terça-feira, 16 de novembro de 2021

Análise: PEC da impunidade vitalícia

 

        Depois que a CPI da C19 jogou a público toda a titica no ventilador a respeito de como o governo tem agido com a ajuda de empresários criminosos com a sindemia, escancarando a maior rede de corrupção da história do pós-ditadura, moscas voaram na Câmara.
        Mas essas não eram moscas comuns, ainda que pudessem parecer, pois não podem ver a titica que se ouriçam. E essa titica tem a ver com a clareza inconteste dos crimes do governo e empresários contra a saúde pública, e as consequências.
        Daí o voejar das moscas na tribuna da Câmara, numa articulação com ensejo de passar a borracha em todas as tentativas de punição contra atores centrais dos crimes: a articulação sobre uma medida legal que colocaria ex-presidentes como senadores vitalícios.
        Embora a mídia não tenha informado, a proposta só poderia ter saído do Centrão. O presidente da Câmara e cabeça do grupo, Arthur Lira, era só sorrisos em relação ao assunto, despertando suspeita de ter sido o idealizador. Ou um deles.
        Mas é interessante ao público saber que essa proposição não tem nada de estranha. Por isso mesmo causou reações fortes entre os colegas da oposição, que já têm estado enxuricados por conta da PEC dos precatórios recentemente aprovada na Câmara.

Do que se trata e por que

        Ela é uma proposta de emenda à Constituição (PEC), que se tornaria parte da Carta Magna caso aprovada pelo Congresso e promulgada. Foi assim que algumas propostas do ministro Guedes foram aprovadas, a peso de muito suborno ao Centrão pelo governo. 
        O objetivo básico da medida proposta é consolidar a imunidade parlamentar de Bolsonaro, para mantê-lo no páreo, uma vez que a reeleição dele é praticamente impossível devido à alta rejeição, estar sem partido e à incontestável liderança de Lula na corrida à presidência da República.
        Na verdade, essa PEC não apresenta novidade. Ela expõe uma ideia perseguida há décadas, como forma de compensar a não reeleição à presidência. Segundo o texto, a finalidade é só honorífica, em que o senador vitalício não participa de votações, CPIs e outros atos, mas tem privilégios até morrer. 
        No caso atual, a manutenção da imunidade política do atual mandatário interessa ao Centrão, pois Bolsonaro tem sido funcional, tanto nos generosos subornos apelidados de emendas, quanto em manter Guedes firme no comando da Economia.
        Sim, Guedes também, pois além da aprovação de algumas de suas propostas que impuseram um stablishment anarcocapitalista no país e derrete o teor cidadão da CF, ele facilitaria a aquisição de mais cifras bilionárias em emendas, às custas do crescente prejuízo socioeconômico.
        Mas, ironicamente, os benefícios da PEC também seriam extensivos aos demais ex-presidentes, entre eles os maiores adversários de Bolsonaro: os petistas Lula e Dilma.
        Por trás, a história- Como previamente exposto acima, a citada PEC não tem nada novo, apesar de o texto sê-lo. O teor tem forte familiaridade histórica, remetida de época sombria passada no vizinho Chile nos anos 1980. Sigamos com breve história da ditadura chilena para entendimento.
        Em 11/9/1973, houve um duro golpe de Estado no Chile. Bomba explode no palácio presidencial, e o então presidente, o socialista Salvador Allende, foi deposto e depois morto pelos militares, entrando em seu lugar o general Augusto Pinochet. Tudo isso com o beneplácito dos EUA.
        Com traje militar lembrando nazistas, Pinochet comandou um regime de terror com estado de sítio, partidos políticos cassados, mais de 3 mil mortos e desaparecidos, mais de 50 mil torturados e até 200 mil exilados à força. Nem estrangeiros escaparam. Livros "subversivos" foram queimados em praça pública pelos carabineros1. Censura sistemática sobre a imprensa e cultura.
        Criou nova Constituição2 em 1981, através da qual foram impostas medidas neoliberais radicais com privatização dos serviços públicos e capitalização da previdência, pelo trabalho do Chicago boy Paulo Guedes. Desde 1981, a Carta Magna tem ficado em transição.
        Pinochet pilotou o seu regime de terror até 1990, quando a continuidade de seu mandato foi enfim derrotada por referendo em 1988. Mas testemunhando a sua Carta Magna entrar em vigor pleno antes de sair, satisfazendo seu desejo em manter as medidas neoliberais nela contidas.
        Após o fim da ditadura, Pinochet voltou a ser foco da jurisdição internacional devido às denúncias de violação aos direitos humanos. Mas, logo se tornou senador vitalício, graças a um artigo da Carta Magna que já garantia tal poder que blindou a sua imunidade política. E impune faleceu, em 2006.

Repercussão e impactos

        Diante do que se conta sobre a biografia política de Augusto Pinochet e como terminou senador impune por tantos crimes, é absolutamente normal que a ideia de PEC para finalidade idêntica tenha causado reações de chacota a desprezo. 
        A oposição também viu nisso uma futura forma de condução secreta e ilegal de recursos públicos para distribuição na tribuna, chamada de "emendas parlamentares". Todo mundo iria receber a grana, mas sem ser revelada a fonte de fornecimento. Dessa imaginação veio a ojeriza.
        Após a majoritária reação de desprezo, o tema pareceu ter sido deixado de lado, mas voltou à tona na semana anterior, despertando novas análises, em tom mais frio e racional, sobre os significados e impactos da PEC, supondo-se a sua aprovação. Aqui se vão em tópicos.
        Inconstitucional- segundo o jurista Alexandre Rezende Nicolaidis, a PEC fere prerrogativas da lei eleitoral e a manutenção de interesses regionais na esfera federal. Um ex-mandatário como senador vitalício tende a prejudicar as discussões políticas e o quorum de votações. 
        Sobre a lei eleitoral, vale lembrar de que, exceto Itamar Franco, todos os ex-presidentes do pós-ditadura estão vivos. Basta imaginá-los todos no cargo vitalício para se compreender o limite do poder de escolha do eleitor em eleger novos nomes para um novo ciclo no senado. 
        Outro ponto, segundo o jurista, é o prejuízo da separação dos poderes, pois a ida de um ex-chefe do Executivo ao Legislativo é adotar atos estranhos e, também, autolimitados. Propostas anteriores não especificavam possíveis atribuições, já que se veda o direito a voto.
        Impunidade- Assim como os colegas eleitos, o senador vitalício passa a ter imunidade parlamentar livrando-se de cair no julgamento de seus crimes pela justiça comum. No caso de Bolsonaro, o objetivo de se livrar de ser julgado por seus muitos crimes institucionalizaria a impunidade completa, quebrando todos os limites éticos e legais de segurança jurídica.
        Fragilização do contraditório- No meio jurídico, todos temos o direito ao contraditório, pois ele se vale do direito à ampla defesa por meios argumentativos probatórios. O mesmo cabe na política: na CPI da C19 senadores mostraram posição diferente ou contrária à da maioria da Câmara em muitos pontos.
        Numa tribuna do Senado repleta de ex-presidentes senadores vitalícios, essa polaridade saudável essencial ao debate político poderia ser bastante prejudicada, visto que eles supostamente não poderiam participar dessas atividades também.
        Relação com a sociedade- A CPI da C19 foi importante para mostrar como os senadores membros agiram de forma a dar satisfação à sociedade, valendo-se dos canais de mídia e redes sociais. Isso foi sine qua non para gerar uma reposta social positiva, como o aumento da corrida pela vacinação, galera usando máscaras e álcool, e queda das fake news.
        A CPI fez com que o Senado tivesse melhor conceito do que a Câmara, que por seu turno é vista como subestimada ao Centrão, que fez da tribuna um grande balcão de negócios com o governo.
        Uma vez que pouco ou praticamente nada poderiam fazer, e lotando espaços com suas presenças inúteis, os senadores vitalícios talvez pudessem atrapalhar as coisas, e tornassem o Senado o alvo de ojeriza popular ainda mais intensa do que a já existente com a Câmara.
        
        Novamente, a PEC não terá nenhuma chance, nem mesmo para ter seu texto analisado. Há décadas se tenta seduzir com belas palavras para ajustar ex-presidentes certamente com índoles muito diferentes da de Bolsonaro, sem nenhum êxito. O legado de Pinochet pesa demais. O de Bolsonaro, igualmente.

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Imagem: Google

Notas da autoria
1. Forças policiais federais com atribuições de controle nas ruas, análoga à nossa Polícia do Exército (PE).
2. A Carta Magna será substituída por novo texto, que está em fase de elaboração na presente Constituinte.

Para saber mais
- https://jc.ne10.uol.com.br/politica/2021/10/13619612-para-blindar-bolsonaro-centrao-articula-pec-para-criar-cargo-de-senador-vitalicio-para-ex-presidentes.html
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Ditadura_militar_chilena
- https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/para-blindar-bolsonaro-centrao-estaria-articulando-mandato-vitalicio-no-senado/
- https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/pontopoder/senador-vitalicio-os-impactos-da-proposta-rejeitada-no-passado-que-o-centrao-quer-emplacar-em-2021-1.3157400
- https://www.conjur.com.br/2021-nov-03/alexandre-rezende-pec-senador-vitalicio-inconstitucional2
        
        

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