Se existe um idem sem o qual as complexas sociedades modernas não conseguem se orientar direito, esse é a imprensa. Se o seu surgimento, frequentemente atribuído a Gutenberg em fins do século XV, se voltou para a construção de livros modernos, a imprensa noticiosa em larga escala abriu portas para a sociedade da informação de hoje.
Tais informações até hoje variam desde os fatos do dia até o versátil entretenimento. Se há mais de um século se levava dias para saber de um acontecimento, hoje este chega em tempo real. Tudo graças a intensa sofisticação tecnológica, que acabou tendo nas telecomunicações um dos ramos mais impactados, junto à saúde.
Bom, isso tudo nós sabemos básica e genericamente como a imprensa evoluiu. Ainda no século XIX, ela já sofria impactos sociais e políticos e, de certo modo, dava a sua resposta para expressar a sua personalidade. Surge a imprensa de tendências, essa que está aí mesmo.
Imprensa de tendência*
Na verdade é uma expressão analítica pessoal, a "distorcer" a expressão tendências do jornalismo (vide Observatório da Imprensa), no intuito de desdobrar em dois sentidos que, mesmo distintos, tendem a correr juntos. Calma, as explanações virão na boa.
Tendência de Evento ou fato- nesse sentido é o foco concentrado em determinado evento ou fato de grande impacto sobre a coletividade, de formar a criar uma "versão oficial". No presente momento, duas tendências maiores se destacam: a pandemia de C19 e a questão ambiental e climática global.
Temos visto repetidos incidentes diplomáticos protagonizados pelo governo Bolsonaro contra os outros governos mundo afora sobre os dois exemplos acima citados, colocando o Brasil em posição de pária internacional, da qual o ex-ministro Ernesto Araújo demonstrava estapafúrdio orgulho.
O que tem dado mais destaque ainda é o fato de esses eventos exemplificados não só questionam a condução da política externa brasileira a respeito desses temas tão caros à sobrevivência do planeta, também colocam na massa do imbróglio a poderosa China e os EUA.
Ou seja, o que se expressa nesse sentido é a ênfase num evento ou em determinado conjunto de fatos.
Viés da tendência- Já nesse sentido, ao explorar um determinado evento ou conjunto de eventos, certa empresa de imprensa mostra uma ótica própria, que mesmo discreta é percebida por leitores mais analíticos. Esse viés não só revela a vertente político-ideológica e econômica seguida pela organização jornalística, ele também expressa a forma como as informações são apresentadas ao público.
A ligação com o sentido anterior está aí: sem apresentar informações, a imprensa não teria como expressar a sua personalidade ideológica. Existem exemplos conhecidos, como fatos da economia, da política e da desigualdade social. Nesses eventos, diferentes noticiosos revelam seus vieses distintos.
É possível que a imprensa ideológica tenha surgido em dois eventos concomitantes, as Revoluções Industrial e Francesa, cujos conflitos sociopolíticos decorrentes ofereceram subsídios para informações noticiosas tanto pelo viés das classes dominantes quanto das dominadas.
A "grande mídia" representada pelo Globo, Estadão, Folha, Bandeirantes, Veja, IstoÉ, Record e outras são referências da cultura dominante (de elite), defendendo o neoliberalismo1 como benéfico ao desenvolvimento. Com recursos públicos, dominam a TV aberta e sustenta pequenas mídias on-line que replicam suas notícias em tom pop.
Revista Fórum, DCM2, Rede Brasil Atual, Brasil Cidadania, Brasil de Fato, Jornal GGN, Ópera Mundi, Mídia Ninja e outras são questionadoras da cultura de elite e do neoliberalismo. De pequeno a médio porte e geralmente on-line, a maioria se sustenta por assinaturas ou seguidores no Youtube, e uma minoria recebe recursos de entidades fundacionais ligadas a políticos.
O The Intercept se especializou em jornalismo investigativo, com matérias que a mídia em geral não publica. Tem seu canal no Youtube e prima por matérias longas e ricas em pormenores. Também se sustenta por assinaturas e seguidores (grupo das mídias independentes).
C19 e polarização dos grandes eventos
Embora importante por se tratar de um conjunto de sindemias (a potência viral ligada a indicadores sociais, políticos, econômicos, acesso alimentar, habitação, saúde, ambiente, educação, etc., de cada contexto nacional), a pandemia de C19 foi absorvida em duvidosos caminhos.
Ao ser declarado pandêmico, o Corona já aprontava. Imaginem em países sob ditaduras, que ora silenciam, distorcem ou mentem dados. E quando os ditadores o fazem, não só sabemos de indicadores subdesenvolvidos, como também da indiferença dos governos à agressividade do vírus.
A novidade da C19 em um país como o nosso a fez tendência de intenso e diferencial impacto sobre o coletivo, que a absorveu num pacote de ciência, conspiração e negação. Mesmo após provada ineficácia, fármacos viraram receita de governo, veio fitomedicina e até bizarrices como ozonioterapia retal e solda de oficina.
Dimensão da politização- apesar da sua seriedade, a C19 foi e continua amplamente politizada pelo governo, explicando as aglomerações repetidas, a adesão ao tratamento precoce e os movimentos antivacina movidos a fake news que fizeram a imprensa lutar para que a ciência prevalecesse, com a ajuda das agências de checagem e de uma CPI.
No campo científico, todas as mídias que se prezem, da casa grande e da senzala, se convergiram, pois a ciência é uníssona. Mas, tal união se limitou aí - o que se evidenciou mais recentemente.
Tratamento diferenciado- Mesmo dando valor pleno às pesquisas científicas e fazendo campanha pró-vacina em massa, a grande imprensa tem mostrado notas incoerentes, uma vez que foram movidas por patrocínios públicos e privados. Entre todas as grandes mídias, um evento comum: o Réveillon.
O Réveillon virou polêmica devido à briga entre o governo e a Anvisa sobre a obrigatoriedade do passaporte de vacina a turistas do exterior (inclusive África do Sul, onde a Ômicron foi idnentificada), e grandes eventos públicos. Quanto aos outros houve mais especificidade, mas ligados à C19.
O SBT defende torneios de futebol com estádios abertos ao público. A Globo fez propaganda do Réveillon que aglomera milhões em Copacabana, e apoia o carnaval restrito ao Sambódromo. A Record condenou carnaval e estádios cheios, mas quer os megaeventos gospels plenos. E a Band quer passar o desfile das escolas paulistas.
Regulamentação da imprensa resolve? À guisa de reflexões
Estádios de futebol à vontade; carnaval, só desfile, blocos populares não podem; e megaeventos e cultos gospels plenos foram criticados pelas mídias independentes, que viram no alegado controle da Õmicron um mote furado para disfarçar a segregação de classe e ode ao prosélito lobby cristofascista.
Há um acordo entre as emissoras de TV aberta sobre isso. Cada emissora enfatiza um evento, e a divisão do carnaval na fatia fluminense global e paulista bandeirante foi um acerto de paz onde todos saem ganhando, mas quem se arrisca a perder até a qualidade de vida por isso é o grande público.
Vale aqui a relevância crítica à posição da Record em prol dos eventos gospels. É ingenuidade ver nisso o singelo toque de transmissão de fé. É lobby puro, além de uma forma de concorrer com a Globo pelos espectadores, e fortalecer um governo cujo estado de depauperação é irreversível.
A prática por trás das tendências da imprensa se revela na imprensa de tendências, sem tornar os fatos (ou a sua conjuntura) fake news. É a maquiagem colocada conforme o direcionamento dominante dos que estão na elite, que patrocinam essas organizações, num adendo à concessão pública.
O raciocínio crítico diferenciado das mídias independentes faz sentido ao apontar as maquiagens revelando a intenção por trás das evidências. Se apoia a ciência na C19, por que a grande mídia faz ode aos megaeventos, de elite ou não? A resposta virá no subitem a seguir.
Regulação da imprensa- em uma conversa informal no ano passado, o agora presidenciável Lula voltou a mencionar uma pauta cara ao petismo: a regulamentação da mídia. Súbito alvoroço geral na grande imprensa se seguiu de uma enxurrada de apontamentos que revelaram controvérsia.
Lógico, pesaram muito as críticas da grande imprensa contra a proposta. O JN chegou a lançar um editorial para a patuleia, cuja quase totalidade nem deu atenção por não saber o que é isso. Em tom bem grave, telejornalistas acusaram o petista de querer "censurar" a imprensa.
A reação da grande mídia foi mal-intencionada. É graças à regulação, que surge nos anos 1930 e se consolida nos 1960's no Código Brasileiro de Telecomunicações e leis posteriores sem peso prático, que a grande mídia tem recursos de concessão pública e muito patrocínio privado, que lhe dá hegemonia.
A hegemonia cria desigualdade de acesso a muitas mídias. É comum na patuleia não saber o que é The Intercept, Nova Democracia, GGN, Brasil247 e outras, e o que publicam. Pode ser absurdo, mas é daí que a geral só sabe dos fatos quando estes já geraram graves sequelas de toda ordem.
Segundo Lula, o intuito de criar nova lei de regulação é democratizar não só o acesso às mídias em geral, é também à informação ampla, capaz de suscitar questionamento sobre uma versão inicial dos fatos. E é aí que se explica o incômodo geral entre a grande mídia, pois pode afetar o seu monopólio, do qual se valem para, às vezes, descreditar as mídias independentes.
Mas, suponhamos que, se eleito, Lula sancione a nova lei ou decreto. As mídias independentes poderão até comemorar, pois, quiçá, pode haver patrocínio público a lhes dar sobrevida. Mas, o maior desafio nem será esse, mas sim a luta contra o monopólio da bem armada grande mídia pelo alcance igualitário de informação.
Afinal, imprensa de tendência é isso: trazer fato de grande impacto em "versão oficial", do que a nossa grande mídia tem larga experiência.
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Imagens: Google (montagem pela autoria do artigo)
Notas da autoria
* Expressão da própria autoria para dar sentido ao entendimento de diferentes vieses das mídias para um mesmo fato.
1. Caráter das reformas antiestatais de Paulo Guedes.
2. Diário do Centro do Mundo.
Referenciais
- http://www.observatoriodaimprensa.com.br/category/tendencias-no-jornalismo/ (citado no artigo).
- https://www.brasildefato.com.br/2021/09/10/artigo-entenda-por-que-a-discussao-sobre-regulacao-da-midia-sempre-volta
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