Análise: Revolta popular e olhares em Cuba
Nesses dois últimos dias, entre muitos fatos relacionados com a sindemia de C19 e questões econômicas, um novo fato fez com que o mundo voltassem os olhos para um país que andava relativamente secundarizado: Cuba.
Os fatos se referem à explosão de manifestos populares contra o governo Miguel Díaz-Canel, que sucedeu Raul Castro, o irmão que ocupara interinamente o posto de Fidel, afastado por problemas de saúde e depois falecido.
Os manifestos populares em Cuba chamam a atenção por, assim como a velha mística do próprio país, invocarem declarações em sua maioria mal informadas a respeito da realidade enfrentada pelo povo cubano e suas relações com o governo.
Os manifestos vêm sendo bastante reprimidos, tal como aqui no Brasil de Bolsonaro e qualquer outro país parecido. E agora, a internet foi cortada, para que novas imagens e vídeos não caiam nas redes sociais, locais onde a rebeldia foi planejada, a partir de vilarejos.
Devido ao corte da internet cubana, este artigo visa analisar com base em informes disponíveis no momento, com o devido filtro devido aos vieses de diferentes mídias.
Causas possíveis dos protestos
Todos sabemos que Cuba sofre com embargos econômicos impostos pelos EUA desde 1961, ainda que a mídia da casa grande prefira se silenciar sobre isso, preferindo se referir, com sutileza pejorativa, à influência do regime castrista, considerado comunista, na vida do povo.
Por outro lado, mídias de viés mais à esquerda enfatizam o embargo estadunidense como fator da crise atual, tomando com frequência as dores do governo castrista. Mas, ambos os vieses se distanciam muito da necessidade de enxergar o real, a soma de fatores internos e externos dessa crise.
Há crença de silêncio absoluto imposto pelo governo aos cubanos. Um erro: nos anos 1990, Fidel se deparou com revolta popular contra medidas econômicas austeras. A motivação atual é semelhante, sem descartar o embargo estadunidense e as contradições internas. Vamos aos tópicos.
C19- desde os primeiros casos em março/20, o governo lançou medidas como restrição do turismo e profilaxia, com sucesso inicial, e pesquisas com um tipo de interferon e as vacinas Siberana e Abdala, ainda não autorizadas pela OMS para uso pleno. Agora há novo surto de variante, com mortes.
Não foram divulgados efeitos das vacinas, mas o governo afirma que a imunização se completa em duas doses. Por causa delas, não se divulgou mais nada sobre o interferon para o tratamento da C19.
Itens básicos- Cuba enfrenta oferta bem racionada de itens básicos desde o embargo. O problema agora é a escassez, junto a consequências socioeconômicas ligadas ou não à sindemia de C19, entre elas a diminuição do poder de compra popular. Com o recrudescer da C19, hospitais estão em colapso.
Economia- em 1/1/2021 o governo lançou uma reforma cambial que adensou o peso conversível (CUC) equivalente ao dólar, ao peso circulante (CUP), 24 por US$ 1. A população teve seis meses para migrar para o CUP. Foi uma medida consequente à recente crise vivida pelo país junto à C19.
As duas moedas surgiram de reforma nos anos 1990 para melhorar a economia popular e também a produção empresarial sem prejudicar a linha igualitarista do governo via subsídios. Mas o país sentiu os impactos com o tempo, com desgaste nos cofres públicos. Para compensar, impostos subiram.
O adensamento para CUP foi tentado para corrigir distorções, mas com a crise socioeconômica recente, alta carga tributária e C19 voltando, o povo sentiu forte baque até explodir em revolta.
Política- é o tema mais explorado pela grande mídia. Parte importante da população se opõe a um autoritarismo retrocedente e reivindica medidas progressistas. Há uma minoria, inclusive, que requer abertura capitalista. Fortes evidências de uma população com diferentes matizes político-ideológicos.
A reprovação da população à política vigente é notória. O alvo desse reprove é o regime duro que não dialoga com representações populares, evidenciando não haver, de fato, comunismo em sua real essência - que nunca foi, de fato, posto em prática.
Desmistificando o regime castrista
Cuba é uma ilha tropical caribenha que desperta polêmica. É amada e odiada, mas principalmente mistificada, após a Revolução castrista de 1959, que depôs o presidente pró-EUA, o militar Fulgêncio Batista, que governava com punho de ferro para a elite rural e urbana da época.
Batista fez de Cuba o destino turístico dileto dos estadunidenses, com jogos de azar, drogas com a máfia dos EUA, prostituição desregrada, às custas da população entregue à própria sorte na economia estagnada, violência urbana e rural, desigualdade socioeconômica atroz, miséria, fome, mendicância.
Ao povo pobre do interior, grupos guerrilheiros armados se juntaram para uma revolução popular capaz de derrubar Batista. Esta revolução foi liderada por um nome que virou ícone da história cubana: Fidel Castro.
A tomada de poder por Fidel foi violenta. Batista, familiares e apoiadores da elite fugiram para os EUA. Opositores políticos que ficaram foram presos e/ou mortos. Fidel impõe um regime duro, com amplo apoio popular, que se revelaria francamente compreensível devido às profundas mudanças.
O novo governo impõe reforma agrária, nacionaliza sedes industriais estrangeiras, universaliza a oferta de serviços públicos essenciais, criminaliza o desemprego e jogos de azar, e amplifica recursos para pesquisas em saúde pública, explicando a sua fama no mundo.
Tornada ilegal, a prostituição é mitigada. A população de rua é posta em abrigos. Em duas décadas a geral de 7 a 15 anos está alfabetizada e não havia mais crianças na rua. O Estado ateu não inibiu a religiosidade cubana, principalmente católica e afro.
Assim surge a controversa Cuba de Fidel, um ditador ovacionado por seu povo, tendo como capital a Havana histórica com os carrões dos anos 1940-50, herança de tempos idos, hoje ingredientes tão essenciais ao turismo, principal fonte de divisas local, hoje prejudicado com a C19.
Embora tratado pelas nações pró-EUA como comunista, o castrismo é versão tropical do modelo soviético de capitalismo estatal com viés de políticas socialistas. Bem diferente do conceito e objetivo do comunismo pensado por Marx e Engels.
Embargo ou bloqueio? Breve resumo
Em 1961, os EUA tentam invadir Cuba pela Baía dos Porcos para depor Fidel. Como fracasso, impõem então o embargo econômico a Cuba. O povo passou a viver uma vida racionada, que a URSS mitigou enviando alimentos, insumos de fármacos, vestuário, etc., além de armamentos.
Décadas depois, Fidel Castro se afasta do governo e vem o irmão Raul, que encontraria depois o ex-presidente dos EUA Barack Obama. O mundo esperou pelo fim do embargo, o que não aconteceu. Sucessor de Obama, Trump estendeu o embargo à Venezuela de Nicolás Maduro.
Muitos entendem o embargo como bloqueio, por impedir relações comerciais de Cuba com outros países. Mas é embargo por interromper o que já ocorria. Pela natureza político-ideológica, a ONU o vê como violação de direitos humanos análoga às cometidas por ditaduras, com consequências sociais e econômicas. No mundo, apenas Israel e Brasil de Bolsonaro são favoráveis ao embargo.
Na mesma praia antes invadida, os EUA construíram a prisão de Guantánamo, que alojou durante décadas presos acusados de terrorismo em terras estadunidenses. Herança da guerra fria, hoje está desativada.
Outras considerações por trás: reflexões finais
Que Cuba não difere de nenhum outro país do mundo por ter seus problemas e contradições, disso ninguém duvida. É algo normal, devidamente humano por natureza. Nenhum regime de governo que se faça prático tem 100% de coerência, porque todos nós temos contradições.
O governo sempre deu cobertura universal de bons serviços públicos; por outro lado, optou por fechar a janela de diálogo com a população, riscando de sua linguagem o mais nobre significado de democracia participativa, e reforçando lá fora a velha imagem de regime totalitário.
Essa imagem tem sido largamente vendida pelos protagonistas do decenário embargo pelos EUA, para justificar o seu feito. Todavia, nada disso justifica essa intervenção cruel que somente atinge um povo rico em cultura, história e musicalidade.
Na opção pelo não-diálogo, os governos de Cuba e Brasil de Bolsonaro se parecem. O discurso de Diaz-Canel e as aglomerações ou lives ocasionais de Bolsonaro não são dialógicos, mas eleitoreiros. E perdem por isso.
Muitos se perguntam se o capitalismo seria a salvação de Cuba. O exemplo do Brasil claramente aponta um sonoro NÃO, daí o capitalismo não ser a via correta. Até pelo contrário. O embargo está aí para reforçar essa negativa.
Em paralelo ao embargo, importa mais ao governo cubano encarar os seus próprios erros e buscar uma solução viável e inteligente, que não se encontra em discursos de palanque a condenar os EUA, assunto restrito a se resolver em outra esfera.
A solução está no governo se aproximar da população para resolver, de maneira copartícipe, os problemas internos, através de processo democrático participativo. Sendo os cubanos em sua maioria não capitalistas, o governo tem a faca e o queijo na mão. Resta ter inteligência e boa vontade política.
O resto vem depois, são consequências, que podem ser muito boas.
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Imagem: Google
Notas da autoria
1.
Para saber mais
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Castrismo
- https://www.poder360.com.br/internacional/veja-imagens-dos-protestos-em-cuba/
- https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/apagoes-inflacao-e-pandemia-a-verdade-sobre-a-crise-cubana-que-tem-origem-no-bloqueio-economico-dos-eua.html
- https://brasil.elpais.com/internacional/2020-12-11/cuba-realiza-a-unificacao-monetaria-adiada-ha-anos-e-aprofunda-sua-reforma-economica.html
- https://brasil.elpais.com/internacional/2021-07-12/protesto-iniciado-em-dois-municipios-de-cuba-ameaca-com-acender-a-revolta-no-pais.html
- https://brasil.elpais.com/internacional/2021-04-16/cuba-se-debate-entre-a-continuidade-e-a-mudanca.html
- https://exame.com/mundo/depois-de-protestos-em-cuba-governo-reforca-patrulhas-policiais/
- https://www.cut.org.br/noticias/o-que-esta-por-tras-dos-protestos-em-cuba-7b56
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