segunda-feira, 23 de maio de 2022

Análise: por que Ciro nunca decola

 
        Já foi dada a largada para a oficialização das pré-candidaturas e as suas respectivas campanhas na corrida eleitoral, tanto para os Estados quanto para a Federação centrada em Brasília.
        Normalmente, nas convenções partidárias, os políticos alçados a pré-candidatos às chefias dos Executivos e Parlamentos estaduais e federal lançam as suas séries de propostas. As cartas foram jogadas uma a uma paulatinamente.
        Diferentemente do restante dos pré-candidatos, o presidente Jair Bolsonaro já se preparava para 2022 praticamente desde 2019, quando iniciou a sua era. Mas, parece que o estratagema o deixa em desespero, diante de nomes de maior peso, como Ciro Gomes e Lula.
        Como já sabemos, Ciro Gomes é um político de larga experiência, tendo iniciado a carreira ainda em 1982, pelo então MDB de Ulysses Guimarães. Foi um governador popular do Ceará, deputado estadual e federal, e ministro na era Lula. Como presidenciável, já teve votações expressivas antes.
        Para a corrida de 2022, Ciro novamente tenta como presidenciável. Afinal, nordestino arretado de coração, não desiste nunca, Por um tempo disputou a 3ª colocação com Moro, até que este saiu de cena cedendo-a ao pedetista, que a segura com tudo que pode. 
        Mas, chama a atenção a colocação dele se mostrar distante do 2º lugar (Jair Bolsonaro), mandatário atual da República. Ciro não tem passado dos 8 ou raros 9% nas pesquisas de intenção de voto desde agosto de 2021. Certamente tem algo aí que o impede de alcançar mais potencial votante.

Críticas ferrenhas a Lula

        Em 2018, Bolsonaro surge como novidade na corrida presidencial entre vários nomes conhecidos. Mas como sabemos, ficou atrás de Lula, este imbatível na liderança, que só foi perdida por conta da prisão pelos já sobejamente conhecidos casos do tríplex de Guarujá e do sítio de Atibaia.
        Mesmo por algum tempo de prisão, Lula ainda se mantinha candidato e já dialogava com Ciro, dando-o como certo na sua equipe, se eleito fosse. Mas aí veio a impugnação da candidatura do petista, devido à lei da Ficha Limpa segundo a grande mídia, ou lawfare1 segundo as mídias independentes.
        Então, em 2018 houve um rompimento da aliança entre Lula e Ciro. Este último passou a criticar duramente o PT, o que teria contribuído, segundo as mídias de esquerda, a alimentar o antipetismo que surgiu com a crescente insatisfação coletiva com a era Dilma.
        As críticas de Ciro a Lula e ao PT continuaram mesmo após a soltura do ex-presidente. No Ceará, o governador petista eleito Camilo Santana, próximo aos Ferreira Gomes (família de Ciro) procurou dar um jeito de reconciliar os dois adversários, o que ocorreu em meados de 2020, por mais de um mês.
        Ciro e Lula travaram um bom diálogo visando a reaproximação. Apesar de ambos terem tocado na ruptura da aliança, que trouxe mágoas, o assunto principal foi a situação sociopolítica do país na era de Bolsonaro, a pandemia de C19 e análises dos resultados das eleições.
        Todavia, a despeito da intenção de Camilo, Ciro voltou a criticar Lula, acreditando que este "não aprendeu com os seus erros", devido ao velho petista de falar "com os mesmos de sempre, incluindo aqueles que derrubaram Dilma". A trégua durou pouco, e as críticas hoje rendem no seu canal de reacts Ciro Games, no Youtube.
        João Santana- Mesmo com Lula finalmente livre dos processos de Sérgio Moro na medida que os fatos desmascaravam o ex-juiz e Deltan Dallagnol (graças à Vaza Jato2), formou-se um contexto em que, em meados de 2021, o persistente Ciro Gomes contrata João Santana para marqueteiro político.
        Baiano de Tucano, João Santana é bem conhecido. Jornalista, tem longa história na grande mídia. Músico, contribuiu na disseminação dos ritmos baianos. Escritor, publicou Pequenas Estórias sobre o Brasil, Aquele Sol negro azulado e outros. Publicitário, tem respeitável trânsito no cenário político.
        Na política, se mostrou um relevante marqueteiro, com mostra de olho clínico no temperamento dos seus contratantes. Foi assim que contribuiu na vitória eleitoral de Lula e o contagiante single que virou marca registrada. Com Ciro, parece colocar as críticas anti-Lula como mote de campanha.
        Consequências e reflexões- é possível enxergar uma moeda com duas faces opostas, a positiva e a negativa. Positivamente o canal Ciro Games tem um formato atrativo ao público jovem e escolarizado, com a tendência do pedetista de ser bom analista político nos reacts sobre as cenas reproduzidas nos vídeos.
        Mas o lado negativo é muito mais forte e diverso. A linguagem difícil de suas falas afasta a maioria simples que mal compreende e, junto ao tom temperamental, passa a pecha de arrogante mesmo sem a intenção de sê-lo, reforçando entre seus críticos outra pecha, a de coronelista, devido à sua influência política no Ceará.
        O foco quase sempre centrado nos alvos Lula e PT também se torna negativo para o próprio Ciro: suas críticas não alteram em nada a constância da liderança do velho petista nas intenções de votos, e ainda são aproveitadas pelas alas bolsonaristas, dando impressão a seus críticos de que está a favor do Bolsonaro, de quem na verdade é adversário.
        A persistência em criticar Lula e PT fica repetitiva e enfadonha, podendo afastar ainda mais seu potencial eleitoral e pode explicar por que não melhora sua posição. Ele se declara "a terceira via" após colapso de Moro e Doria, enquanto o nome único das 4 siglas (União Brasil, PTB, MDB e PSDB) ainda não se define.
        Até outubro são 5 meses de tempo que Ciro tem para repensar se vale continuar nessa sem atingir Lula, ou se prepara uma estratégia melhor, como traçar um react analítico comparando o seu PND com as propostas do petista. Quiçá, dessa forma possa atrair o maior e mais eclético público possível, e quiçá, elevar sua posição.
        Pois é cada vez maior o público cansado de tanta raiva e ódio que tem dominado o cenário tanto social quanto político. O react comparativo é sugestão deste blog, na ciência de Ciro como uma pessoa experiente e inteligente que, hipoteticamente, pode superar Bolsonaro e encarar Lula em 2º turno.
        Enfim, o mais importante é a política conjunta para derrubar Bolsonaro e, com o tempo, o legado raivoso e de bizarra teocracia cristofascista de extrema direita. Como diz Bemvindo Sequeira em seu canal homônimo no Youtube, "a eleição 2022 é a disputa da civilização contra a barbárie".
        Assim, nesse hipotético segundo turno entre Ciro e Lula, poderemos ver uma briga talvez mais saudável, em que, como sabemos, dominam as críticas trocadas. E até nisso Ciro tem que se cuidar: se quiser virar o placar sobre o petista, tem que ser criativo para não cair na mesmice. É difícil, Mané!
        Mesmo que não ganhe de Lula, pelo menos poderá mais divertido.

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Imagem: Google

Notas da autoria
1. Termo que define toda uma situação fática estrategicamente planejada para criar uma "presunção de culpa" sobre alguém de peso para retirá-lo do cenário sociopolítico e geopolítico em interesse de terceiros. O termo foi cunhado por John Comaroff, professor da universidade de Harvard.
2. Divulgação de descobertas pelo jornalismo investigativo do The Intercept, então chefiada pelo premiado Glenn Greenwald, marido do deputado federal David Miranda (PSOL-RJ). Ela ocorreu entre o pós-eleição de 2018 e meados de 2019.
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Para saber mais:
- https://m.folha.uol.com.br/poder/2016/11/1829175-professor-de-harvard-ve-presuncao-de-culpa-contra-lula-na-lava-jato.shtml
- https://www.metro1.com.br/noticias/politica/99136,lula-e-ciro-se-encontram-e-selam-tregua-apos-rompimento
- https://jc.ne10.uol.com.br/blogs/jamildo/2021/10/13612434-tregua-durou-pouco-ciro-gomes-volta-a-criticar-lula.html


        

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Análise: Silveira, escudo ideológico

 

        Brasil, 2020. Em vários pontos do país, diversos eventos naquele ano marcaram o ápice bolsonarista via manifestos populares apoiadores de classe média financiados por milicos e parlamentares bolsonaristas. Eram os atos antidemocráticos, que foram dirigidos especialmente para o STF.
        Basicamente, todos os ministros eram atacados, mas dois deles se destacaram: Luiz Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. O primeiro por responder às fakes de Bolsonaro sobre voto eletrônico, e o último, por determinar prisões de influencers, políticos e outros bolsominions como Sara Winter.
        Brasília, 2021. Ataques antidemocráticos ainda continuaram no ápice da sindemia de C19, mesmo havendo mais de 4 mil mortes em um dia de março. O ministro Alexandre de Moraes se destacaria ainda mais como principal alvo do presidente Bolsonaro e dos bolsominions
        Mais tarde, com a vacinação se iniciando e a CPI da C19 idem, manifestos populares de esquerda voltaram às ruas criticando o governo e os ataques antidemocráticos, ao sabor das seguidas denúncias repercutidas nas mídias de corrupção no governo em vários ministérios e nas FFAA, criando-se assim uma correlação de forças contrárias que iriam mostrar um país bem polarizado para 2022.
        Brasília, 2022. Enfim, em toda a frente governista no parlamento1, manifestos de suposta defesa aos partidos ou ideais neonazistas em vídeos ou podcasts nas redes sociais deram o que falar, no calor da guerra Rússia x Ucrânia. Enquanto isso, o centrão duro de Lira tem lucrado mais do que a própria Defesa militar.
        E foi em meio a esse turbilhão de provocações, um parlamentar governista em especial volta de novo à toma: o deputado Daniel Silveira. Não tanto pelos atos antidemocráticos que protagonizou no ano anterior, mas porque desde então, reiteradamente, desrespeitou determinações de Alexandre de Moraes (STF).
        Um belo dia oficiais de Justiça meteram em Daniel a tornozeleira eletrônica para que, depois, ele simplesmente deixasse ela descarregar a bateria e não recarregar. Uma mostra de ser um recurso frágil em casos reiteradamente indisciplinados e sociopáticos como esse cara alçado a parlamentar.

Indulto da graça: significado simbólico

        Diante de toda a mixórdia, na qual o Congresso de Lira nada fez, apesar das críticas da oposição, Bolsonaro lançou um decreto de indulto da graça a Daniel Silveira. A polêmica bombou nas mídias e redes sociais, nas quais os bolsominions declararam presidente e deputado heróis.
        Enquanto Bolsonaro discursava em tom autoritário atiçando apoiadores em um evento público, os ministros do STF escrutinavam criticamente o documento do indulto para, enfim, o declararem sem validade legal. E, acreditem, não foi tanto assim por conta do conteúdo, como a mídia fez geral pensar.
        A invalidez legal do indulto já era sabida entre os ministros, que na verdade viram se tratar de mais uma estratégia do presidente em alimentar a crise institucional, que já se arrasta há mais de um ano, enquanto Guedes seguia em paz contra os investimentos públicos e a economia popular.
        Mas não foi só por conta das ações de Guedes que Bolsonaro fez isso. A coisa foi um fôlego extra para que os militares agissem contra o TSE em relação ao controle das urnas eletrônicas. Foi logo após o episódio do indulto a Silveira que Barroso escorregou na lama2 ao convidar milicos no TSE.
        Razão da invalidez- a razão foi de âmbito legal. Pois Daniel Silveira já havia sido condenado a 8 anos e 9 meses de prisão pelo STF, por 10 votos a 1. O 10º voto foi de André Mendonça, que mesmo sendo pastor próximo de Bolsonaro, viu que Constituição é quem manda nessas coisas e não a Bíblia.
        Ou seja, o fato de ter sido lançado como decreto presidencial previsto na Constituição não o torna imune à lei. E o seu conteúdo, em si, não anula a determinação feita pelo STF, que considerou outros dispositivos que dão sustentação para julgar e determinar uma sentença.
        Daniel não atentou sozinho contra a democracia e as instituições. Teve ajudinha dos seus parças do Gabinete do Ódio, do extinto 300 pelo Brasil, além de caminhoneiros liderados pelo Zé Trovão. Mas, a imunidade parlamentar não o livra de ser julgado pelo STF, o grande guardião constitucional.
        E quanto a Zé Trovão e Sara Giromini, que fim eles tiveram? Segundo alguns, Zé teria voltado ao Brasil e se entregado, e Sara, a única presa entre todos, atualmente estaria no México, casada com um suposto milionário da badaladíssima (e violenta) Cancun. Os demais estão dispersos e foragidos.
        Voltando ao caso: mesmo com a invalidez legal do indulto Daniel Silveira segue acreditando que o mesmo o protege, transitando tranquilamente na tribuna, mesmo não podendo participar de votações. Vale a ignorância, em que os músculos seguem à frente do cérebro.

        Aliás...- dentro de toda essa temática, vale ressaltar os pontos que torna tão fácil compreender por que Bolsonaro deu o indulto da graça a um político nulo como Daniel Silveira. Sua índole sociopática e a fidelidade canina ao bolsonarismo sem se importar com as consequências agradam o presidente e seus filhos. Um escudo ideológico. Isso para a famiglia é tudo.
        Em si, esse fato pode parecer uma cortina de fumaça para a dura realidade brazuca. Mas ele tem os seus perigos. O mais importante deles, talvez, esteja na intenção de Bolsonaro de causar uma ruptura institucional, o arrebentar da corda após ser esticada ao máximo. Mas... calma.
        Ainda resta algum funcionamento institucional, principalmente após as falas de Barroso e, mais recentemente, do colega Edson Fachin no TSE, que afirmou serem as eleições tomadas pelas "forças desarmadas", após confirmada a segurança das urnas eletrônicas testadas pelos hackers profissionais.
        Os cães de guarda do bolsonarismo rosnam, mas ainda não mordem de arrancar pedaço.

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Imagem: Google

Notas da autoria
1. O dep. federal Kim Kataguiri, o estadual paulista Arthur do Val e outros pautaram polêmicas em torno da criminalização do nazismo nas redes sociais. Apesar das ameaças de cassação, eles continuam impunes.
2. Barroso convidou militares para o TSE, o que para algumas mídias permitiria a eles tomar controle das eleições supondo uma estratégia golpista junto a Bolsonaro. Barroso não se arrepende do convite e ainda autorizou monitoramento de praxe das urnas diante dos milicos.

Para saber mais
- https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61187280 (polêmico indulto tornado ilegal
- https://www.nexojornal.com.br/expresso/2022/05/08/Como-o-convite-aos-militares-se-virou-contra-o-TSE-na-elei%C3%A7%C3%A3o
        
        

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Análise: o caríssimo mercado desregulamentado

 
        Brasil, corrida eleitoral 2018. Reforçando a onda antipetista, foi vazado um vídeo de funcionários em estacionamento da Havan, todos com a camiseta estampada com Meu partido é o Brasil sendo coagidos a votar em Jair Bolsonaro, sob ameaça de demissão sumária. A fonte revelou a autoria: Luciano Hang, o papagaio milionário dono da rede popularmente conhecido como Veio da Havan. 
        Processado pelo MPT graças ao acesso ao vídeo-denúncia, Hang acabou sendo condenado pela Justiça a se explicar após negativas, e se justificou: "se a esquerda vencer de novo, terei que demitir, fechar a empresa e ir embora do país". Descaramento ou deboche? Decidam.
        A Havan surgiu em 1986, cresceu, lucrou na era PT e já sofreu denúncias no MPT por jornadas excessivas de trabalho, suspeitas de condições insalubres de trabalho e, como outros megarricos, dívidas previdenciárias milionárias e por violação de direitos trabalhistas. 
        São Paulo, abril 2021. Vazou notícia de que uma galera atuante na gigante de e-commerce estadunidense Amazon idealizou criar um sindicato por sua proteção quando em potenciais denúncias de abusos da empresa. Além do clima ruim, a ideia era de denunciar abusos como jornada excessiva ou proibição de ir ao banheiro ou de comer.
        Devido à frequência de denúncias entre os empregados dos abusos supracitados, desenvolvedores de TI da Amazon criaram um aplicativo que todos os empregados devem ter. Mas, tal aplicativo carrega em si um monitor automático de vocábulos, que "ouve" os diálogos e os sinaliza direto aos chefes.
        Os vocábulos se referem a denúncias de abusos patronais sobre relações e carga horária, estando em lista grande que inclui: sindicato, banheiro, bullying, ética, ameaça, assédio, queixa, petição, mestre, escravo, diversidade, equidade, plantation, trabalho escravo e outros.
        Idem, julho de 2021Durante manifestos populares no Brasil, um grupo teria incendiado a estátua do bandeirante paulista Borba Gato, com forte reflexo na mídia e nas redes sociais. Mais tarde, se atribuiu a "destruição" a entregadores de aplicativo do iFood que estava em greve, liderados por Paulo Galo.
        Ricaços, grande mídia e políticos acusaram o grupo de vandalismo. Ativista de inteligência política notável, Galo desmentiu o chilique: a estátua só teve a fuligem da fumaça. Daí, a prefeitura de Sampa limpou o monumento incólume do bandeirante cujo papel controverso já foi tratado aqui.
        EUA, 2021. Operários no ramo de proteína aviária nos EUA estão sendo obrigados a usar fralda geriátrica durante o expediente. A denúncia chegou no relatório da Oxfam America, ONG global de direitos humanos: "não é só a dignidade que sofre: a pessoa corre sério risco de saúde", aponta. 
        Relata-se também hostilidade dos supervisores, que ameaçam de punições e demissões quando os operários pedem para ir ao banheiro. E quando podem ir, as filas já estão longas e os operários acabam urinando e defecando nas roupas, pois é frequente que as fraldas, quando usadas, devem ser trocadas.
        Na sede da Tyson no Arkansas, uma funcionária passou a usar fralda após urinar na roupa por não poder ir ao banheiro. Uma colega urinou na própria estação de trabalho, pelo mesmo motivo.
        As principais empresas acusadas são Tyson Food Inc., Pilgrims Pride Cop., Perdue Farms Inc. e Sinderson Farm Inc. Outras empresas aparecem em escala menor.
        Brasil, março de 2022. "Todos os dias eram horríveis. Me chamavam de picolé de piche, mão virada, viadinho", relata um funcionário da rede McDonalds à advogada trabalhista Betina Santos. Essa é apenas uma das 98 denúncias de assédio sexual, moral e racial enviadas ao MPT só em 2021.
        A advogada do trabalho Betina Santos, dos movimentos União Geral dos Trabalhadores (UGT) e Sem Direitos não é Legal, destaca: "todos os trabalhadores que chegam até nós estão emocionalmente desgastados". O inquérito de assédio está em sigilo no MP, que se recusou a falar sobre o caso com a imprensa.
        Apesar do sigilo, a maior parte das denúncias contra a rede parece se concentrar em São Paulo, estado líder, com mais hamburguerias. Mas, só o caso paulista nos dá uma ideia da dinâmica das ocorrências de assédio na franquia, muitas delas como denúncias de pesado teor.

Um problema antigo

        Alguns dizem que a Lei Áurea/1888 abriu portas para as futuras leis trabalhistas. Passa-se mesmo essa impressão, mas faltou um 2º artigo que criasse a condição de trabalhador livre assalariado aos libertos: a maioria ficou à revelia, sem trabalho e improvisando casas em locais baldios.
        Anos depois, imigrantes fixados nas cidades e parte dos libertos conseguiram trabalho com ganho mensal variável, com descanso eventual em domingos, o que era pouco diante de tanto trabalho duro. Influenciados por imigrantes, brasileiros pobres e libertos lutaram por uma lei trabalhista. E esta veio. 
        Em 1/5/1943, Getúlio Vargas a assinou diante de operários que lotaram as arquibancadas do São Januário (Rio). A CLT aprimorou e regulou regras trabalhistas preexistentes com salário mínimo como menor ganho legal, férias de 30 dias e jornada de 48h. A massa fez festa. 
        A classe patronal sorriu. Para acalmar os rebeldes, o ditador definiu direitos e deveres para os dois lados, assimilando propostas dos comunistas como 13º, férias e licenças em geral remuneradas, estas últimas em até 3 meses. Assim se seguiu a CLT, até que veio a Const.Federal/1988.
        A CLT absorveu propostas previstas pela Carta de 1988 (direito de greve, licença-maternidade a partir do 7º mês de gestação, jornada de até 44h e adicionais ao salário base como vales-transporte e alimentação, e insalubridade/ periculosidade para profissões em ambientes especiais e perigosos).
        Mesmo sem agradar gregos e troianos, pois não evitou protestos, a CLT protegeu trabalhadores e empresas solidamente por 74 anos. Até que, em novembro de 2017, o então governo Temer sancionou a Lei 13467, que altera a CLT impondo novos vínculos de trabalho e pejotização generalizada. 
         A nova lei foi muito comemorada pela direita política, a elite econômica e grande mídia. O povão amargou. Mantendo direitos fundamentais, essa nova CLT assimila artigos do decreto 9507/2018, que torna irrestrita a terceirização tanto em entidades públicas quanto privadas.
        Mas tudo isso não satisfaz o governo atual, do maestro Paulo Guedes e o presidente da Câmara Arthur Lira, submarinos ao talento macabro de Jair Bolsonaro em alienar a massa, incitar ódio entre os seus fãs alucinados e enraivecer seus opostos. Daí a geral só ver que está na merda após acordar tarde.
        Hoje, mesmo descontente, a geral celetista vai se adaptando às novidades. A relativa (in)segurança jurídica contra abusos patronais é bem percebida, daí o silêncio e a resignação serem as marcas mais visíveis dessa mudança. A CLT existe, mas não protege como antigamente. Os sindicatos pioraram, mas continuam um mal necessário.
        E mais: a propaganda midiática de "mais empregos" com a reforma da CLT foi um engodo total, apesar dos novos vínculos pautados com o avanço do e-commerce. O "mais emprego" foi só bobagem: os novos postos formais de trabalho não fazem cócegas nas alta de desemprego e informalidade que afetam quase 80 milhões de brasileiros.
        Abusos no trabalho via aplicativo- o trabalho por aplicativo foi o resultado mais visível da CLT "nova" pelo senso comum, além da menor segurança jurídica. Só quem trabalha por aplicativo sabe do real significado dessa reforma na prática: nada a ver com aquela propaganda midiática.
        Exemplos notáveis de trabalho por aplicativo são as entregas (o popular delivery) de alimentos, remédios e outros produtos (e-commerce); o sistema de "táxis alternativos" como Uber, 99 e outros; serviços de hotelaria como Airbnb e Trivago; e-books e e-bibliotecas como a da Amazon; etc.
        Lojas de departamentos como Americanas, Casas Bahia, Casa&Vídeo e Magazine Luíza apostam forte no e-commerce com seus respectivos sites, se associando a plataformas de delivery para levar seus produtos ao cliente. A chinesa Shopee é puro e-commerce com aplicativo próprio de entrega. 
        A pandemia de C19 aqueceu explosivamente o e-commerce no mundo, e no Brasil nem se fala. Com desemprego e informalidade em alta, a maior parte das novas ocupações reconhecidas foi nesses trabalhos por aplicativos. Mas, como é e funciona o vínculo trabalhista? Isso é bom ou ruim?
        Conhecido como "uberização", o vínculo trabalhista com uma empresa dona do aplicativo "utiliza mão-de-obra sem incidência de encargos trabalhistas com os prestadores de serviços cadastrados, que são usualmente contratados como parceiros", dizem Natália Neves e Julianas Dias, autoras do texto O fenômeno da uberização nas relações de emprego, de 2021.
        Segundo as autoras, trata-se, na prática, de um tipo de trabalho informalizado, em que a dona do aplicativo arrecada até 90% do faturamento produtivo de cada prestador. Uma discrepância, em que os prestadores se matam de trabalhar para obterem um quase salário mínimo por mês.
        Abusos da Uber- não é por acaso que a uberização é um tema que desafia a Justiça do Trabalho. Matéria recente do The Intercept Brasil aponta detalhes do esquema da Uber visando impedir a Justiça de reconhecer o vínculo trabalhista de seus "parceiros". E tudo por conta de uma briga na Justiça.
        Em BH, um motorista foi desligado da Uber após 2 anos de prestação de serviços. O homem foi à Justiça na luta para comprovar seu vínculo trabalhista, por hora extra e o adicional de trabalho noturno resultando em R$ 100 mil. A 1ª instância da 46ª Vara do Trabalho negou o pedido do motorista.
        Segundo a sentença, "o motorista não precisa ter contato com a Uber para para avisar que não irá trabalhar em certo dia, por exemplo, como evidência de insubordinação - essencial à caracterização de vínculo empregatício". O TRT-3 ainda concordou com a sentença: vitória da Uber.
        Coube recurso. Em fev/2022 o motorista recorreu. A 6ª Turma do TST julgou e deu a causa como legítima, apesar de tudo parecer favorável à empresa. Opa!, virada para o motorista, quando a derrota era previsível? Não. Mas, como ele teria vencido a causa?
        Na véspera, houve um pedido em conjunto, entre empresa e trabalhador, que foi apresentado para retirar o caso de pauta, visando dar lugar a um acordo entre as partes para ser homologada. No acordo, a Uber pagou ao ex-empregado R$ 12 mil para liquidar os problemas contratuais. Assim se homologou.
        O pagamento não significou uma vitória real ao motorista, pois os R$ 12 mil foram quase 10 vezes inferiores aos R$ 100 mil iniciais. E, mais ainda, a Uber venceu ao ter conseguido, com isso, impedir uma turma do TST de reconhecer o vínculo. O cara ganhou, na prática, uma esmolinha de cala-boca.
        A vedação ao reconhecimento jurídico de vínculo empregatício não é só da Uber. Outras empresas do tipo também lançam mão desse abuso primário contra seus prestadores, abrindo portas para todos os assédios e hostilidades como os dos casos já citados. 

Reflexões finais

        Na realidade prática, assédios, relações hostis e abusos concretos ocorrem em todos os vínculos, desde os tradicionais. Nem servidores públicos concursados escapam - aliás, nos serviços públicos, os assédios se caracterizam principalmente por questões hierárquicas e de poder.
        Todavia, nos vínculos mais "soltos" previstos pela nova CLT como o uberizado, o problema é mais profundo e concreto, fortalecido pela maior insegurança jurídica dos prestadores, que podem ficar à deriva socioeconômica com contratos findados arbitrariamente sem aviso prévio.
        Na prática, a realidade das vidas de trabalhadores recheadas de tolhimento de necessidade básica e hostilidades é, pelo menos no Brasil, uma derivação histórica da visão escravista dos superiores, e nos EUA e Europa, se obedece ao viés do "capitalismo moderno", mas usando meios algo... escravistas.
        Na questão de uberização, Natália Neves e Juliana Dias apontam que os os juristas em geral sabem de que se trata de "informalização formalizada" de trabalho, mais discrepante entre prestador-empresa e juridicamente mais fraca ou conivente. Eles sabem, claro, do poder econômico dessas empresas.
        São empresas trilhardárias. Uber e iFood, por exemplo, não têm uma moto ou carro sequer, mas seus prestadores devem pagar diárias pelo aluguel dos veículos, exceto os que usam os seus próprios para o trabalho, mas mesmo assim ganham muito pouco porque a sua parte faturada é mínima.
        Mas, nada como o poder da consciência de classe e de justiça para mudanças positivas, que devem surgir na mente dos próprios juristas trabalhistas. 
        Lula- o presidenciável petista propõe revogar a Lei 13467/2017. Ele se baseia no que assimilou no tour pela Europa, em especial na Espanha, que mitigou sua crise ao recriar lei que recuperou os direitos trabalhistas, atraiu investimentos privados, regulou o mercado, e reestatizou entidades privatizadas.
        A prosa com o primeiro-ministro espanhol, que explicou as políticas, refuta qualquer acusação de que a ideia de revogaço de leis antissociais pós-Dilma uma paranoia de Lula. E tudo indica que, para a reforma da CLT, haja somente alteração suficiente para recuperar os direitos trabalhistas perdidos.
        O problema é que Brasil e Espanha vivem realidades sociopolíticas diferentes agora. Desde a era Temer, melhorias sociais do PT foram ferradas aos poucos, até vermos o caos atual. E, se em 2023 o Legislativo continuar tão à direita, será bem difícil Lula conseguir melhorar a atual CLT.
        Para recuperar o Estado do estrago privatista via acionistas privados e as demissões massivas pelo fechamento de várias fábricas, o governo Lula encontrará muitos obstáculos dos congressistas à direita. Nessa hora, Lula usará de inteligência e argúcia políticas. 
        Para se ter uma ideia das duas qualidades de Lula, a escolha de Alckmin é puramente estratégica. O vice poderá um articulador político entre direita e esquerda para se chegar a acordo bilateral de políticas públicas, inclusive na necessária regulação do mercado. Quiçá, nisso ele vença esse dramático placar sociopolítico. 
        Esperamos. Pois, a julgar pelo andamento das reiteradas pesquisas, Lula será o único a combater o potencial eleitoral crescente de Bolsonaro. E esse será o primeiro de seus desafios.
        
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Imagens: Google (montagem: autoria do artigo)

Notas da autoria

Para saber mais
- https://trt-24.jusbrasil.com.br/noticias/100474551/historia-a-criacao-da-clt
- https://veja.abril.com.br/coluna/maquiavel/em-video-dono-da-havan-pressiona-funcionarios-a-votarem-em-bolsonaro/
- https://oglobo.globo.com/economia/emprego/para-aumentar-producao-empresa-sul-coreana-proibe-funcionarios-de-irem-ao-banheiro-9500825
http://fecosul.com.br/noticias/multinacionais_obrigam_funcionarios_a_usar_fraldas_e_proibem_ida_ao_banheiro
https://catracalivre.com.br/cidadania/denuncias-revelam-empresas-que-obrigam-funcionarios-usar-fralda-e-proibem-banheiro/
https://administradores.com.br/noticias/proibidos-de-usar-o-banheiro-funcionarios-recorrem-ao-uso-de-fraldas
https://www.cnnbrasil.com.br/business/com-horarios-de-trabalho-excessivos-funcionarios-da-amazon-urinam-em-garrafas/
https://theintercept.com/2022/04/06/amazon-aplicativo-banir-palavras-sindicato-banheiro-aumento/
- https://theintercept.com/2022/03/14/mcdonalds-assedio-sexual-racismo-acordos-judiciais/
- https://www.conjur.com.br/2021-out-29/opiniao-fenomeno-uberizacao-relacoes-emprego

CURTAS 98 - ANÁLISES (Brasil- Congresso)

  A GUERRA POVO X CONGRESSO                     A derrota inicial do decreto do IOF do governo federal pelo STF foi silenciosamente comemo...