2010. Início do mês de abril. Tudo corria bem em Niterói, a leste da Guanabara. Numa madrugada se inicia forte chuva com mais de 48 horas, resultando em morros deslizados e enchentes de lama nas planícies com muita destruição e um saldo de 105 mortos e dezenas dos que desapareceram.
O Rio também sofreu, com dezenas de mortes e alguns desaparecidos. Embora menor, o estrago teve a mesma relevância. Nas duas cidades ainda há marcas do episódio, hoje raramente lembrado.
2011. Moradores e turistas vagueavam nas ruas das cidades da bela região Serrana do Rio de Janeiro. Mas em janeiro, no auge daquele verão, se espera tanto um Sol de rachar o coco, quanto daqueles temporais concentrados e rápidos, com raios e trovões à vontade.
Aquele janeiro instável e chuvoso seria normal, não fosse o que viria a seguir, Em todas as cidades da região, chuvas fortes de vários dias erodiram terra das vertentes gerando furiosas torrentes de lama e destroços com os rios transbordados, matando quase 1000 vidas e desaparecendo outros tantos sob lama de até 10 metros nas planícies.
A Tragédia da Região Serrana de 2011 se tornou um dos poucos eventos climáticos que volta e meia voltam à memória de cidadãos ao testemunharem ou serem informados de danos semelhantes por temporais em suas cidades, em rodas de conversas no café da manhã em bares e padarias.
Sem ninguém se dar conta de que uma tragédia climática local ainda mais insólita ainda viria.
Impressionante e devastador
2022. 15 de fevereiro. Essa data certamente reverberará na memória dos brasileiros por bastante tempo. Mas, entre os moradores da simpática Petrópolis, a Cidade Imperial serrana, será indelével nas dores das saudades dos entes queridos que se foram vitimados, soterrados ou desaparecidos pela fúria das chuvas e das torrentes de lama, vegetação e destroços.
Em meio à serra salpicada de cidades conectadas por estradas entre as vertentes, o ocorrido em Petrópolis pareceu um castigo digno de conto bíblico, pois não há, até o momento, registros de danos e vítimas nas demais cidades da região.
O fenômeno, que se iniciou às 18h e durou menos de 6 horas, deixou marcas impressionantes: 260 mm, o equivalente a pouco mais de um mês inteiro. Inclusive na dimensão da tragédia, é considerada pela Defesa Civil-RJ como a maior tempestade em 90 anos dos registros locais.
Não é por acaso que essa relação intensidade/duração mostrasse a que veio, impondo assombro entre os que visualmente testemunharam a sua força, traduzida em um desastre trágico e aterrador, que iria arrancar dos olhos e peitos terror, lágrimas e dor.
Devastador- o fenômeno foi digno do mítico dilúvio da epopeia de Gilgamesh. A partir das 18h, a chuva se iniciou forte na cidade, mantendo-se contínua e intensa por mais de 4 horas, de acordo com testemunhas. Torrentes tsunâmicas de lama e vegetação destruíram imóveis cujos escombros e móveis se juntaram a veículos, nas ruas enladeiradas.
Entre os bairros altos se destacam Alto da Serra e Alto Quitandinha, pelo tamanho da devastação sofrida. Mas há outros bastante destruídos. São desses bairros os vídeos das torrentes carregando carros, alguns com pessoas dentro, como brinquedos de plástico, tudo pairando nos já transbordados rios, em direção ao Centro.
No Centro, o rio Piabanha, que corta a rua do Imperador, principal via de Petrópolis, inundou os térreos dos edifícios, lojas e casas. As torrentes na rua Teresa e paralelas formavam ondas de lama com a água do Piabanha. Tudo que as torrentes carrearam foi parar ali.
Abaixando progressivamente após a tormenta, a água revelou veículos enganchados um no outro ou encostados em postes que resistiram e no obelisco, em meio à lama e todo tipo de detrito. No ar, o odor de lixo e morte. Cenário a evocar uma catástrofe bíblica ou uma guerra, e sobretudo, horror.
Vítimas- embora se aponte os que morreram e os desaparecidos, o total de vítimas é muito maior, pois há os sobreviventes que tudo perderam, documentos básicos, e lágrimas pelos familiares queridos. São milhares deles. Já são 169 mortos e 190 desaparecidos confirmados até o momento.
Apontamentos especialistas
A tempestade incomum chamou a atenção de olhares especialistas. Não só pela intensidade, tida como a maior em 90 anos na cidade, segundo a Defesa Civil-RJ. Ou seja, para esse órgão, ocorrências dessa magnitude já teriam ocorrido localmente, ou em outra cidade serrana.
Mas, nem todos concordam. Para o meteorologista Marcelo Seluchi, coordenador do Cenadem (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), esse fenômeno se figura como o maior desastre natural da história local, em intensidade, poder destrutivo e letalidade.
A justificativa do coordenador reside no fato de que nunca houve registro anterior de tempestade com 260 mm em poucas horas. E chama a atenção um relato de que, num morro, teria sido aberta uma voçoroca1, infelizmente não evidenciada em fotos ou vídeos disponíveis até este momento.
As fotos evidenciam claramente grandes "rasgos" ladeados pela vegetação nas vertentes, origem das mencionadas torrentes. Mas, também não é possível descartar a hipótese, pois essa voçoroca pode ter sido pequena e encoberta pela terra desnuda muito encharcada de logo acima.
Para especialistas, se confirmada, tal voçoroca pode validar hipótese de cabeça d'água no alto do morro relatado. Esse fenômeno singular é conhecido por quem vive perto de cachoeiras e elevados, e tende a ser confundida com a temida tromba d'água. Mas, na real, são distintas.
Segundo meteorologistas, a tromba d'água é definida como uma versão aquática de tornado, com ventos ciclônicos poderosos como os do tornado terrestre. A cabeça d'água, por sua vez, é uma chuva hiperconcentrada, estritamente localizada e não ciclônica, a verter grande volume de água de uma só vez.
ZCAS- Meteorologistas e climatologistas afirmam que, sazonalmente, a atmosfera diferencia seus movimentos, que se definem bem no verão e inverno. Em condições naturais, a modificação é mais ou menos gradual de uma estação a outra, tornando a primavera e o outono estações transicionais.
No inverno brasileiro imperam frentes frias vindas de centros de alta ou baixa pressão criadas por no Atlântico Sul resfriado, ou de centros ciclônicos de baixa ou alta pressão, respectivamente chuvosos e secos. No verão, a atmosfera se comporta de maneira completamente diversa.
Frente intertropical do Atlântico equatorial entra no litoral norte-nordeste do Brasil e se converge com a grande bolha úmida amazônica, retida a oeste pelos Andes. O centro de baixa pressão resultante se lança como volumoso e longo "rio voador" que atravessa o Centro-Sul até o litoral Sudeste-Sul.
No Sudeste, o "rio voador" pode, ou não, se encontrar com as frentes frias de baixa pressão do sul, que podem reforçar o seu efeito climático. É a Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS).
A ZCAS é a grande responsável pelas abundantes chuvas de verão que alimentam nascentes e irrigam as planícies, platôs, mares de morros e serras do grande centro-sul, até o litoral norte da região Sul. Os ecossistemas são tão diversos quanto a geologia e o conjunto climático.
Natureza x homem- A ZCAS favoreceu desenvolvimento destacado do Sudeste no apreciado café em MG, SP e PR e produções recordes de grãos no Centro-Oeste, e dos parques industriais. Mas, nos últimos anos, famosa e mal conhecida, ela virou fonte de medo. E não é para menos.
Há 30 anos se apontam irregularidades pluviais e extremos climáticos. No centro-sul brasileiro, os últimos 3 verões têm sido mais suaves e úmidos, com acumulados maiores do Triângulo Mineiro ao Rio de Janeiro, em contraste com invernos muito secos. Mesmo irregular, o fenômeno segue natural.
A ZCAS é natural em si, e sua atuação sofre influência de fenômenos como El Niño e La Niña2, que alteram globalmente a dinâmica atmosférica e correntes oceânicas, com mais ou menos intensidade conforme a sua força. Os últimos verões mais suaves se devem à La Niña, ainda operante.
A influência desses dois fenômenos no Pacífico não é muito regular: eles podem variar de duração e intensidade, o que leva a eventuais irregularidades no comportamento da atmosfera e das correntes marinhas, influenciando nas singularidades sazonais. Aí é algo natural.
Mas, não é natural o aumento da irregularidade cíclica, dos extremos térmicos e atmosféricos e o aquecimento global. É humano. A "legalização" da devastação pelo governo desde 2019 se reflete agora em extremos mais intensos e frequentes observados de 2020 para cá. E o homem atua de várias formas:
Degradação ambiental- já sabemos que várias atividades antiambientais intensivas destroem os principais biomas brasileiros, com aval do atual governo. O resultado é o agravamento das mudanças climáticas, aquecimento global e maior frequência e intensidade dos extremos meteorológicos.
Petrópolis surgiu num vale fértil entre verdejantes montanhas de encostas íngremes. Com antigas terras da família imperial loteadas, a urbanização se iniciou organizada e paulatina, mas nem por isso sem risco. Isso, até entre 4 e 5 décadas atrás.
A partir daí, porém, empregos pelo turismo aquecido e a relativa tranquilidade atraíram muitas famílias, principalmente do Rio. A cidade cresceu fortemente, por surgimento de moradias e comércios subindo as encostas, formando subúrbios e, em seguida favelas, modificando profundamente o meio. O mesmo ocorreu em Teresópolis e Nova Friburgo e outras.
Na região serrana, de pluviosidade abundante no verão e névoa de inverno, é normal que de suas encostas vertam filetes que com as chuvas se engrossam em quedas d'água até a planície. Em ambientes conservados um eventual extremo é natural, mas nas ocupadas se torna um trágico desastre humano.
Foi nessa soma de mecanismos que as cidades da região serrana possuem histórico de desastres desse tipo, denunciando um problema sem previsão de acabar: a ocupação irregular das áreas de risco. Pelo menos, mais de 70% da zona urbana das maiores cidades serranas estão em áreas de risco.
Política de habitação popular- reflexo do que já ocorria nas zonas metropolitanas das capitais, tal crescimento desorganizado revela um sério problema socioambiental a atingir as camadas operárias pobres. Surgiu para se cronificar devido à insistente má política formulada de habitação popular.
Visando eliminar favelas, a política habitacional popular surgiu na era JK para alojar as famílias operárias migrantes do Nordeste e Norte atraídas pela indústria no Sudeste e se fixavam nos cinturões pobres das cidades extensivas às capitais, para terem acesso fácil via transporte público.
A maioria dos cinturões surge em terrenos de encosta no pé dos morros, expandindo-se vertentes acima, como nas regiões serranas, ocupando o lugar da vegetação original que segurava o tranco dos temporais. O solo exposto pelos desmates se encharca e desliza, com efeito catastrófico aos moradores.
Mal midiático
Na época da catástrofe de 2011, o governo Dilma intercedeu enviando recursos às prefeituras das cidades atingidas para recuperação das áreas. O então programa Minha Casa Minha Vida colaborou na entrega de novas moradias contemplando as famílias populares desabrigadas por perda das suas casas.
Apesar de positivo a essas famílias, o programa expandiu os processos erosivos nas vertentes serranas, contribuindo para a continuidade dos efeitos deletérios das tempestades de 2011. No recente caso Petrópolis o fenômeno inevitavelmente se repetirá.
Em 2021, anos após a tragédia de 2011, famílias contempladas pelo programa relataram à mídia danos estruturais surgidos pouco tempo antes e ampliados no ano passado. Ao publicar a reportagem, a mídia filtrou dados como se a qualidade dos imóveis do programa fosse o fator. Discutível.
Apesar desse ponto não ser descartável, a mídia não apontou que, sem plano de recuperação de áreas degradadas por má ocupação do solo, danos são inevitáveis devido ao encharcamento do solo abaixo da superfície, afetando inicialmente as fundações de qualquer imóvel.
O que reforça a tese da filtragem é que a equipe responsável pela reportagem procurou a direção da Caixa em Brasília que, contatada, não se pronunciou sobre o ocorrido. Isso, em 2021. Um mal midiático claramente explícito, que contribuiria para intensificar ataque político-partidário ou ideológico.
Todas as explanações acima indicam a soma entre a tendência natural de tempestades concentradas nas serras, favorecidas pela conjuntura de geomorfologia local e fenômenos atmosféricos. Episódios de extremos meteorológicos são recorrentes há mais de 10 mil anos, modificando a fisiografia natural.
Dessa forma, a expressão "desastre natural" ganha pleno sentido de desastre em se tratando das consequências dos fenômenos sobre as ocupações humanas. Ou seja, tem obrigatoriamente significado humano, mesmo sendo o fenômeno natural.
Apesar da origem natural desses fenômenos, os sinais denunciadores da interferência humana se concentra no aumento de sua intensidade e frequência, gerando forte impacto no meio natural, ocupado ou não.
Em visita a Petrópolis, Bolsonaro declarou que "isso aí é inevitável". Sem interferência humana, até estaria certo. Mas o fato inconteste é que houve um desastre que, sim, seria perfeitamente evitável, se houvesse boa vontade política, do prefeito ao presidente da República, de efetuar preventivamente na manutenção das encostas.
Há dois meios, sendo o mais comum o muro de contenção de encostas mais íngremes ou expostas à erosão pós-interferência humana. O outro plano, que requer prazo maior para efeitos, é a recuperação das áreas degradadas através de reflorestamento, de preferência com espécies nativas do ecossistema atingido.
O reflorestamento poderia se iniciar com o plantio intensivo de herbáceas, que crescem rápido e com isso gera efeito estabilizador mais rápido no solo, para depois plantar mudas de espécies arbóreas e arbustivas. Embora mais lento, seu efeito gera mais estabilidade do solo e proteção de nascentes.
Mas, devemos sempre considerar o maior dos problemas: a interferência humana no clima global. Quanto a isso, os extremos resultantes podem ser, ou são, inevitavelmente trágicos aos interesses em vida, e sociais, desembocando em gastos públicos.
Como os fatos mostram a ação de toda uma conjuntura humana, seria possível evitar tantas mortes se, desde bem antes, houvesse investimento em habitação popular em áreas menos arriscadas. Mas, o elitismo histórico faz com que as melhores áreas se destinem a "quem pode". Com o beneplácito dos políticos, da grande mídia e das construtoras.
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Imagens: Google (1ª, de 2011, e a 2ª, de Petrópolis 2022).
Notas da autoria
1. Termo tupi-guarani que significa "buraco grande", criada por erosão de impacto por tempestades em vertentes de morros ou liquefação do solo por baixo da superfície.
2. Alterações térmicas naturais nas águas do Pacífico. O El Niño eleva temperatura; La Niña, o contrário.
Para saber mais
- Chuva em Petrópolis foi a maior em 90 anos, diz Defesa Civil (msn.com) (base: Folha de SP)
- https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/imagens-mostram-a-cidade-de-petropolis-antes-e-depois-das-chuvas/
- https://diariodorio.com/mpf-aponta-desvio-de-r-4-bilhoes-em-secretaria-responsavel-por-obras-em-encostas-da-regiao-serrana/
- https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/08/09/vazamento-inunda-imoveis-de-desabrigados-pelas-chuvas-de-2011-na-regiao-serrana.ghtml