A desigualdade sempre foi tema tradado com cautela pela mídia da casa grande. Na ditadura, os detalhes eram mais acobertados e receitas culinárias, esportes e fofocas de celebridades dominavam as páginas e os telejornais, junto ao noticiário internacional sobre EUA x URSS.
Tudo porque falar da desigualdade requeria cuidado extremo para escapar aos olhos da censura, e nisso a grande mídia foi mestre, explorando os flagelos sem afetar a real selvageria dos grupos elitistas que vivem de raspar o pouco que resta das merrecas das classes populares.
Tamanha precaução residia em um fator: a perversa aliança entre militares, a CIA e vários segmentos da elite em nome de uma economia muito liberal com manutenção do Brasil na dependência econômica com geração de títulos públicos para o pagamento da impagável dívida externa.
Só no pós-ditadura a desigualdade viria a ser explorada com maior amplitude, mas valendo a manutenção de todo o cuidado cosmético em relação à elite, evitando-se expor a sua parcela de responsabilidade pelas mazelas sociopolíticas e econômicas do país.
Mesmo agora, que o Brasil alcança marca histórica de concentração econômica, com poucos tendo a renda inteira dos 100 milhões de populares, ainda há preocupação da grande mídia em tratar do tema, mesmo com riqueza de detalhes, sem ofender a elite.
Fator histórico: breve análise
A redemocratização deu liberdade para informações antes escondidas. Entre elas, a origem de nossa elite via compra de títulos de nobreza com recursos preciosos roubados ou extraviados, iniciada ainda na colonização. Essa construção da elite brasileira é hoje consenso entre os historiadores.
A elite de funcionários públicos da Coroa, formados pela primeira universidade brasileira, veio depois. Filhos dos nobres descendentes dos ladrões de antes, aprimorariam os vícios éticos para obter vantagens: surgiria a hoje conhecida carteirada, hoje muito praticada por policiais, por exemplo.
Embora haja discordância na responsabilidade da elite no exemplo da carteirada, sua prática por funcionários da Coroa já era praxe. Daí a discriminação atual contra servidores públicos, e assimilação da prática entre populares para minimizar dificuldades1 ou por sobrevivência.
Praticada para minimizar dificuldades ou por sobrevivência, a malandragem popular talvez tenha sido comum para enfrentar os reveses do escravismo.
Escravismo- destacou a forte divisão de classes e uma elite pedante, com reflexos no cotidiano atual, permeados nas relações de cor e classe social. Daí tantos assédios em ambientes de trabalho e crimes de ódio, impossíveis de serem combatidos.
Em seu livro 'Escravidão', Laurentino Gomes cita a teoria de Donald Ramos de que a alforria foi instrumento irônico do sistema escravista, como uma gratidão ao liberto por "serviços prestados e pela aceitação dos valores fundamentais do mundo luso-brasileiro". Veja-se, aí, a cultura dominante.
Cultura dominante
É sabido que no amplo contexto há o domínio de uma cultura elitista em todas as esferas sociais, infiltrado também nas comunidades populares periféricas. De educação historicamente mal investida, o Brasil é fértil para o forte elitismo, de "dois pesos, duas medidas"2. Se a elite tem vantagens à margem da lei "para todos", não surpreende os populares serem malandros.
São elitistas a defesa midiática da economia liberal/neoliberal infiltrada em temas sociopolíticos; a ênfase publicitária em aplicações financeiras, saúde e educação privadas, reformas impopulares e privatizações, e também a maquiagem dos grandes impactos econômicos dos privilegiados.
Apesar de tão internalizada, a visão elitista é às vezes questionada, mas sem mudar o stablishment, um sistema forte, bem organizado e onipresente em que nos inserimos, "mesmo sem querer".
Reflexões finais sobre uma elite contradita
É interessante que, mesmo que esteja em uma bolha que exclui todos os demais grupos sociais, a elite econômica, que também é cultural e política, dependa de toda a sociedade para manter o status quo generalizado. Há vários exemplos ilustrativos, permeados nas relações de classe.
Mídia- Como já mencionado, a grande mídia trabalha no reforço à manutenção da sociedade segmentada por faixas de renda para manter o status quo das relações de classes evitando-se possível competitividade pela melhora de renda pelas classes mais baixas.
Serviços públicos essenciais- desigualdade no fornecimento de saúde, educação e segurança aguça a dominação de classe, e o mau investimento aos mais pobres impede sua ascensão social. As tímidas políticas sociais na era PT3 vêm sendo combatidas, tendo-se por trás movimentos da elite cooptando classes médias abastadas para o poderio anarcocapitalista da extrema-direita.
Domésticos- famílias de classe média-alta têm ao menos um empregado e as mais ricas se cercam de vários, com funções distintas. Em geral, os domésticos são negros e pardos, com baixos níveis de qualificação escolar e moram em periferias pobres.
Algumas "favelas" estão ao lado de condomínios de luxo aos quais os moradores prestam seus serviços. Um muro alto impede a visualização de paisagens díspares. Por trás dessa facilidade aparente aos "favelados", os condôminos os vigiam, chamando a polícia quando conveniente.
Outros detalhes poderiam ser postos, mas foram poupados para não delongar mais ainda o texto, e os supramencionados já são suficientes para se expor uma característica que, para satisfazer seus interesses, revela a elite: a sua perversidade mesquinha e dependente.
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Imagem: Google (charges)
Notas da autoria
1. Extensivas aos reveses comuns ao escravismo.
2. Política de tratamento diferenciado (para brancos e não-brancos; para ricos e pobres; para hetero e homossexuais; para cristãos e não-cristãos, etc.), em várias esferas da vida social.
3. As políticas petistas de ascensão social serviram para ampliar o contingente de consumidores de bens e serviços, mantendo o capitalismo incólume.
Para saber mais
- https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2021/04/analise-o-novo-brasil-embrutecido.html
- https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2021/05/analise-o-escravismo-nao-acabou-em.html
- https://maquinandopensamentos.blogspot.com/2021/03/reflexao-escravismo-moderno.html
- https://pilulas-diarias.blogspot.com/2021/03/130-anos-depois-da-abolicao-mentalidade.html
- http://pilulas-diarias.blogspot.com/2021/08/a-alforria-como-engrenagem-da-escravidao.html
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