segunda-feira, 2 de maio de 2022

Análise: o caríssimo mercado desregulamentado

 
        Brasil, corrida eleitoral 2018. Reforçando a onda antipetista, foi vazado um vídeo de funcionários em estacionamento da Havan, todos com a camiseta estampada com Meu partido é o Brasil sendo coagidos a votar em Jair Bolsonaro, sob ameaça de demissão sumária. A fonte revelou a autoria: Luciano Hang, o papagaio milionário dono da rede popularmente conhecido como Veio da Havan. 
        Processado pelo MPT graças ao acesso ao vídeo-denúncia, Hang acabou sendo condenado pela Justiça a se explicar após negativas, e se justificou: "se a esquerda vencer de novo, terei que demitir, fechar a empresa e ir embora do país". Descaramento ou deboche? Decidam.
        A Havan surgiu em 1986, cresceu, lucrou na era PT e já sofreu denúncias no MPT por jornadas excessivas de trabalho, suspeitas de condições insalubres de trabalho e, como outros megarricos, dívidas previdenciárias milionárias e por violação de direitos trabalhistas. 
        São Paulo, abril 2021. Vazou notícia de que uma galera atuante na gigante de e-commerce estadunidense Amazon idealizou criar um sindicato por sua proteção quando em potenciais denúncias de abusos da empresa. Além do clima ruim, a ideia era de denunciar abusos como jornada excessiva ou proibição de ir ao banheiro ou de comer.
        Devido à frequência de denúncias entre os empregados dos abusos supracitados, desenvolvedores de TI da Amazon criaram um aplicativo que todos os empregados devem ter. Mas, tal aplicativo carrega em si um monitor automático de vocábulos, que "ouve" os diálogos e os sinaliza direto aos chefes.
        Os vocábulos se referem a denúncias de abusos patronais sobre relações e carga horária, estando em lista grande que inclui: sindicato, banheiro, bullying, ética, ameaça, assédio, queixa, petição, mestre, escravo, diversidade, equidade, plantation, trabalho escravo e outros.
        Idem, julho de 2021Durante manifestos populares no Brasil, um grupo teria incendiado a estátua do bandeirante paulista Borba Gato, com forte reflexo na mídia e nas redes sociais. Mais tarde, se atribuiu a "destruição" a entregadores de aplicativo do iFood que estava em greve, liderados por Paulo Galo.
        Ricaços, grande mídia e políticos acusaram o grupo de vandalismo. Ativista de inteligência política notável, Galo desmentiu o chilique: a estátua só teve a fuligem da fumaça. Daí, a prefeitura de Sampa limpou o monumento incólume do bandeirante cujo papel controverso já foi tratado aqui.
        EUA, 2021. Operários no ramo de proteína aviária nos EUA estão sendo obrigados a usar fralda geriátrica durante o expediente. A denúncia chegou no relatório da Oxfam America, ONG global de direitos humanos: "não é só a dignidade que sofre: a pessoa corre sério risco de saúde", aponta. 
        Relata-se também hostilidade dos supervisores, que ameaçam de punições e demissões quando os operários pedem para ir ao banheiro. E quando podem ir, as filas já estão longas e os operários acabam urinando e defecando nas roupas, pois é frequente que as fraldas, quando usadas, devem ser trocadas.
        Na sede da Tyson no Arkansas, uma funcionária passou a usar fralda após urinar na roupa por não poder ir ao banheiro. Uma colega urinou na própria estação de trabalho, pelo mesmo motivo.
        As principais empresas acusadas são Tyson Food Inc., Pilgrims Pride Cop., Perdue Farms Inc. e Sinderson Farm Inc. Outras empresas aparecem em escala menor.
        Brasil, março de 2022. "Todos os dias eram horríveis. Me chamavam de picolé de piche, mão virada, viadinho", relata um funcionário da rede McDonalds à advogada trabalhista Betina Santos. Essa é apenas uma das 98 denúncias de assédio sexual, moral e racial enviadas ao MPT só em 2021.
        A advogada do trabalho Betina Santos, dos movimentos União Geral dos Trabalhadores (UGT) e Sem Direitos não é Legal, destaca: "todos os trabalhadores que chegam até nós estão emocionalmente desgastados". O inquérito de assédio está em sigilo no MP, que se recusou a falar sobre o caso com a imprensa.
        Apesar do sigilo, a maior parte das denúncias contra a rede parece se concentrar em São Paulo, estado líder, com mais hamburguerias. Mas, só o caso paulista nos dá uma ideia da dinâmica das ocorrências de assédio na franquia, muitas delas como denúncias de pesado teor.

Um problema antigo

        Alguns dizem que a Lei Áurea/1888 abriu portas para as futuras leis trabalhistas. Passa-se mesmo essa impressão, mas faltou um 2º artigo que criasse a condição de trabalhador livre assalariado aos libertos: a maioria ficou à revelia, sem trabalho e improvisando casas em locais baldios.
        Anos depois, imigrantes fixados nas cidades e parte dos libertos conseguiram trabalho com ganho mensal variável, com descanso eventual em domingos, o que era pouco diante de tanto trabalho duro. Influenciados por imigrantes, brasileiros pobres e libertos lutaram por uma lei trabalhista. E esta veio. 
        Em 1/5/1943, Getúlio Vargas a assinou diante de operários que lotaram as arquibancadas do São Januário (Rio). A CLT aprimorou e regulou regras trabalhistas preexistentes com salário mínimo como menor ganho legal, férias de 30 dias e jornada de 48h. A massa fez festa. 
        A classe patronal sorriu. Para acalmar os rebeldes, o ditador definiu direitos e deveres para os dois lados, assimilando propostas dos comunistas como 13º, férias e licenças em geral remuneradas, estas últimas em até 3 meses. Assim se seguiu a CLT, até que veio a Const.Federal/1988.
        A CLT absorveu propostas previstas pela Carta de 1988 (direito de greve, licença-maternidade a partir do 7º mês de gestação, jornada de até 44h e adicionais ao salário base como vales-transporte e alimentação, e insalubridade/ periculosidade para profissões em ambientes especiais e perigosos).
        Mesmo sem agradar gregos e troianos, pois não evitou protestos, a CLT protegeu trabalhadores e empresas solidamente por 74 anos. Até que, em novembro de 2017, o então governo Temer sancionou a Lei 13467, que altera a CLT impondo novos vínculos de trabalho e pejotização generalizada. 
         A nova lei foi muito comemorada pela direita política, a elite econômica e grande mídia. O povão amargou. Mantendo direitos fundamentais, essa nova CLT assimila artigos do decreto 9507/2018, que torna irrestrita a terceirização tanto em entidades públicas quanto privadas.
        Mas tudo isso não satisfaz o governo atual, do maestro Paulo Guedes e o presidente da Câmara Arthur Lira, submarinos ao talento macabro de Jair Bolsonaro em alienar a massa, incitar ódio entre os seus fãs alucinados e enraivecer seus opostos. Daí a geral só ver que está na merda após acordar tarde.
        Hoje, mesmo descontente, a geral celetista vai se adaptando às novidades. A relativa (in)segurança jurídica contra abusos patronais é bem percebida, daí o silêncio e a resignação serem as marcas mais visíveis dessa mudança. A CLT existe, mas não protege como antigamente. Os sindicatos pioraram, mas continuam um mal necessário.
        E mais: a propaganda midiática de "mais empregos" com a reforma da CLT foi um engodo total, apesar dos novos vínculos pautados com o avanço do e-commerce. O "mais emprego" foi só bobagem: os novos postos formais de trabalho não fazem cócegas nas alta de desemprego e informalidade que afetam quase 80 milhões de brasileiros.
        Abusos no trabalho via aplicativo- o trabalho por aplicativo foi o resultado mais visível da CLT "nova" pelo senso comum, além da menor segurança jurídica. Só quem trabalha por aplicativo sabe do real significado dessa reforma na prática: nada a ver com aquela propaganda midiática.
        Exemplos notáveis de trabalho por aplicativo são as entregas (o popular delivery) de alimentos, remédios e outros produtos (e-commerce); o sistema de "táxis alternativos" como Uber, 99 e outros; serviços de hotelaria como Airbnb e Trivago; e-books e e-bibliotecas como a da Amazon; etc.
        Lojas de departamentos como Americanas, Casas Bahia, Casa&Vídeo e Magazine Luíza apostam forte no e-commerce com seus respectivos sites, se associando a plataformas de delivery para levar seus produtos ao cliente. A chinesa Shopee é puro e-commerce com aplicativo próprio de entrega. 
        A pandemia de C19 aqueceu explosivamente o e-commerce no mundo, e no Brasil nem se fala. Com desemprego e informalidade em alta, a maior parte das novas ocupações reconhecidas foi nesses trabalhos por aplicativos. Mas, como é e funciona o vínculo trabalhista? Isso é bom ou ruim?
        Conhecido como "uberização", o vínculo trabalhista com uma empresa dona do aplicativo "utiliza mão-de-obra sem incidência de encargos trabalhistas com os prestadores de serviços cadastrados, que são usualmente contratados como parceiros", dizem Natália Neves e Julianas Dias, autoras do texto O fenômeno da uberização nas relações de emprego, de 2021.
        Segundo as autoras, trata-se, na prática, de um tipo de trabalho informalizado, em que a dona do aplicativo arrecada até 90% do faturamento produtivo de cada prestador. Uma discrepância, em que os prestadores se matam de trabalhar para obterem um quase salário mínimo por mês.
        Abusos da Uber- não é por acaso que a uberização é um tema que desafia a Justiça do Trabalho. Matéria recente do The Intercept Brasil aponta detalhes do esquema da Uber visando impedir a Justiça de reconhecer o vínculo trabalhista de seus "parceiros". E tudo por conta de uma briga na Justiça.
        Em BH, um motorista foi desligado da Uber após 2 anos de prestação de serviços. O homem foi à Justiça na luta para comprovar seu vínculo trabalhista, por hora extra e o adicional de trabalho noturno resultando em R$ 100 mil. A 1ª instância da 46ª Vara do Trabalho negou o pedido do motorista.
        Segundo a sentença, "o motorista não precisa ter contato com a Uber para para avisar que não irá trabalhar em certo dia, por exemplo, como evidência de insubordinação - essencial à caracterização de vínculo empregatício". O TRT-3 ainda concordou com a sentença: vitória da Uber.
        Coube recurso. Em fev/2022 o motorista recorreu. A 6ª Turma do TST julgou e deu a causa como legítima, apesar de tudo parecer favorável à empresa. Opa!, virada para o motorista, quando a derrota era previsível? Não. Mas, como ele teria vencido a causa?
        Na véspera, houve um pedido em conjunto, entre empresa e trabalhador, que foi apresentado para retirar o caso de pauta, visando dar lugar a um acordo entre as partes para ser homologada. No acordo, a Uber pagou ao ex-empregado R$ 12 mil para liquidar os problemas contratuais. Assim se homologou.
        O pagamento não significou uma vitória real ao motorista, pois os R$ 12 mil foram quase 10 vezes inferiores aos R$ 100 mil iniciais. E, mais ainda, a Uber venceu ao ter conseguido, com isso, impedir uma turma do TST de reconhecer o vínculo. O cara ganhou, na prática, uma esmolinha de cala-boca.
        A vedação ao reconhecimento jurídico de vínculo empregatício não é só da Uber. Outras empresas do tipo também lançam mão desse abuso primário contra seus prestadores, abrindo portas para todos os assédios e hostilidades como os dos casos já citados. 

Reflexões finais

        Na realidade prática, assédios, relações hostis e abusos concretos ocorrem em todos os vínculos, desde os tradicionais. Nem servidores públicos concursados escapam - aliás, nos serviços públicos, os assédios se caracterizam principalmente por questões hierárquicas e de poder.
        Todavia, nos vínculos mais "soltos" previstos pela nova CLT como o uberizado, o problema é mais profundo e concreto, fortalecido pela maior insegurança jurídica dos prestadores, que podem ficar à deriva socioeconômica com contratos findados arbitrariamente sem aviso prévio.
        Na prática, a realidade das vidas de trabalhadores recheadas de tolhimento de necessidade básica e hostilidades é, pelo menos no Brasil, uma derivação histórica da visão escravista dos superiores, e nos EUA e Europa, se obedece ao viés do "capitalismo moderno", mas usando meios algo... escravistas.
        Na questão de uberização, Natália Neves e Juliana Dias apontam que os os juristas em geral sabem de que se trata de "informalização formalizada" de trabalho, mais discrepante entre prestador-empresa e juridicamente mais fraca ou conivente. Eles sabem, claro, do poder econômico dessas empresas.
        São empresas trilhardárias. Uber e iFood, por exemplo, não têm uma moto ou carro sequer, mas seus prestadores devem pagar diárias pelo aluguel dos veículos, exceto os que usam os seus próprios para o trabalho, mas mesmo assim ganham muito pouco porque a sua parte faturada é mínima.
        Mas, nada como o poder da consciência de classe e de justiça para mudanças positivas, que devem surgir na mente dos próprios juristas trabalhistas. 
        Lula- o presidenciável petista propõe revogar a Lei 13467/2017. Ele se baseia no que assimilou no tour pela Europa, em especial na Espanha, que mitigou sua crise ao recriar lei que recuperou os direitos trabalhistas, atraiu investimentos privados, regulou o mercado, e reestatizou entidades privatizadas.
        A prosa com o primeiro-ministro espanhol, que explicou as políticas, refuta qualquer acusação de que a ideia de revogaço de leis antissociais pós-Dilma uma paranoia de Lula. E tudo indica que, para a reforma da CLT, haja somente alteração suficiente para recuperar os direitos trabalhistas perdidos.
        O problema é que Brasil e Espanha vivem realidades sociopolíticas diferentes agora. Desde a era Temer, melhorias sociais do PT foram ferradas aos poucos, até vermos o caos atual. E, se em 2023 o Legislativo continuar tão à direita, será bem difícil Lula conseguir melhorar a atual CLT.
        Para recuperar o Estado do estrago privatista via acionistas privados e as demissões massivas pelo fechamento de várias fábricas, o governo Lula encontrará muitos obstáculos dos congressistas à direita. Nessa hora, Lula usará de inteligência e argúcia políticas. 
        Para se ter uma ideia das duas qualidades de Lula, a escolha de Alckmin é puramente estratégica. O vice poderá um articulador político entre direita e esquerda para se chegar a acordo bilateral de políticas públicas, inclusive na necessária regulação do mercado. Quiçá, nisso ele vença esse dramático placar sociopolítico. 
        Esperamos. Pois, a julgar pelo andamento das reiteradas pesquisas, Lula será o único a combater o potencial eleitoral crescente de Bolsonaro. E esse será o primeiro de seus desafios.
        
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Imagens: Google (montagem: autoria do artigo)

Notas da autoria

Para saber mais
- https://trt-24.jusbrasil.com.br/noticias/100474551/historia-a-criacao-da-clt
- https://veja.abril.com.br/coluna/maquiavel/em-video-dono-da-havan-pressiona-funcionarios-a-votarem-em-bolsonaro/
- https://oglobo.globo.com/economia/emprego/para-aumentar-producao-empresa-sul-coreana-proibe-funcionarios-de-irem-ao-banheiro-9500825
http://fecosul.com.br/noticias/multinacionais_obrigam_funcionarios_a_usar_fraldas_e_proibem_ida_ao_banheiro
https://catracalivre.com.br/cidadania/denuncias-revelam-empresas-que-obrigam-funcionarios-usar-fralda-e-proibem-banheiro/
https://administradores.com.br/noticias/proibidos-de-usar-o-banheiro-funcionarios-recorrem-ao-uso-de-fraldas
https://www.cnnbrasil.com.br/business/com-horarios-de-trabalho-excessivos-funcionarios-da-amazon-urinam-em-garrafas/
https://theintercept.com/2022/04/06/amazon-aplicativo-banir-palavras-sindicato-banheiro-aumento/
- https://theintercept.com/2022/03/14/mcdonalds-assedio-sexual-racismo-acordos-judiciais/
- https://www.conjur.com.br/2021-out-29/opiniao-fenomeno-uberizacao-relacoes-emprego

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