estado


        Quando o ex-governador fo RJ Wilson Witzel depôs na CPI, os brazucas mais céticos em relação ao possível sucesso desta comissão começam a sentir os seus efeitos. Afinal, Witzel, que não é flor que se cheire, foi o primeiro a realmente desnudar a família do presidente Jair Bolsonaro, após cócegas de Mandetta.
        Que o depoimento de Witzel foi útil a dar nova guinada mais diretiva aos Bolsonaro, disso não há dúvida. Mas agora entram em cena dois irmãos, cujo depoimento coloca de vez os Bolsonaro no alvo do protagonismo do que pode ser o maior escândalo da história da República: o vacinoduto Covaxin.
        Ao abrirem a boca de vez, os dois irmãos colocam não só em xeque o futuro de toda a família Bolsonaro, mas também de outra política que o ministro da Economia Paulo Guedes tanto briga para passar: a PEC32, reforma administrativa, que propõe reformar o Estado.
        O que a CPI da C19 tem a ver com a PEC32, que trata dessa reformulação do Estado? Este artigo surge para este objetivo de chamar à reflexão da importância dos fatos.

CPI: os irmãos Miranda e irregularidades na Covaxin

        Os irmãos são Luís Cláudio e Luís Ricardo Miranda. O primeiro é deputado federal do DEM-DF, eleito na onda bolsonarista em 2018, para depois se distanciar, acompanhando colegas do DEM. O segundo é servidor concursado do MS, em setor de licitação. Ambos são naturais da região do DF.
        Antes de estrear na política, Luís Cláudio Fernandes Miranda, nascido em 1980, já atuava como youtuber e empresário. Em seu canal, ele exalta o capitalismo estadunidense centrado em Miami e se coloca contra o socialismo, gerando polêmicas. Como empresário, teve duas empresas, FitCorpus e Gifts for Worlds e-commerce.
        A clínica de estética FitCorpus foi proibida de funcionar pelo CFM1 e processada por franqueados, sócios, ex-funcionários e pacientes por calotes e mau atendimento; e a Gifts for Worlds, criticada pelos clientes que pagaram, mas não receberam os produtos solicitados. Miranda responde a processos por fraude contra a justiça, estelionato, rejeição de contas e suposta ameaça de morte.
        Por sua vez, Luís Ricardo Miranda é servidor atuante na área de controle de licitações do MS. Não há dados sobre a vida anterior ao serviço público. Após tantas negativas do governo relativas à Pfizer e outras totalizando mais de 80 e-mails no vácuo, Luís impediu um negócio muito perigoso ao erário público. 
        Seria a compra irregular de uma vacina ainda desconhecida entre nós.

Covaxin: uma vacina problemática e cara
        A Covaxin é a primeira vacina totalmente indiana, tendo seu IFA desenvolvido por pesquisadores no laboratório Bharat Biotech, conhecido entre os indianos por fabricar produtos veterinários. O que, em si, não é nenhum problema, pois alguns gigantes da área fazem o mesmo.
        Além de fármacos veterinários e humanos, a centenária alemã Bayer fabrica agrotóxicos, adesivos e outros produtos sem nenhum alarde público. Portanto, criticar o laboratório indiano pode indicar um preconceito xenofóbico ou racista, pois a Índia é um país de povo em geral pobre e não branco.
        Segundo o UOL de 24/6, a Covaxin virou alvo de desconfiança na Índia pelo uso emergencial sem comprovação de eficácia, segurança e efeitos colaterais, só obtida após a 3ª fase, de testes em humanos em larga escala. O laboratório, então, procurou compensar com "dados preliminares", em abril.
        Esses dados eram obtidos de relatos de receptores de aplicação formal. Em junho, foi entregue ao MS indiano relatório apontando eficácia de 77,3%, mas sem mais detalhes do estudo, que envolveria mais de 25 mil pessoas, nem haver publicação em revista científica digna de nota.
        A pesquisadora em saúde pública indiana Mailini Aisola considerou perigoso "jogar ao público sem dados de intervalos de confiança, números precisos de casos analisados, informes de segurança e efeitos colaterais", gerando rejeição inicial entre os profissionais de saúde locais ao seu uso.
        Os profissionais e pesquisadores indianos preferem a Covidshield1, mas diante da insuficiência de doses desta e de outras com estudos completos, houve uma resignada aceitação da Covaxin para uso emergencial em face da nova onda de C19.
        No Brasil, devido a essa lacuna de dados, a Covaxin foi aceita pela Anvisa com forte restrição, importando apenas 4 das 20 milhões de doses iniciais, e a sua aplicação, rigidamente controlada pelo MS, apesar da garantia de segurança pelo presidente da Bharat Biotech, Khrishna Ella.
        Uma equipe técnica da Anvisa foi enviada à Bharat Biotech para a inspeção entre os dias 1º e 5 de março, encontrando 29 inconformidades, sendo 3 críticas, 12 maiores e 14 menores, que precisariam de meses para serem sanadas, segundo o próprio laboratório.
        Falta de testes específicos de potência, método de certificação de inativação do vírus, precauções insuficientes para evitar contaminação microbiana no processo asséptico e estudos incompletos estudos para validação são alguns exemplos que fizeram a Anvisa reprovar uso emergencial amplo da vacina no Brasil.
        Ainda assim, um contrato de compra foi fechado, levantando suspeitas.

Vacinoduto
        Além das inconformidades, a Covaxin se mostrou muito cara. O contrato fechado custaria ao MS brasileiro cerca de R$ 1,6 bilhão por 20 milhões de doses, o que gerou forte suspeita de irregularidade, que levou à investigação por aqui. 
        Contrariando a alegação do governo de só comprar Covaxin após a rigorosa inspeção técnica da Anvisa, que ocorreu de 1 a 5/3, o contrato foi fechado em 25/2. A negativa da Anvisa fez com que um pessoal no MS negociasse para sanar os obstáculos técnicos, segundo disse uma fonte à Reuters.
        Tal fonte, não identificada e com conhecimento do assunto, ainda acrescentou que tal mecanismo não ocorreu com vacinas de outros laboratórios. E detalhe: tudo correu enquanto a Pfizer insistia nos seus e-mails a Brasília, desde meados do ano passado, seguindo ignorada pelo governo.
        Nesse cenário entra a empresa Precisa, investigada como propriedade de brasileiro e patrimônio declarado de R$ 12 milhões. Ela intermediaria a tal compra por R$ 1,6 bilhão. A Anvisa liberou as 4 milhões de doses só neste junho, após 21 requisitos preenchidos e assinado termo de compromisso.
        A Precisa seria gerida pela Global Gestão e Saúde, de "má reputação" segundo o servidor do MS, que apontou a compra como irregular por falta de vários docs, pressão por pagamento total adiantado e divergências sobre nomes de empresas envolvidas, sugerindo haver empresa de fachada.
        O servidor contou que o pagamento adiantado não estava previsto no contrato e que o militar Alex Marinho, ex-coordenador de Logística no MS, pressionava com perguntas sobre andamento da compra, o que o levou a correr atrás do irmão deputado, para informar o presidente Bolsonaro dos fatos.
        Ao ser informado dos fatos, Bolsonaro prometeu comunicar à PF para investigar "isso aí" e quem estaria por trás, mas não cumpriu, conforme salientou o irmão deputado à CPI em 25/6.
        Pelo que se deu a compreender pelo depoimento, o presidente não informou a PF para, decerto, não atingir o nome de peso por trás, que o parlamentar alegava ter esquecido, mas acabou respondendo após pressão pelos senadores Alessandro Vieira e Simone Tebet: Ricardo Barros (PP-PR).
        Hoje governista, Barros é importante na trama política desde o bem-sucedido impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Engenheiro e empresário, foi MS na era Temer, defendendo a privatização do SUS. Felizmente não privatizou, mas meteu-lhe uma facada de R$ 12 bilhões de uma só vez.
        Barros não é flor que se cheire: deprecia os trabalhadores em home office, minimiza a sindemia de C19 e outras bobagens. Tem nos ombros processos na Justiça do Trabalho, nepotismo, e fraude quando foi prefeito da natal Maringá e no atual caso Covaxin, no qual é o pivô.
        Apesar da exposição da sem-vergonhice, Barros teve a sua mulher, Cida Borghetti, nomeada por Bolsonaro para cargo no Conselho de Administração de Itaipu por salário de R$27 mil. Tudo porque Barros tem se mostrado importante aliado do presidente na Câmara. Inclusive na ficha corrida.
        E o envolvimento de Barros com vacinoduto não para por aí: a CPI já sabe de outro negócio, de compra de 50milhões de doses de Convidecia, da chinesa CanSino, cuja dose custa US$ 17, somando a mercadoria total, US$ 850 milhões. Ou mais de R$ 4,190 bilhões, no câmbio de 28/5. Só que o total ultrapassou R$ 5 bilhões. Sobram aí mais de R$ 800 milhões.
        Como no caso Covaxin, há intermediários. A empresa, Belcher, é uma farmacêutica sediada em Maringá, cidade natal de Barros. Os envolvidos na intermediação desse negócio bilionário, além de Barros e outros, são os grandes empresários Carlos Wizard e Luciano Hang, o Véio da Havan. Detalhe: tudo isso é apenas a ponta de um iceberg gigante a esconder muitas outras imundícies.
        Diante disso tudo, se presume que Barros, Wizard e outros, além dos próprios Bolsonaros, viram no vacinoduto uma verdadeira mina de ouro, digo, de grana não declarada. Cuja fonte pagadora, claro, são os cofres públicos. E às custas de mais de 512 mil brazucas, em dados oficiais.

A atuação de Luís Ricardo e a PEC32: reflexões finais

        Toda a trama nos traz uma reflexão sobre o andamento da lixeira moral em que se encontra o país desde, pelo menos, o pós-golpe de 2016. Com a aceleração do acúmulo a partir de 2019, nunca se viu tanto lixo a ser resolvido, culminado com a PEC32, a reforma administrativa. Como assim?
        A referência à PEC32 é necessária para se refletir sobre seu potencial perigo num país tão atacado por ilegalidades de todo tipo por agentes políticos. Eis um resumo dos fatos mais marcantes.
        Em 2019, as principais denúncias de afrontas contra o erário público partiram da área ambiental: desmates ilegais por fazendeiros, grilagem, queimadas, garimpo e extração de madeira2 em áreas de proteção permanente públicas (terras indígenas, parques) dos principais biomas.
        Apesar de malsucedidas, as denúncias custaram os afastamentos de servidores do ICMBio3, Ibama e da PF-AM, entrando no lugar militares ou apaniguados do governo, e os crimes foram expostos nas redes sociais onde receberam muitas críticas.
        Tais denúncias custaram afastamento de servidores como os do Ibama, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e da PF-AM. Em seu lugar estão militares ou apaniguados, os crimes expostos nas redes sociais, apesar das denúncias ficarem por isso mesmo.
        Na sindemia de C19, quando Mandetta ainda era MS, servidores do SUS, concursados e CTUs4, desde então se desdobram bravamente para salvar o máximo de vidas possível, às vezes às custas de suas próprias vidas. Hoje, Mandetta e até Teich, seu sucessor, são pró-SUS.
        Após más interferências de Pazuello nos contratos dos CTUs, os servidores com este vínculo hoje se mostram essenciais após tantas mortes entre servidores concursados pela C19 e suas complicações. Agora, estão novamente em contratos semestrais prorrogáveis como já ocorria antes do militar.
        O mais recente se refere ao caso Covaxin: além da restrição da Anvisa, a atuação do servidor Luís Ricardo ocasionou o feliz fracasso da compra irregular, mesmo cm tanta pressão de Alex Marinho. As irregularidades foram mais gritantes do que a tal pressão do militar.
        O castigo do servidor não foi a exoneração, pois ele salvou o erário público, como outros acima tentaram fazer. Mas, o bloqueio de sua entrada no SEI (sistema eletrônico de informações), que todo servidor usa hoje em dia para elaborar despachos, memorandos, ofícios e outros docs públicos.

Espaço para a PEC32?
        A punição de servidores públicos prevista na Lei 8112/1990 é tema discutido no parlamento federal há décadas, pois cabeças privatistas sempre a considerou branda demais para muitos acontecimentos. Tudo por influência do folclore anti-servidor sustentado pela direita, empresários e grande mídia.
        Collor sustentou o velho folclore bradando, como a grande mídia, que servidores genericamente são "marajás que trabalham pouco e mal e ganham demais". No seu governo, ele sancionou a Lei 8112 de 1990, ou Estatuto do Servidor Público, que substitui a antiga CLT especial cheia de benefícios.
        O Estatuto substitui a antiga CLT do funcionalismo que dava FGTS e benefícios extras. Não há mais FGTS devido à estabilidade, e os benefícios foram adensados em gratificações de desempenho, com perda de valor no provento final. Perda não sentida pela elite do funcionalismo.
        O Estatuto impõe restrições como não ter negócio privado lucrativo em seu nome. Com exceção das categorias CNPJs, como médicos, dentistas, advogados, engenheiros, publicitários. 
        O servidor é punível, de advertência à exoneração, a depender da gravidade do dano julgado por processo administrativo-disciplinar (PAD). A exoneração derruba a ideia de indemissibilidade. Servidor exonerado sai com seguro-desemprego e indenizações proporcionais à remuneração do cargo ocupado.
        O Estatuto delimita direitos e deveres precípuos à natureza do servidor público e de seu cargo ou função, que é encarado como único emprego para os dos estratos mais baixos que atendem ao público. Ele manteve a antiga progressão automática por tempo de serviço e 
        Em 2017, a senadora Ma. do Carmo Alves (DEM-RN) criou o PL 116/2017, que propõe, entre outas medidas, a demissão de servidor público por mau desempenho sem passagem pelo moroso PAD, bastando para tanto, decisão subjetiva da chefia imediata. Mas não dissolve o Estatuto em si.
        Tal ponto foi absorvido pela PEC32 de Paulo Guedes, que já foi abordada neste blog. Pela PEC, que atinge servidores atuais, o Estatuto se extingue, e com ele, os poucos direitos restantes, inclusive a condição de carreira de Estado a depender do cargo/ função, e flexibilidade de carga horária.
        É na demissão facilitada prevista na PL 116/2017 e na PEC32 que se observa alto risco de atentar contra o Estado, pois se facilitará substituir por apaniguado sem concurso, cuja margem se torna muito maior na PEC: no Estatuto são poucas dezenas; na PEC são quase mil,
        Outro detalhe na PEC32 é a previsão de aumento dos poderes do presidente da República sobre a gestão das entidades públicas e na vigilância, pelos chefes por ele indicados, de servidores subalternos, o que liberará toda sorte de assédios morais verticais de cima para baixo e onda de demissões.
        Com isso se dará liberdade a toda sorte de ilicitudes contra o erário público, nepotismo e cabide, que já correm ao arrepio da lei e da ética do servidor. Como hoje, os mandantes estarão em cargos de comando, enquanto os subalternos serão obrigados a operá-las para manter seu sustento.
        Assim, se a PEC32 já estivesse em vigor, o vacinoduto e outras ilicitudes cuja gravidade ainda não mensuramos seriam efetuados com uma liberdade insana, e não denunciados, investigados e noticiados como hoje. É aí que se observa o quão essenciais são os servidores públicos.
        Embora tão eficientes quanto os concursados estáveis, os CTUs ainda se veem em situação quase tão frágil quanto um celetista privado. A PEC32 ainda não aponta nada que os beneficie, no risco de convertê-los para a CLT privada.
        A depender do caráter de gente como Pacheco (Senado) e de muitos da Câmara, a PEC32 tem uma chance de votação favorável. Claro que a CPI interfere muito e dá incerteza ao futuro do governo, e isso é fato inconteste. Ainda há tempo de se ver como tudo está correndo graças às condutas de uma categoria injustiçada: os servidores públicos de carreira.

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Imagens: Google (montagem: autoria do artigo)

Notas da autoria
1. Covidshield é o apelido da vacina da Oxford, AstraZeneca.
2. Negócio criminoso em que o ex-ministro Salles e o presidente Bolsonaro estão metidos. A atividade foi denunciada pelo delegado Saraiva, da PF-AM, neste ano. Ele foi substituído, mas não exonerado.
3. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, uma fundação pública.
4. Contratados Temporários da União: vínculo de contrato temporário para calamidade pública (adendo na Lei 8112/1990).

Para saber mais
https://pt.wikipedia.org/wiki/Luis_Miranda_(pol%C3%ADtico)
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Ricardo_Barros
- https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/06/25/deputado-e-servidor-reafirmam-denuncias-contra-governo-na-compra-da-covaxin
https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/bbc/2021/06/24/covaxin-e-alvo-de-desconfianca-na-propria-india-por-uso-sem-finalizar-testes.htm
https://www.uol.com.br/vivabem/reuters/2021/06/25/anvisa-encontrou-29-erros-em-fabrica-da-covaxin-apos-saude-fechar-contrato.htm
- https://drluizfernandopereira.jusbrasil.com.br/artigos/376927970/a-exoneracao-do-servidor-publico-e-seus-direitos
- https://publica.org.br/2020/09/30/os-atuais-servidores-e-a-reforma-administrativa/
- https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2021/06/pec-32-reforma-administrativa-constitucionaliza-precarizacao-retrocesso-democratico/
- https://revistaforum.com.br/coronavirus/bolsonaro-nomeou-esposa-de-ricardo-barros-para-receber-salario-de-r-27-mil/
- https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2021/06/ricardo-barros-e-ligado-a-farmaceutica-que-participa-da-compra-da-vacina-mais-cara-do-pais/


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