terça-feira, 26 de outubro de 2021

ANÁLISE: a fome pelo agronegócio - e os agrotóxicos

 

        Não faz muito tempo que o canal de esquerda Meteoro Brasil, no Youtube, apresentou um vídeo sobre a relação entre o uso de agrotóxicos e o aumento da situação de fome no Brasil. A dupla jornalística Álvaro Borba e Ana Lesnovsky, que capitaneia o canal, apresentou essa relação de forma interessante, que interdepende a biota, o meio abiótico e a ação humana. E aqui caberá mais uns adendos. 

Evolução da agricultura

        Definida como o conjunto de atividades para a produção alimentar, a agricultura se iniciou no Neolítico inferior (±15 mil anos) e por muitos séculos seguiu os ciclos sazonais: alguns alimentos eram de primavera-verão, e outros de outono-inverno, daí a baixa produtividade, que sacrificava os mais pobres para alimentar as classes medianas, religiosos, nobres e governantes.
        Mais tarde, com as descobertas químicas, em especial na orgânica, e depois na biologia (genética) no século XIX, a ciência abriria portas para atender ao desejo humano de aumentar a produtividade agrícola para poder alimentar maior número de pessoas. Com os primeiros experimentos com plantas tóxicas, surgiriam os primeiros agroquímicos.
        Tais compostos eram extraídos de plantas capazes de repelir ou matar animais daninhos e parasitas na lavoura e na pecuária, respectivamente. Da planta Piretrum derivariam os piretroides sintéticos dos inseticidas atuais, e das usadas para o gado viriam os antiparasitários de hoje. Depois viriam os herbicidas e, finalmente, os antibióticos.
        O surgimento secular da indústria química e farmacêutica antecede a de automóveis e tratores. Estes vieram para ajudar os agroquímicos, que seriam aspergidos nas culturas pelos primeiros pulverizadores. Surge aí a agricultura mecanizada, que gerou empregos no campo. O melhoramento genético na lavoura e pecuária produziu variedades mais resistentes à ação do tempo e a doenças, e ainda mais produtivas do que as originais.
        Tudo isso gerou uma simbiose econômica, que refletiu no aumento considerável da produtividade agrícola, e daí, na lucratividade das indústrias envolvidas. Com os posteriores investimentos públicos, a imagem do produtor rural humilde, com enxada ou arado, cedeu lugar ao chapéu de latifundiário bordado com o cifrão da riqueza: surge o agronegócio (agrobusiness, em inglês).
        Agronegócio- deriva da ‘Revolução Verde’, como foi batizado o boom agrícola ocorrido nos anos 1980. A julgar pelo nome, ele surge para gerar divisas de grande volume, através da megaprodução visada para exportação e importação. Hoje ocorre no mundo todo, com forte desenvoltura em países em desenvolvimento – as explicações virão.

Um paraíso agrícola chamado Brasil

        "Em se plantando, tudo dá". O Brasil é a terra “abençoada” pela natureza por ter até três colheitas anuais. A tropicalidade climática reinante permite maior disponibilidade alimentar. Até hoje, a maior parte da patuleia se alimenta do oriundo de produtores de pequeno e médio portes, em grande parte cooperativados, que também usam agroquímicos e tratores para produzir mais.
        Embora alguns produzam o suficiente para exportação (geralmente grãos), a maior parte se volta para o mercado interno. A insegurança alimentar deriva da grave desigualdade originada de más políticas econômicas, e não por suposta indisponibilidade de alimentos: eles estão disponíveis, mas muitos não têm acesso.
        Mas, como país estratégico no cenário econômico global, o Brasil se tornou também um paraíso para o agronegócio que, por seu turno, não é unânime em matéria de opinião popular e de analistas. Até por conta de suas consequências socioambientais. Essa divisão opinativa tem suas razões, a serem bem explicadas a seguir.

        O agro é tech, mas não é pop- No capítulo da política fundiária, a Constituição de 1988 prevê o uso social da terra, que se define a destinação para uso alimentar para a nação, geração de empregos no campo e permitir uso de terras improdutivas por assentados visando a produção, sem prejuízo do meio natural, público e privado.
        Mas, isso esbarra na cultura do latifúndio, sintoma histórico do elitismo. A elite brazuca é originalmente rural e parte dela ainda o é: são os ruralistas do agrobusiness, que empregam jagunços para protegerem suas terras e até grileiros para apropriação indevida de outras terras visando expandir sua produção.
        Daí, ao contrário dos pequenos e médios produtores, a elite rural não faz bom uso social de suas terras, e são frequentes as denúncias de invasão ilegal (e violenta) de terras públicas preservadas (indígenas ou não) e de posseiros e assentados. Por isso, cresce a pressão sobre aqueles que alimentam a patuleia nacional.
        A grande mídia apoia sem pudor o agro como o grande propulsor da economia nacional, como forma de angariar entre os cidadãos a impressão de termos “a melhor agricultura do mundo”. O Brasil tem, sim, vocação agrícola imensa, mas vale refletir com frieza sobre as consequências da realidade por trás do agronegócio.
        Sociais- são vários: emprego de violência no campo (expulsão ou assassinatos diversos para apropriação indébita); mão-de-obra trabalhadora em situação irregular (sem EPIs, sem contrato trabalhista) ou escrava (sem alimento ou água, e exposição plena a animais perigosos por falta de abrigo adequado). Famílias expulsas de suas terras migram ou se agregam em movimentos organizados como MST para sobreviver; miséria e fome.
        Ambientais- em grande escala, degradação do meio físico (consumo de água e outros, incêndios, destruição de biomas para expansão ilegal de pasto ou plantio, mitigação da biodiversidade), químico (grande contaminação da água e do solo por agroquímicos), e climático (maiores emissões de gases-estufa como CO2 e metano). O agro é um dos fatores da progressiva savanização da Amazônia.
        Os agroquímicos são potentes contaminantes ambientais, daí serem agrotóxicos. E para Bolsonaro, quanto pior, melhor: mais de 500 deles, proibidos no resto do mundo, foram liberados aqui. E se prejudicam o meio ambiente, ferram a nossa saúde, afetando vários sistemas, principalmente o nervoso, o digestivo (hepatopatias), e podem ser carcinogênicos e até abortivos.
        Sim, abortivos. Em 2020 a mídia chegou a publicar alguns casos de abortos espontâneos, a princípio sem se saber do fator. Após minuciosa análise dos casos, como residências próximas a grandes campos de soja e outros ícones do agro, se soube da causa: o glifosato, agrotóxico muito apreciado pelos ruralistas.
        Estudos apontam que o Brasil perdeu até 16% de água doce em 30 anos, e o ecocídio de Bolsonaro pode estar acelerando o processo: os recordes destrutivos ocasionaram fenômenos climáticos incomuns neste ano, como secas prolongadas, tempestades de areia e irregularidade de distribuição e concentração de chuvas, com sérias implicações na produção alimentar.
        Econômicos- há duas linhas de análise: nos mercados destinatários e na disponibilidade alimentar.
        Sendo o principal mercado o externo, o que fica vai para polos industriais e o comércio. Os preços dos produtos afrontam a economia popular, mesmo na queda de exportações, e há locais onde “sobra gado e pasto e falta gente”.
        Na outra linha analítica está a relação disponibilidade alimentar e status ambiental e climático. É sabido que os fenômenos já citados afetam a produtividade regional, que poderá se tornar nacional se nada for feito para barrar o problema. E quanto menos disponível, mais caro, e com isso, mais miséria, fome e doenças.
        Já existem estudos que apontam haver uma íntima relação entre o uso de agroquímicos e as alterações ambientais que, pois muitos deles, mesmo tendo outras finalidades, afetam, direta ou indiretamente, as culturas. Em dois sentidos: os efeitos na bioquímica dessas culturas, levando à sua alteração genética ou morte; e a ação sobre insetos e outros animais benéficos.
        Por mais seletivos que sejam para eliminar as ervas daninhas, os herbicidas, em excesso, afetam as próprias culturas, podendo impactar a disponibilidade alimentar e macroeconômica. Eventos climáticos negativos apenas potencializam o estrago desses agroquímicos.
        Os inseticidas diminuem populações de insetos daninhos, mas também intoxicam ou matam os que mantêm as culturas pela polinização, ou esparrame das sementes por fazes, patas ou bicos. Apesar de mais efetivos do que o controle biológico, esses agroquímicos minam a biodiversidade por afetar animais que comem os daninhos.
        Os fungicidas são igualmente perigosos, pois não são muito seletivos, minando também fungos benéficos à proteção das culturas e à fertilidade dos solos, o que também contribuem contra a biodiversidade.

        Nessa reflexão sobre os males dos agroquímicos, vale ressaltar que, se usados em quantidades menores, eles podem ser inócuos à saúde humana e não afetar tanto a biodiversidade e, em logo prazo, a disponibilidade alimentar. Só não ajudariam a minimizar ou combater a violência e as irregularidades no campo.
        Pois nesse campo, entra outro assunto de extrema relevância, que o governo fez questão de engavetar: a reforma agrária. A CF/1988 faz a sua parte. A grande mídia é também culpada ao omitir o protagonismo dos grandes ruralistas no ecocídio, na posse indébita de terras e de toda sorte de violações no campo e à natureza.
        É aí que o agrobusiness mostra a sua verdadeira face: ele não tem nada de pop, ele mata.

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Imagem: Google

Para saber mais
- https://www.inca.gov.br/exposicao-no-trabalho-e-no-ambiente/agrotoxicos
- https://exame.com/economia/imagem-do-brasil-no-exterior-preocupa-representantes-do-agronegocio/
- https://reporterbrasil.org.br/2020/07/como-o-agronegocio-atua-para-garantir-a-pulverizacao-de-agrotoxicos-pelo-ar/

        

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