domingo, 12 de setembro de 2021

Análise: a culpa do voto identitário

 
        Os fatos ocorridos desde o início do governo Bolsonaro, em especial no que se refere àqueles identificados com a ideologia bolsonarista, têm chamado novas atenções dos antropólogos sociais que discutem muito sobre a formação das tribos urbanas.
        As tribos urbanas se distinguem em especificidades como etnia, cultura, fé, gênero musical, vestuário, sexualidade, etc., e se formam pelo que os estudiosos chamam de inserção por identidade: por afinidade ou familiaridade afetiva.
        Processo de fundo biológico culturalmente moldável, a identidade sempre se recicla ao longo da vida, pois o meio urbano se modifica, e procuramos nos adaptar às mudanças para sobreviver.
        Mas, pelo menos a partir da era tardia, com intensidade crescente, se descobre uma nova face do fenômeno de identidade grupal: o fator político-ideológico. Não que seja em si uma novidade, mas se observa uma linha comportamental nova, que passaria a ser chamada de identitarismo.

Identitarismo

        Se a identidade é o processo que leva à inserção em grupo social específico através de afinidade ou familiaridade, guiado pelo instinto gregário do homem, o identitarismo é a derivação mais profunda da identidade, que pode assumir um caráter político-ideológico. Vamos a um exemplo.
        No censo demográfico brasileiro, a população de pele escura é definida como preta. Por sua vez, o termo negro, que significa negro enquanto cor, passa a simbolizar a identidade histórica e cultural da população descendente dos africanos escravizados. Daí o movimento negro.
        A pessoa preta consciente da sua ascendência étnica-cultural africana assume a identidade negra, enquanto o identitarismo negro é a politização dessa identidade, para fim educativo ou de luta contra o status quo de desigualdade. 
        Aliás, o identitarismo negro tem sido alvo de debates, em especial sobre a designação de objetos (p. e., criado-mudo1) e o uso negativo do termo negro (humor negro, denegrir, etc.). O indígena pode entrar nesse terreno, na intenção de destruir a má associação com a indolência (aversão ao trabalho).
        O identitarismo é polêmico. Alguns nomes o veem como contraponto à imposição da referência branca, masculina e cristã no Ocidente, na intenção de mostrar que ela é majoritária, e não a única a caracterizar uma sociedade ou civilização inteira.
        Mas há nomes que o veem negativamente, como o professor e influencer Paulo Ghiraldelli, que condena o frequente caráter autoritário e radical, portanto, mais próximo da direita fascista do que propriamente da esquerda democrática, contrariando a identidade política das lideranças radicais.
        A lógica de Ghiraldelli se liga na sensação de patrulha que pode ser observada, por exemplo, nas correções das lideranças dos movimentos negros nos fatos supracitados, ou na indignação feminista a julgar como assédio certas cantadas elogiosas dos homens.
        A patrulha se concretiza a partir do momento em que tolhe a liberdade de alguém ou de um grupo. Os exemplos supramencionados revelam o tipo linguístico, que é o mais comum e tende a reduzir a já empobrecida média vocabular brasileira. 
        Há outros tipos de patrulha também, como a censura (sigilo) e a física.

Uma reflexão final: o identitarismo bolsonarista

        Se o identitarismo se define a partir de uma retórica politizante de uma identidade, vale salientar então o identitarismo político. 
        Assumindo seu caráter político-ideológico atual, o bolsonarismo pode ser compreendido como forma específica de identitarismo, pois deriva da radicalização da identidade de eleitores e fãs com os ideais, princípios e preconceitos de Jair Bolsonaro, hoje alçado à presidência da República.
        O forte republicanismo petista renovou grupos de direita, e daí surgirem os cristonazifascistas a requerer autoridade que agregue religião, política e militarismo. Bolsonaro foi a referência escolhida, e logo veio o preço: a sua eleição abriu a caixa de Pandora autoritária e psicopática, o bolsonarismo.
        A parcela arrependida de Bolsonaro se defende ao dizer que "não imaginava" que haveria tantas revelações claras de crimes de responsabilidade, indecoros, e pior, corrupção - mote de base de toda a direita, além do bolsonarismo. E arrependimento é nada mais que a revelação da própria culpa.
        Entre os com amplo acesso à informação e aos populares previamente avisados por terceiros, a escolha foi voluntária, o que impede retirar deles o peso da culpa. Exceção só cabe aos moradores de áreas dominadas por milícias que nele votaram por sobrevivência, sua e de suas famílias.
        Pelo menos os arrependidos reconheceram seu erro. O consolo é não estar mais entre os gados bolsominions, casos perdidos. Mas, infelizmente veio tarde: estamos todos agora coletando os frutos podres do punhado de árvores podres que agora tomou Brasília de assalto.
        Dai entender a razão de Ghiraldelli, sobre o perigo do identitarismo. Fica o aviso às lideranças de siglas de esquerda: cuidado com suas turmas de identitários.
        
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Imagem: Google

Notas da autoria
1. Criado-mudo era o escravo que, durante a noite, ficava ajoelhado ou sentado ao lado da cama de seus senhores segurando os objetos deles. Se fosse pego dormindo, era castigado.

Para saber mais
        
        

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