Análise: indígenas, governo, STF e igrejas
Esses dias, milhares de indígenas marcharam para Brasília a fim de reivindicar seus direitos. Não é a primeira vez que eles vão para a capital fazer seus protestos, pois desde que o governo Bolsonaro se instalou, muitas têm sido as ameaças redobradas à sua sobrevivência e a dos locais que habitam há mais de cinco mil anos.
A reivindicação mais relevante pela mídia tem sido a demarcação de novas terras, mas há outras. Só a demarcação propriamente remete a outras, baseadas em criminalização dos autores de invasões das já demarcadas para fins escusos - um ponto muito caro ao governo. Mas atinge também o STF.
O megaprotesto dos povos originários, que já estava planejado antes, tem mais a mostrar por trás dessa principal reivindicação. Pois a demarcação de terras tem implicações várias sobre as quais vale a pena trazer reflexões importantes.
Quando a coisa começou
Ainda candidato à presidência, Jair Bolsonaro, em um evento público, disse à plateia selecta de fazendeiros e empresários do agro: "Tem terra demais pra índio não fazer nada, isso é um absurdo! Se depender de mim, índio não terá nem um centímetro de terra!", e foi, claro, aplaudido pelos presentes.
De fato, desde o dia de sua posse Bolsonaro não demarcou um centímetro de terra nova, liberou geral para latifundiários, grileiros, madeireiros e garimpeiros invadirem as terras já demarcadas, e ainda ferrou com a reforma agrária, ao arrepio da Constituição e das leis complementares inerentes.
A supracitada declaração acabou mexendo com os brios de vários movimentos sociais, e também de dois grupos que Bolsonaro até hoje não se cansa de subestimar, mesmo por eles tão perturbado: os indígenas e, agora, o STF.
O tema central atinente à declaração é muito caro aos povos originários: a demarcação de terras.
Demarcação: um tema bem complexo
A política de demarcação de terras indígenas começou com os sertanistas irmãos Villas-Boas, nos anos 1950-60. Eles idealizaram a primeira demarcação, sucedida no Parque Nacional do Xingu. Daí, outras vieram, com bom impulso após a ditadura empresarial-militar (1964-85).
Durante a ditadura, biomas importantes como Amazônia, Pantanal e Mata Atlântica sempre foram cobiçados por sua riqueza de recursos, entre eles a água, sendo por isso as áreas mais críticas no tema da demarcação. Explicam-se aí algumas missões cristãs, perseguições e matança de indígenas.
Com a Constituição, promulgada em 5/10/1988, veio o Marco Temporal, que define como terra indígena as áreas reconhecidas até a citada data, contrariando a própria Carta no art. 231, que prevê os índios como donos permanentes de suas terras, "demarcadas ou não", e 232, que estabelece os direitos sociais deles.
Em 2017, quando o Marco surgiu na mídia após algum tempo, os constituintes de 1988 ressaltam os direitos constitucionais de os índios serem os donos permanentes de suas terras, e a preservação da sua identidade ancestral, que nunca deixou de ser ameaçada por atores diversos.
Na atmosfera de ódio bolsonarista, os direitos dos indígenas à sobrevivência de sua identidade ancestral estão ainda mais ameaçados, a começar pelas mais bem armadas milícias evangélicas, que têm impulso governamental de atingir os povos isolados, que conservam intactas as suas identidades.
Entende-se aí o valor da demarcação: mais do que a posse permanente da terra, ela em tese tem efeito protetivo socioambiental originário, ou seja, através de suas tradições e ritos ancestrais os índios se apossam da terra como guardiões conservacionistas, e nela se preservam etnicamente.
STF- Em sua função de representação constitucional. a instância máxima do judiciário brasileiro assumiu o mister de analisar, julgar e votar o Marco Temporal, cuja derrota os movimentos de esquerda e os indígenas, desejam.
Excitado na expectativa de suposto "golpismo" de 7/9 com apoio dos latifundiários, e também por conta das pressões dos indígenas e da maior parte da sociedade, Bolsonaro afirma a "necessidade do Marco Temporal" como ferramenta para "evitar o caos". Só não explica que caos seria esse.
Mas, Bolsonaro é nada para os ministros do STF, diante da pressão internacional que paira sobre eles. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ONU e ONGs apontam que a manutenção do Marco como argumento jurídico amplifica mais violações aos direitos dos povos originários.
Ciente dessa pressão, a ex-ministra do MMA Marina Silva vê esse momento como muito oportuno ao STF para rechaçar o Marco, podendo "fazer justiça aos indígenas" dissolvendo a chance das medidas do governo Bolsonaro que limitam o direito dos originários à terra e chancelam criminosos.
Reflexões finais
A declaração de Marina Silva é muito pertinente nesse sentido. Ela entendeu com propriedade que o apoio de Bolsonaro ao Marco serve para facilitar toda sorte de investida sobre as terras indígenas e à vida dos povos originários.
Claro que, dada a sua fé religiosa, é muito possível que Marina exclua do rol dos criminosos as missões que abrem alas dos desatinos a partir da evangelização dos indígenas (forçada às vezes) que os torna mais maleáveis a ceder suas terras aos grupos exploratórios criminosos.
Juridicamente, o Marco aparentemente contradiz a personalidade cidadã da Constituição ao não reconhecer a posse da terra pelos indígenas após 5/10/1988. É como se as demarcações pelos governos posteriores a 1988 não fossem válidas. Daí vem a pressão, interna e internacional, sobre o STF.
Dizem que mesmo os tiranos podem fazer algo positivo. O que pode até caber em Bolsonaro. O que ele conseguiu fazer é dar mais visibilidade aos nossos índios. Ao subestimá-los, acabou mexendo com quem estava (mais ou menos) quieto.
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Imagens: Google (montagem: autora do artigo)
Notas da autoria
1.
Para saber mais
- https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/08/24/indigenas-protestam-em-brasilia-contra-medidas-que-dificultam-demarcacao-de-terras.ghtml
- https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/08/25/indigenas-voltam-a-protestar-em-brasilia-contra-marco-temporal-para-demarcacao-de-terras.ghtml
- https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-04/povos-indigenas-conheca-os-direitos-previstos-na-constituicao#:~:text=A%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20de%201988%20estabeleceu,da%20popula%C3%A7%C3%A3o%20ind%C3%ADgena%20no%20Brasil.
- https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-04/povos-indigenas-conheca-os-direitos-previstos-na-constituicao
- https://www.youtube.com/watch?v=1ZNgLqFVcxc
- https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/08/25/stf-enfrenta-pressao-internacional-por-questao-indigena.htm
- https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2021/08/25/marina-silva-supremo-tera-oportunidade-de-fazer-justica-aos-indigenas.htm?utm_source=chrome&utm_medium=webalert&utm_campaign=politica
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