Não
faz muito tempo que o canal de esquerda Meteoro Brasil, no Youtube, apresentou
um vídeo sobre a relação entre o uso de agrotóxicos e o aumento da situação de
fome no Brasil. A dupla jornalística Álvaro Borba e Ana Lesnovsky, que
capitaneia o canal, apresentou essa relação de forma interessante, que
interdepende a biota, o meio abiótico e a ação humana. E aqui caberá mais uns
adendos.
Evolução da agricultura
Definida como o conjunto de
atividades para a produção alimentar, a agricultura se iniciou no Neolítico
inferior (±15 mil anos) e por muitos séculos seguiu os ciclos sazonais: alguns
alimentos eram de primavera-verão, e outros de outono-inverno, daí a baixa
produtividade, que sacrificava os mais pobres para alimentar as classes
medianas, religiosos, nobres e governantes.
Mais
tarde, com as descobertas químicas, em especial na orgânica, e depois na
biologia (genética) no século XIX, a ciência abriria portas para atender ao
desejo humano de aumentar a produtividade agrícola para poder alimentar maior
número de pessoas. Com os primeiros experimentos com plantas tóxicas, surgiriam
os primeiros agroquímicos.
Tais
compostos eram extraídos de plantas capazes de repelir ou matar animais
daninhos e parasitas na lavoura e na pecuária, respectivamente. Da planta Piretrum
derivariam os piretroides sintéticos dos inseticidas atuais, e das usadas para
o gado viriam os antiparasitários de hoje. Depois viriam os herbicidas e,
finalmente, os antibióticos.
O
surgimento secular da indústria química e farmacêutica antecede a de automóveis
e tratores. Estes vieram para ajudar os agroquímicos, que seriam aspergidos nas
culturas pelos primeiros pulverizadores. Surge aí a agricultura mecanizada, que
gerou empregos no campo. O melhoramento genético na lavoura e pecuária produziu
variedades mais resistentes à ação do tempo e a doenças, e ainda mais
produtivas do que as originais.
Tudo
isso gerou uma simbiose econômica, que refletiu no aumento considerável da
produtividade agrícola, e daí, na lucratividade das indústrias envolvidas. Com
os posteriores investimentos públicos, a imagem do produtor rural humilde, com
enxada ou arado, cedeu lugar ao chapéu de latifundiário bordado com o cifrão da
riqueza: surge o agronegócio (agrobusiness, em inglês).
Agronegócio- deriva da ‘Revolução Verde’, como foi batizado
o boom agrícola ocorrido nos anos 1980. A julgar pelo nome, ele surge
para gerar divisas de grande volume, através da megaprodução visada para
exportação e importação. Hoje ocorre no mundo todo, com forte desenvoltura em
países em desenvolvimento – as explicações virão.
Um paraíso agrícola chamado Brasil
"Em se plantando, tudo dá". O
Brasil é a terra “abençoada” pela natureza por ter até três colheitas anuais. A
tropicalidade climática reinante permite maior disponibilidade alimentar. Até
hoje, a maior parte da patuleia se alimenta do oriundo de produtores de pequeno
e médio portes, em grande parte cooperativados, que também usam agroquímicos e
tratores para produzir mais.
Embora
alguns produzam o suficiente para exportação (geralmente grãos), a maior parte
se volta para o mercado interno. A insegurança alimentar deriva da grave
desigualdade originada de más políticas econômicas, e não por suposta
indisponibilidade de alimentos: eles estão disponíveis, mas muitos não têm
acesso.
Mas,
como país estratégico no cenário econômico global, o Brasil se tornou também um
paraíso para o agronegócio que, por seu turno, não é unânime em matéria de
opinião popular e de analistas. Até por conta de suas consequências
socioambientais. Essa divisão opinativa tem suas razões, a serem bem explicadas a seguir.
O agro é tech, mas não é pop- No capítulo da
política fundiária, a Constituição de 1988 prevê o uso social da terra,
que se define a destinação para uso alimentar para a nação, geração de empregos
no campo e permitir uso de terras improdutivas por assentados visando a
produção, sem prejuízo do meio natural, público e privado.
Mas,
isso esbarra na cultura do latifúndio, sintoma histórico do elitismo. A elite
brazuca é originalmente rural e parte dela ainda o é: são os ruralistas do
agrobusiness, que empregam jagunços para protegerem suas terras e até
grileiros para apropriação indevida de outras terras visando expandir sua
produção.
Daí,
ao contrário dos pequenos e médios produtores, a elite rural não faz bom uso
social de suas terras, e são frequentes as denúncias de invasão ilegal (e
violenta) de terras públicas preservadas (indígenas ou não) e de posseiros e
assentados. Por isso, cresce a pressão sobre aqueles que alimentam a patuleia
nacional.
A
grande mídia apoia sem pudor o agro como o grande propulsor da economia
nacional, como forma de angariar entre os cidadãos a impressão de termos “a
melhor agricultura do mundo”. O Brasil tem, sim, vocação agrícola imensa, mas
vale refletir com frieza sobre as consequências da realidade por trás do
agronegócio.
Sociais- são vários: emprego
de violência no campo (expulsão ou assassinatos diversos para apropriação
indébita); mão-de-obra trabalhadora em situação irregular (sem EPIs, sem
contrato trabalhista) ou escrava (sem alimento ou água, e exposição plena a animais perigosos por falta de abrigo adequado).
Famílias expulsas de suas terras migram ou se agregam em movimentos organizados
como MST para sobreviver; miséria e fome.
Ambientais- em grande escala,
degradação do meio físico (consumo de água e outros, incêndios, destruição de
biomas para expansão ilegal de pasto ou plantio, mitigação da biodiversidade), químico
(grande contaminação da água e do solo por agroquímicos), e climático (maiores
emissões de gases-estufa como CO2 e metano). O agro é um dos fatores da
progressiva savanização da Amazônia.
Os
agroquímicos são potentes contaminantes ambientais, daí serem agrotóxicos.
E para Bolsonaro, quanto pior, melhor: mais de 500 deles, proibidos no resto do
mundo, foram liberados aqui. E se prejudicam o meio ambiente, ferram a nossa
saúde, afetando vários sistemas, principalmente o nervoso, o digestivo
(hepatopatias), e podem ser carcinogênicos e até abortivos.
Sim,
abortivos. Em 2020 a mídia chegou a publicar alguns casos de abortos
espontâneos, a princípio sem se saber do fator. Após minuciosa análise dos
casos, como residências próximas a grandes campos de soja e outros ícones do
agro, se soube da causa: o glifosato, agrotóxico muito apreciado pelos ruralistas.
Estudos
apontam que o Brasil perdeu até 16% de água doce em 30 anos, e o ecocídio de
Bolsonaro pode estar acelerando o processo: os recordes destrutivos ocasionaram
fenômenos climáticos incomuns neste ano, como secas prolongadas, tempestades de
areia e irregularidade de distribuição e concentração de chuvas, com sérias
implicações na produção alimentar.
Econômicos- há duas linhas de
análise: nos mercados destinatários e na disponibilidade alimentar.
Sendo
o principal mercado o externo, o que fica vai para polos industriais e o
comércio. Os preços dos produtos afrontam a economia popular, mesmo na queda de
exportações, e há locais onde “sobra gado e pasto e falta gente”.
Na
outra linha analítica está a relação disponibilidade alimentar e status
ambiental e climático. É sabido que os fenômenos já citados afetam a
produtividade regional, que poderá se tornar nacional se nada for feito para
barrar o problema. E quanto menos disponível, mais caro, e com isso, mais
miséria, fome e doenças.
Já existem
estudos que apontam haver uma íntima relação entre o uso de agroquímicos e as
alterações ambientais que, pois muitos deles, mesmo tendo outras finalidades,
afetam, direta ou indiretamente, as culturas. Em dois sentidos: os efeitos na
bioquímica dessas culturas, levando à sua alteração genética ou morte; e a ação
sobre insetos e outros animais benéficos.
Por
mais seletivos que sejam para eliminar as ervas daninhas, os herbicidas, em
excesso, afetam as próprias culturas, podendo impactar a disponibilidade
alimentar e macroeconômica. Eventos climáticos negativos apenas potencializam o
estrago desses agroquímicos.
Os
inseticidas diminuem populações de insetos daninhos, mas também intoxicam ou
matam os que mantêm as culturas pela polinização, ou esparrame das sementes por
fazes, patas ou bicos. Apesar de mais efetivos do que o controle biológico,
esses agroquímicos minam a biodiversidade por afetar animais que comem os
daninhos.
Os
fungicidas são igualmente perigosos, pois não são muito seletivos, minando também
fungos benéficos à proteção das culturas e à fertilidade dos solos, o que
também contribuem contra a biodiversidade.
Nessa
reflexão sobre os males dos agroquímicos, vale ressaltar que, se usados em
quantidades menores, eles podem ser inócuos à saúde humana e não afetar tanto a
biodiversidade e, em logo prazo, a disponibilidade alimentar. Só não ajudariam
a minimizar ou combater a violência e as irregularidades no campo.
Pois
nesse campo, entra outro assunto de extrema relevância, que o governo fez
questão de engavetar: a reforma agrária. A CF/1988 faz a sua parte. A grande mídia
é também culpada ao omitir o protagonismo dos grandes ruralistas no ecocídio,
na posse indébita de terras e de toda sorte de violações no campo e à natureza.
É
aí que o agrobusiness mostra a sua verdadeira face: ele não tem nada de pop,
ele mata.
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Imagem: Google
Para saber mais
- https://www.youtube.com/watch?v=-Myi-OBxVz0 (Meteroro Brasil)
- https://www.inca.gov.br/exposicao-no-trabalho-e-no-ambiente/agrotoxicos
- https://exame.com/economia/imagem-do-brasil-no-exterior-preocupa-representantes-do-agronegocio/
- https://reporterbrasil.org.br/2020/07/como-o-agronegocio-atua-para-garantir-a-pulverizacao-de-agrotoxicos-pelo-ar/
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