Análise: Velhice é mesmo doença?
Após os sucessivos conhecimentos novos acrescentados na medicina tendo como consequência o progressivo aumento da chance de vida, a Organização Mundial de Saúde (OMS) acaba de decretar, nessa semana corrente, que a idade avançada (velhice) é um caráter patológico.
Essa notícia soa no mínimo estranha, batendo de frente com todo o esforço de várias frentes da ciência que contribuiu para o aumento da longevidade e do bem-estar da humanidade. Doenças antes tidas como incuráveis, como tuberculose e câncer, podem ser hoje tratadas e eliminadas com tratamento clínico seguido à risca e vacinação. Bem, há de se entender, em primeiro lugar, que existem duas terminologias a apontar a fase final da vida marcada por modificações fisiológicas e adoecimentos: a senescência e a senilidade. Será que está nessa entrelinha a consideração da OMS de velhice como doença?
A ver e refletir a partir dos tópicos a seguir.
Senescência e senilidade
Seja na natureza ou na filosofia, a vida é uma reta marcada pelas fases evolutivas de nascimento, desenvolvimento, maturidade, velhice e morte. Na natureza, numerosas espécies animais e vegetais são capazes de completar essa reta, e outras já morrem logo após a reprodução, sem atingir a velhice.
Se destacam nisso as espécies arbóreas: no extremo norte e nas savanas da África há ciprestes e baobás com mais de 4000 anos de idade, que resistem ao tempo e às intempéries. Há relatos de alguns ciprestes acima de 6000 anos, já incapazes de reproduzir.
Na espécie humana, cada vez mais capaz de sobrevida pela graça científica, a expectativa média global de vida gira em torno da sétima década, variando dos 50-60 anos nas nações mais pobres aos 80-90 das de alto IDH1. Coisa recente em toda a nossa história desde o nosso surgimento.
A expectativa geral de vida era de 30-40 anos nas regiões mais carentes, e 45-55 nas com alimento e água mais disponíveis o ano todo. Era muita sorte alcançar ou passar dos 60 anos. A longevidade só cresceu com as descobertas médicas (assepsia, antibióticos e outros, radiologia, cirurgia, TICs, etc.) e acesso público.
Instituições como o IBGE dizem que a "população brasileira envelheceu". Para a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), se a intenção é dizer que a idade de morte é maior, tal afirmativa está correta; mas se torna um erro se dissesse no sentido de "estar mais senil".
Isso porque a SBGG considera dois fenômenos, senescência e senilidade. Se define senescência o conjunto de alterações fisiológicas normais ao avançar da idade; e senilidade, o adoecer tendo na idade avançada o fator de risco chave.
A SBGG procura desfazer a confusa indistinção do senso comum de que senilidade, senescência e velhice sejam sinônimos. Além disso, na demografia, por população envelhecida também se entende menores índices de fertilidade e maior população idosa, sem tanto aumento na expectativa de vida.
A decisão da OMS
Segundo a OMS, a inclusão da velhice como doença na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) já é uma ideia construída desde 2010, mas vieram debates intensos que perduram arduamente desde então.
O CID é um catálogo internacional de doenças criado em 1900, e tem passado por atualizações periódicas, não necessariamente regulares. A atual é a 10ª edição; a 11ª está prevista para 2022, como fruto de vários ajustes. A inclusão da velhice está prevista nessa nova edição.
Os debates evidenciam a polêmica da decisão, ao explanarem sobre vários aspectos ligados à 3ª idade. Entre os aspectos, novos preconceitos a ver na velhice algo contra a renovação natural e o risco sobre os direitos nessa fase, como já se observa no Brasil, apesar do Estatuto do Idoso.
No Brasil, o citado Estatuto não impediu as estratégias retrógradas bolsonaristas que abaixaram o IDH médio e retraíram, junto à omitida C19 e à violência crescente, a expectativa média de vida da população em geral em 2 anos.
Mas, vale tentar compreender a decisão da OMS a partir dos supracitados conceitos da SBGG de senescência e senilidade. É possível que tenha surgido com base no conceito patológico da senilidade, que tem aceitação internacional, a partir da própria OMS como referência-padrão.
Além do conceito acima, a decisão da OMS também deve ter se centrado no conceito sindêmico, em que a prevalência de patologias na velhice é altíssima e crescente, contrapondo-se à dificuldade, também crescente, de acesso à saúde pública pela maioria dos idosos, e o achatamento de benefícios previdenciários e sociais.
As explanações, entretanto, não impedem as críticas, que apontam outros riscos além dos citados acima.
Reflexão final: críticas à decisão
Apesar da justificativa de prevalência crescente de patologias acompanhantes da velhice e maior parte da população idosa ter dificuldade de acesso à saúde pública, a decisão da OMS é criticada por especialistas em gerontologia e em saúde pública.
Os motivos apontados são "preocupação com o risco de mascaramento dos problemas de saúde reais para a terceira idade, aumentar o preconceito contra idosos e interferência no tratamento e em pesquisa de enfermidades, bem como na coleta de dados epidemiológicos relativos a essa fase".
Além disso, 3/4 das mortes não violentas no Brasil ocorrem a partir dos 60 anos por doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs - cardiovasculares, neurológicas, metabólicas). A patologização oficial da velhice pela OMS poderia ocultar os dados mortis e epidemiológicos das DCNTs, informes tão fundamentais para a saúde pública.
Outra importante crítica aponta que a velhice não traz obrigatoriamente alguma patologia, como o exemplo de centenários que morrem de "causa natural", ou seja, idade limítrofe pessoal. Assim, a velhice se prova não como doença, mas como uma condição inerente ao indivíduo.
Vale salientar que o conceito de idoso é bastante heterogêneo entre os países: se no Brasil já se considera idoso maior de 60 anos, e na Itália, maior de 75. Dois exemplos díspares, capazes de gerar conflito importante contra a OMS.
E, enfim, a população idosa (e centenária) cresce em todo o mundo. No Brasil também cresceu. E nela há importante parcela sem patologias. Esse fato por si só já se atesta como o maior desafio para a decisão da entidade.
Quem concorda é possivelmente um grupo muito limitado, talvez adstrito à equipe de Bolsonaro. Uma sectária do ministério da Economia disse "ser bom matar idosos", o porquê já sabemos. Tempo depois, sobre benefícios, Paulo Guedes criticou: "os brasileiros querem viver 120 anos. Pra quê?".
Será que a OMS vai concordar com Guedes e o resto da equipe bolsonarista?
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Imagem: Google
Notas da autoria
1. IDH, índice de desenvolvimento humano, ligado às ações públicas de assistência. Quanto mais presente o Estado, maior é o índice. O IDH varia de 0 a 1, sendo altos valores próximos a 1. Apesar da suspensão do senso 2021, a crescente miséria atesta retração da média do IDH brasileiro.
2.
Para saber mais
- https://extra.globo.com/noticias/saude-e-ciencia/velhice-sera-classificada-como-doenca-pela-oms-especialistas-criticam-rotulo-25054509.html
- https://www.sbgg-sp.com.br/senescencia-e-senilidade-qual-a-diferenca/
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