terça-feira, 21 de junho de 2022

Análise: um sumiço, muitas versões

        Enquanto a geral reclamava da carestia de tudo e por vezes se discutia se haverá ou não eleição em outubro, as mídias noticiosas divulgaram sobre o desaparecimento de um brasileiro e um britânico na Amazônia, mais especificamente no vale do Javari.
        A divulgação do fato aconteceu justamente num momento algo delicado para o cenário sociopolítico brasileiro, pois o presidente Jair Bolsonaro estava em evento na Cúpula das Américas, nos EUA de Joe Biden.
       A coisa não soou bem para a equipe do presidente brasileiro, que se irritou com a divulgação do assunto em meio ao evento nos EUA. Mas, por quê? Bem, o objetivo do artigo é instigar reflexões sobre um fato que, mesmo com contornos aparentemente menos nebulosos no presente, ainda é visto em muitos prismas.

Bruno e Dom, ícones da floresta

        Vale conhecer, em linhas gerais e breves, as biografias das vítimas do fato em apuração.
        O indigenista- Bruno Araújo Pereira nasceu na Paraíba, mas cresceu em Pernambuco, onde, ainda garoto, se alegrava com histórias de expedições em lugares e contatos com povos desconhecidos. Mais tarde, se tornaria antropólogo especialista em povos originários da América do Sul.
        Em 2000 saiu de Recife para realizar o sonho de trabalhar na Amazônia. Em 2010 entrou na Funai para assumir funções do extinto cargo de sertanista, tornando-se indigenista. Assumiu a Coordenação de Povos Isolados do Vale do Javari, saindo em 2016 para resolver um conflito intertribal na região.
        Protetor- iniciada com desconfiança, a convivência de Bruno com os indígenas do Javari se tornou familiar e íntima. Os indígenas o viram como seu protetor, e conhecedor da intimidade da relação entre preservação cultural e ambiental. E, com isso, perdeu o sossego por conta de ameaças.
        A era Jair Bolsonaro selaria o seu destino. Ainda em 2019, foi exonerado pelo então ministro da justiça Sérgio Moro, e passou a expedicionar voluntariamente nas florestas. Muitas de suas expedições foram cobertas por um importante jornalista e amigo: Dom Phillips.
        O jornalista- Dominic Mark Phillips nasceu em um condado ao noroeste da Inglaterra. Era ainda jovem quando decidiu seguir a carreira jornalística. Aos poucos construiu um currículo sólido, como colaborador em importantes mídias como Washington Post, The New York Times, Financial Times e na britânica The Guardian, com reportagens internacionais.
        Também escritor, escreveu Superstars DJs were we go!: the rise and fall of the superstar DJ, em 2009, versando sobre a ascensão desses artistas nos anos 1990 e queda nos anos 2000 no Reino Unido. Estava preparando um livro sobre a Amazônia, Como salvar a Amazônia?.
        Em 2007 se radicou em Salvador, Bahia, onde se casou com Alessandra. Além de jornalista, Dom voluntariamente dava aulas de inglês para moradores pobres. Apaixonado pela Amazônia e seus povos, cobriu as expedições de um amigo especialmente valioso: Bruno Pereira. Amizade esta que propiciou uma visibilidade brasileira, mas que ajudou a selar o seu destino.

As muitas versões e ligações de um fato

        Segundo menções na mídia, Bruno havia avisado à família que iria partir para a direção de Atalaia do Norte, no oeste amazonense, próximo à tríplice fronteira com Colômbia e Peru, com Dom Phillips, que já o acompanhava nas coberturas como preparativo para seu novo livro.
        Segundo o G1 (Globo), Bruno e Dom estavam com sua equipe e dois guias indígenas em canoa, quando passaram pela comunidade ribeirinha de São Rafael, faltando pouco mais de rio para chegar a uma aldeia em Atalaia do Norte, quando a equipe teria então sumido.
        O desaparecimento foi anunciado pela União dos Povos do Vale do Javari (Univaja), via Manoel Churimpa, líder indígena e amigo de Bruno. Segundo a entidade, Bruno, servidor de carreira, recebia constantes ameaças de morte por parte de garimpeiros, madeireiros e pescadores ilegais. 
        Antes da Polícia Federal, as buscas foram iniciadas pela própria Univaja, que após o insucesso confirmou o desaparecimento. Foi então que a equipe da entidade entrou em contato com autoridades, a começar pelo Comando Militar da Amazônia (CMA) para comunicar o fato.
        Exército- O CMA foi contatado pela Univaja e então soltou uma nota, na qual disse que "aguarda autorização superior" para iniciar as buscas. Direta e curta, a nota levou saraivada de críticas nas redes, e logo veio nova nota, para abafar a saraivada crítica. Mas, já estava instalada mais fedentina no ar.
        Mídias perceberam que um grupo pequeno de militares foi para a busca, de um caminhãozinho caçamba para um pequeno barco. Não houve sequer helicóptero, auxiliar tão essencial em buscas pela selva fechada. Isso só contribuiu para piorar a desconfiança pública na instituição e no governo.
        PF- acionada para investigar o fato, a PF prendeu o pescador Amarildo da Costa Oliveira (Pelado) em 7/6, e em 8/6, o seu irmão Oseney. Segundo informes da PF à mídia, os dois suspeitos confessaram os crimes, envolvendo um terceiro suspeito, que foi capturado pelos agentes mais recentemente.
        Com a forte repercussão internacional, alimentada pelo sumiço do britânico, houve uma sucessão de informações atravessadas, como vísceras humanas e objetos pessoais de Bruno e Dom achados. Outro informe era o do encontro dos dois corpos - o que ouriçou Bolsonaro e sua equipe nos EUA.
        Depois houve o "desmentido oficial" de que os corpos ainda não tinham sido encontrados, mas já não havia mais como dissolver o clima fedido já instaurado. Clima esse que ainda perdura, mesmo após a perícia confirmar os restos mortais como sendo de Bruno e Dom em notícia mais recente.
        Versões- o desencontro aparente de informações fez com que o fato fosse alvo de interpretações as mais diversas, o que deixou, por óbvio, o governo em situação desconfortável diante do mundo (já não estava melhor antes mesmo).
        Ameaças de morte- nos últimos anos Bruno Pereira já não tinha mais sossego algum. Manoel Churimpa contou que ele relatara ameaças dos citados grupos ilegais, ainda na era Temer. O principal teor era de morte, revelando o quanto o currículo do indigenista os incomodava.
        Mesmo sem relatos divulgados, é muito possível que Dom também recebesse ameaças, justamente por acompanhar Bruno nas expedições. Além de realizar o sonho de conhecer a floresta, o inglês via nas expedições o conteúdo para seu livro em andamento sobre a Amazônia e seus povos originários.
        Dom foi ao encontro do presidente Jair Bolsonaro com jornalistas em 2019, e perguntou a ele sobre o que fazer diante dos dados assustadores de devastação na Amazônia. A resposta fria e seca: "primeiro você tem que entender que a Amazônia é do Brasil e não de vocês". Em post posterior no Twitter, o presidente classificou a pergunta como "cobiça".
        "Crime político"- diante das manifestações populares virtuais nas redes, que cobram por revelar os mandantes das mortes de Bruno e Dom, a PF negou, em nota, que os homicídios foram executados a mando de alguém que porventura chefie, ou não, alguma organização criminosa.
        Todavia, a Univaja contesta a nota da PF, e não só por base nas ameaças de morte recebidas pelo indigenista. Há outras variantes, a começar pela evidência escancarada dos crimes de execução, como a canoa de Dom e Bruno, resgatada de 20 m de profundidade d'água e cheia de sacos de areia.
        A Univaja aponta que o crime organizado se movimenta em grande parte da Amazônia, com tráfico de drogas e armas, e caça, pesca, extração de madeira e minérios ilegais em áreas públicas preservadas e terras indígenas. Movimentando muitos milhões e atraindo gente de vários países, o crime organizado local age com tutela política e o ensurdecedor silêncio da omissão judiciária.
        Posição de Bolsonaro- o presidente Jair Bolsonaro ainda estava na Cúpula das Américas quando se irritou com a sucessão de informes midiáticos sobre o encontro dos corpos. O que foi percebido pelos presentes, inclusive jornalistas e o presidente estadunidense Joe Biden.
        Questionado pela mídia ao voltar ao Brasil, Bolsonaro disse que "eles se aventuraram em um local perigoso", alegando que as piranhas podem tê-los comido. A fala depreciativa do presidente aumentou a pressão internacional e deu mais trabalho à imprensa e à PF para melhorar a imagem do governo.
        A declaração de pesar presidencial foi tão fria quanto todas as feitas a cada fato trágico noticiado, inclusive as mortes pela C19. Apesar da repercussão internacional, ele sequer se dirigiu às famílias de Bruno e Dom, mesmo protocolarmente. Naturalmente, essa frieza alimenta suspeitas sobre ele.
        E, nesse dia 17, chamou a atenção pública a divulgação midiática da motociata em Manaus, com o sorriso de indisfarçável regozijo. Na capital do mesmo estado em que Bruno e Dom sumiram. 

O fato repercutiria sem Dom Phillips? (valem outras reflexões finais)

        Muito se tem conjecturado, quase sempre em tom de forte certeza, que os assassinatos de Bruno e Dom só deu tamanha repercussão porque "Dom é europeu e branco". Essa afirmativa que aponta para o suposto sobrevalor de um determinado povo, em geral branco e ocidental sobre os demais, vem sendo entoada para este fato, como em tantos outros. Virou parte de nossa cultura.
        Mas, tal afirmativa pode não ser verdadeira aqui. Servidor de carreira da Funai, antropólogo como sua esposa, a quem ajudou na formulação da tese de doutorado, dono de currículo venerável, Bruno era um profundo conhecedor dos povos isolados do ainda relativamente bem preservado vale do Javari.
        Remixada pelo produtor musical André Abujamra, a canção indígena entoada por Bruno, em vídeo que viraliza nas redes em todo o mundo é cantada em katukina, língua dos Kanamari, do Javari. Este é apenas um dos quatro idiomas originários que Bruno dominava com fluência. Talvez devido a isso, ele se destacava como profissional e ativista.
        Mesmo sendo inglês e também dono de respeitável currículo, e ainda dando aulas voluntárias de inglês para alunos carentes de Salvador, Dom respeitava profundamente o amigo brasileiro e sua luta pela preservação da Amazônia e de seus povos com suas culturas ancestrais. 
        Dom não guiava Bruno, Bruno é quem guiava Dom, e dava a última palavra sobre para onde ir e o que fazer. A sua proximidade com os indígenas se deu graças ao brasileiro, este sim "um escudo para a floresta e os indígenas", segundo o líder indígena Manoel Churimpa.
        
        Mas, ironicamente, pareceu ter sido "válida" a presença do britânico na tragédia para que déssemos a necessária visibilidade para um cargo que, mesmo extinto oficialmente por lei, sobrevive em suas funções de desbravar recantos antes desconhecidos e descobrir povos ainda desconhecidos ou isolados por completo: o sertanista.
        Como sertanistas, os irmãos Villas-Boas desbravaram as florestas na região do Xingu e lutaram pela política de demarcação de terras indígenas como forma de proteger a floresta. Por trás da aparência romântica, o cargo sempre abriu portas para exposições nada alvissareiras. Sim, os irmãos já depararam com criminosos nas profundezas da floresta.
        A ditadura acentuou a ambiguidade romântica-perigosa ao sertanismo. Por trás das propagandas na TV como desbravadores das riquezas florestais, com a Transamazônica de garota-propaganda, esses servidores enfrentavam perigos não só de criminosos locais, como a feroz vigilância dos militares que os acompanhavam e matavam indígenas friamente.

        E, voltando ao tema central do texto, cabe salientar o quanto estes homicídios revelam sobre o brutal aparelhamento institucional que caracteriza o governo Bolsonaro. Ao negar haver mandante dos crimes, a PF parece muito mais afirmar a sua existência - que é inconteste de tão palpável.
        As declarações de Bolsonaro a encobrir a ação criminosa ao alegar os perigos naturais dos rios da região para explicar as circunstâncias dos fatos, bem como a sua completa frieza em relação ao pesar dos familiares das vítimas, revelam como ele legitima as atividades ilegais e indiscriminadas na floresta amazônica.
        Como salientaram as lideranças da Univaja, não há lógica em oito criminosos terem executado os dois homens com requintes de crueldade e cálculo, por "simples vontade". Há mandante, e certamente é este um agente político. O problema é apontar o boi errado para lhe dar um nome julgado como certo.
        Bruno Pereira era tão conhecido das autoridades amazonenses quanto dos indígenas com quem se relacionava com tanta intimidade. Era um amazônida de coração, abertamente indigenista. E, daí, fosse um cabra marcado para morrer nas mãos daqueles que são tutelados pela classe política e, quiçá, pelos empresários que lucram com a exploração ilegal de recursos.
        Bruno Pereira e Dom Phillips morreram pela floresta. Dom completou a visibilidade do sertanismo nas coberturas das expedições do amigo brasileiro, mostrando a face mais fascinante e contributiva para nosso saber a respeito das riquezas da floresta e dos que há milênios trabalharam para mantê-la de pé.
        
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Imagem: Google 

Notas da autoria
1.
Para saber mais
https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2022/06/06/saiba-quem-e-bruno-pereira-indigenista-e-servidor-da-funai-dado-como-desaparecido-no-amazonas.ghtml
- https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2022/06/15/bruno-pereira-indigenista-era-um-dos-maiores-especialistas-em-povos-isolados-do-brasil-e-realizou-sonho-de-trabalhar-na-amazonia.ghtml
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Dom_Phillips
- https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/06/06/dom-phillips-saiba-quem-e-o-jornalista-ingles-dado-como-desaparecido-no-amazonas.ghtml
- https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/06/15/dom-phillips-jornalista-fazia-trabalho-voluntario-teve-embate-com-bolsonaro-e-sentia-amor-profundo-pela-amazonia.ghtml
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Desaparecimento_de_Bruno_Pereira_e_Dom_Phillips
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Assassinatos_de_Bruno_Pereira_e_Dom_Phillips
- https://www.youtube.com/watch?v=ULZRStkng30 (rede TVT - crime de pescadores é só a ponta do iceberg)
- https://www.youtube.com/watch?v=FiDi9dfDP94 (rede TVT - para Univaja, os assassinatos são políticos)
- https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ansa/2022/06/17/pf-descarta-mandante-na-morte-de-dom-e-bruno-univaja-contesta.htm
- https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/06/17/dom-e-bruno-univaja-contesta-investigacao-da-pf-que-descartou-mandante.htm

         

 

domingo, 12 de junho de 2022

Análise: a ideologização de uma guerra

 

        Todos sabemos que Ucrânia e Rússia estão numa guerra por enquanto concentrada no pequeno país, que por quase 8 décadas foi uma das repúblicas da finada URSS e hoje é uma nação independente, tendo à frente o presidente Volodymir Zelensky.
        Mas, embora ainda local, a guerra atrai olhos do mundo todo. A Rússia é uma superpotência armada e grande exportadora de cereais, minério e gás natural. A Ucrânia tem sido a rápida passagem disso tudo para a Europa, com gasodutos russos no subsolo.
        Sabemos que os EUA convidaram a Ucrânia para entrar na OTAN, como o fez quase toda a Europa, que agora teme a piora da investida russa com as sanções econômicas impostas pelos EUA.
        Enquanto isso, aqui no Brasil, desde 2019 os bolsominions verde-amarelos desfilam nas ruas não só com as bandeiras brazuca, estadunidense e israelense: também defendem Zelensky com unhas e dentes. Assim como a grande mídia. E agora se vê a polarização se estender aos dois países irmãos.

Irmandade cultural e histórica (resumo)

        Quando se fala de suas origens séculos e séculos atrás, Rússia e Ucrânia quase se confundem, pois foram quase uma coisa só. Isso se explica bem. Russos e ucranianos têm a mesma origem étnica, seus idiomas muito parecidos, têm a mesma dominância da fé cristã ortodoxa russa.
        Na Antiguidade, Rússia ocidental e Ucrânia eram povoadas principalmente por tribos eslavas que cruzaram com germânicos. Cristianizados na idade média, fundaram vários feudos com fé ortodoxa, ao lado de minorias judaicas e ciganas. Os monarcas eram chamados de czares (reis, em russo).
        No século XIX, Ucrânia era parte da antiga Prússia, que dominava a Alemanha oriental. Em 1917, ela se tornou uma das repúblicas soviéticas da URSS, até o fim desta em 1991. 
        Se em toda a história as muitas relações com outras culturas e as guerras não destruíram a solidez cultural eslava, não é a guerra atual que destruirá a irmandade presente.

Um pouco de Putin e Zelensky

        Putin- Wladimir Putin nasceu em Leningrado em outubro de 1952, filho de trabalhadores. Garoto rebelde e de médio rendimento escolar, aprendeu o Sambo, arte marcial soviética de karatê, judô e luta livre, aos 13 anos, que o tornou muito aplicado e objetivo. Na Universidade Estatal local, entrou no PC-URSS1 e se formou em Direito.
        Entrou no Comitê de Segurança Nacional (KGB) em seguida, ascendendo até se tornar chefe, na era Gorbatchov, cuja abertura política observou, bem como o fim da URSS, a criação da Comunidade dos Estados Independentes (CEI) e as eleições presidenciais diretas por Boris Yeltsin: a porta se abriu.
        Governo- Eleito presidente, Putin criou a Federação Russa, meteu política econômica de controle inflacionário e cambial, abriu o país a empresas de fora, e principalmente, implementou forte inovação tecnológica, em especial no armamentismo de guerra, tornando a Rússia a mais temida potência global.
        Fundamentadas em evidências, pesam fortes acusações internacionais em direitos humanos, como redução da liberdade de imprensa e perseguição a uma minoria étnicas e grupos LGBTQUIA+.
        Zelensky- judeu, Volodymyr Zelensky nasceu em janeiro de 1978 (Kryvvyi Rih, Ucrânia). Jovem, tornou-se ator, roteirista, cineasta e fundou o grupo Kvarta/95, que produziu a série de humor político Servo do Povo, na qual fez o papel de presidente do país. Formou-se em Direito, sem atuar na área.
        Transformou a ficção em realidade ao fundar o partido Servo do Povo e se candidatar a presidente da República, anunciando uma plataforma antissistema2, como na sua série. Com isso, teve importante apoio de uma milícia neonazista, o Regimento ou Batalhão de Azov, de Mariupol.
        Governo- na prática foram adotadas política econômica liberal e restrições sobre a liberdade de imprensa e de movimentos LGBTQUIA+. Ao menos extinguiu a imunidade legal parlamentar, mas não a de seu cargo. e a reforma agrária. Atualmente, enfrenta a destruição de seu país pela invasão russa.
        Alegando a sua origem, Zelensky nega o rótulo neonazista, ainda que pesam sobre seu governo fortes indícios de avalizar perseguições a minorias étnicas, religiosas e sexuais. 

Guerra russo-ucraniana: reflexões

        Por ocorrer em uma área geográfica privilegiada no contexto econômico, a guerra Rússia-Ucrânia desperta forte atenção das mídias no mundo, e entre a grande mídia, Zelensky é visto como um herói, e Putin quase comparado ao líder nazista Adolf Hitler, como visto em charges. Controversos, os motivos são aqui citados como meras suposições.
        Otan3- foi criada pelos EUA quando dada a divisão em dois blocos econômicos, o pró-EUA e o pró-URSS. Maior símbolo da guerra fria de então, se representa por forças militares de países membros em operações de guerra. A Ucrânia foi convidada a entrar, o que teria sido estopim para a guerra atual.
        Cláusula do tratado previa a extinção da Otan com o fim da guerra fria. A URSS caiu, mas não a Otan, que hoje abocanha a maior parte da Europa, enquanto os russos aprimoram armamentos. A guerra fria de outrora, portanto, despertou em nova forma, mas com velhos inimigos.
        Armas biológicas- soldados russos teriam encontrado armas biológicas no subsolo ucraniano. A subsecretária de Estado dos EUA admite a existência de 30 laboratórios experimentais da Ucrânia e teme o confisco russo. O Estadão diz ser fake a ideia de que os laboratórios, supostamente #404, sejam dos EUA.
        Gasoduto Nord Stream- da Rússia, ele fornece gás para energia europeia passando pelo subsolo ucraniano, e isso acontece há anos. A própria Ucrânia se beneficia com esse fornecimento. Notícias da guerra impõem suposições que tornam o gasoduto tão polêmico.
        A primeira delas é a de que as sanções dos EUA contra a Rússia seriam um meio de obter o valioso gás. A outra é o temor de danos por conta dos bombardeios. O que sabemos é que, com as sanções, a Rússia poderia responder com uma redução ou corte do fornecimento, fomentando crise na Europa
        Zelensky neonazista- algumas mídias têm apontado que a invasão da Ucrânia foi motivada pelo suposto ideal de Putin de "exterminar o neonazismo", pois Zelensky não pune o Batalhão de Azov por suas perseguições a minorias étnicas, religiosas e LGBTQUIA+, devido à proximidade política.
        Na verdade é extremamente difícil descartar qualquer das hipóteses acima, devido a interesses que cercam a macroeconomia global capitalista e envolvem os grandes grupos financeiros, políticos e midiáticos.
        Armas biológicas e químicas- os EUA as fabricam há décadas. Usado na guerra do Vietnã (1961-75), o desfolhante agente laranja não deixa mentir: até hoje contamina vastas áreas florestais e rurais, com efeitos deletérios à saúde socioambiental, e estudos apontam que cânceres entre vietnamitas podem se ligar mais à dioxina do agroquímico do que a outros fatores.
        A ideia de laboratórios de armas biológicos #404 no subsolo ucraniano ser fake news foi postada apenas pelo Estadão, conforme pesquisa minuciosa no Google que não revelou outra fonte a mencioná-la, nem para alertar de ser mentira ou verdade. E o Estadão é um mega grupo midiático.
        Acusação de neonazismo- a grande mídia atribui a Putin acusar Zelensky de neonazismo, mas o que talvez a geral não percebeu é que os dois líderes nacionais compartilham as mesmas acusações, de perseguição políticas a minorias e à imprensa, na verdade feita por entidades internacionais de direitos humanos. Esta é também exemplo de acusação direcionada contra o brasileiro Jair Bolsonaro.
        A negação de Zelensky de ser neonazista baseando-se na sua origem judia, citando os avós mortos em campo de concentração nazista, faz pleno sentido em si. Mas por outro lado parece afagar a milícia neonazista. Esta possivelmente excluiu os judeus em respeito ao presidente, o que explicaria o afago.

Brasil e a ideologização da guerra russo-ucraniana

        Bolsonaro já estava no poder quando Zelensky foi eleito presidente. Então, bolsominions de verde-amarelo foram às ruas de algumas capitais exibindo bandeiras rubro-negras e azul-amarelas, ambas com um brasão central (vide foto), gritando "ucranização já!".
        A bandeira ucraniana é azul e amarela em disposição horizontal, mas sem o tal brasão. Este foi criado pelos nacionalistas para simbolizar um sentimento frente à histórica ligação com a Rússia.
        Bolsonaro disse aos fãs que a eleição de Zelensky consolidaria não só a democracia ucraniana, como também a "plataforma antissistema", a despeito de a maior parte das políticas empregadas lá ser  capitalista, tal como as empregadas pelo próprio Bolsonaro.
        Ironicamente, Bolsonaro até hoje só dialogou com Zelensky com felicitações pela eleição e em encontros ultraconservadores na Hungria e na Polônia, países também governados pela extrema direita cristofascista. Mas, de qualquer forma, já estava instaurado um clima que se materializaria depois.

A guerra é de esquerda ou de direita? reflexões finais

        E então, a surgida guerra virou alvo da polarização ideológica brazuca. Se bolsominions e grande mídia afagam Zelensky como herói, alguns grupos de esquerda respondem com imagens de soldados de Azov torturando e/ou matando ciganos e outras etnias, consagrando Putin como parte provocada.
        Como o ex-deputado paulista Arthur do Val e influencers bolsonaristas, alguns brazucas foram à Ucrânia para engrossar as fileiras contra a Rússia. Sem tradição de guerra, voltaram envergonhados pela indiferença dos próprios soldados ucranianos. 
        Arthur quis alçar fama ao se dizer voluntário da guerra e culminar em "elogios" sexuais às moças ucranianas. Apesar da repercussão, sua fala não foi o maior motivo da cassação, e sim o objetivo sem a devida autorização para os objetivos da viagem. Sua fala soa torpe se comparada ao que Bolsonaro faz em Brasília.
        Assim como Arthur do Val, os influencers que foram se aventurar como "voluntários de guerra" em apoio à Ucrânia aparentemente sumiram das redes sociais, ou se destinaram a produzir canais em redes como o YouTube e correlatos, pois desde então não apareceram novas publicações referentes ao tema.

        Embora não seja intenção desse blog, não há como não responsabilizar os bolsominions pelo início do processo de ideologização da guerra russo-ucraniana, mesmo tendo respostas prontas, mesmo nem sempre certas ou adequadas, das partes contrárias. 
        Por incrível que pareça, a ideologização guerreira pode ter se iniciado com as passeatas de 2019 e 2020 carregadas das citadas bandeiras ao lado da nossa e da também indefectível bandeira de Israel, enquanto os esquerdistas respondiam raramente, nas redes sociais, cuidando-se com a pandemia. 
        Mas, com a guerra, as respostas mais frequentes dos grupos de esquerda ajudaram a engrossar o caldo da ideologização do fato, com o qual temos a ver apenas economicamente, e nessa parte o Brasil poderia estar em diálogo com os líderes em conflito para um acordo... só que  não.
        Por outro lado, as respostas dos esquerdistas se calaram quando Bolsonaro encontrou Putin, não para falar sobre proposta de armistício, e sim para entregar, de bandeja, a fábrica de fertilizantes da Petrobras para grupo russo. Sobre a guerra, apenas um apoio protocolar a Putin, calando o clima.
         A conjuntura de diversos fatos, incluindo a geopolítica e econômica, soam como recados claros para os brasileiros que se aventuraram a esse nível de coisa. A cassação de Arthur e a ida de Bolsonaro à Rússia foram de bom tom nesse sentido estrito.
        Uma zona de guerra não deve ser lugar de aventuras, não importa de qual natureza. Não serve para quem não tem tradição de guerra. A Ucrânia agora virou uma zona da qual sobram órfãos e milhares fogem para os países vizinhos, engrossando o caldo da crise migratória na Europa.
        A guerra ocorrente não é entre direita e esquerda, sistema e antissistema. Os dois líderes têm várias semelhanças políticas, bem como as acusações internacionais contra eles. Aos esquerdistas vale aviso de que Putin tem o mesmo de Biden e outros: a vocação imperial. Sim, a Rússia são os EUA do Leste.
        Bolsonaro já traça conosco uma guerra fria, mas tensa e diuturna, através de suas falas e dos feitos de seus artífices Guedes (economia), Queiroga (saúde) e Victor Godoy (educação). Como Zelensksy e Putin, ele deixa claro que uma guerra é sempre consequente à ganância. E ganância não se ideologiza, se elimina.

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Imagens: Google (fontes diversas)

Notas da autoria
1. Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (o sovietismo, versão local do socialismo).
2. Ideologia populista, contrária ao sistema oficial (instituições sociais, políticas, econômicas e outras). 
3. Sigla de Organização Tratado do Atlântico Norte, surgida por tratado do mesmo nome.

Para saber mais
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Putin
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Volodymyr_Zelensky
- https://jornalistaslivres.org/victoria-nuland-ucrania-tem-instalacoes-de-pesquisa-biologica-e-teme-que-sejam-confiscadas-pela-russia/
- https://politica.estadao.com.br/blogs/estadao-verifica/putin-laboratorios-armas-biologicas-trump-ucrania/
- https://exame.com/mundo/ucrania-suspende-parte-de-operacoes-de-gasoduto-e-preco-explode/
- https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/16/ciencia/1552710887_506061.html (agente laranja ainda contamina)
- https://www.poder360.com.br/agronegocio/grupo-russo-compra-fabrica-de-fertilizantes-da-petrobras/

        
        
        

sábado, 4 de junho de 2022

Análise: a era da barbárie escancarada

 

        Rio de Janeiro. A conhecida Cidade Maravilhosa da marchinha que se tornaria seu hino nasceu para ter a peculiar vocação de vitrine de glamour, porta de entrada para os estrangeiros intelectuais endinheirados em visita ao Brasil, inclusive conhecer as belezas selvagens, da exuberante mata atlântica circundante à Guanabara e a silhueta sensual das montanhas graníticas.
        Por trás desse glamour se revelava a outra face, nada alvissareira, de uma sociedade pseudomoralista, elitista, e escravocrata após a Lei Áurea. Negros libertos eram segregados das classes médias circulantes, e as batidas policiais nas periferias criminalizavam a forte africanidade local, muitas vezes com prisões e até assassinatos de alguns moradores.

        A breve introdução acima serve para mostrar, literariamente, como a cidade abrigou uma construção social altamente deletéria e propícia para a geração de uma cultura de violência baseada nos conflitos entre interesses dos mais ricos contra as necessidades dos mais pobres. O que piorou com a ditadura militar, cuja herança se vê na letalidade policial nas favelas do Rio.

Polícia de matadores: os maiores casos

        Vocês podem se perguntar o que têm a ver imagens aparentemente díspares. Simples: a violência e as consequentes mortes de populares nunca são resolvidas, podendo revelar o envolvimento de altos interesses políticos e da elite econômica. O flagelo garante lucros extras para as "classes relevantes".
        O cemitério evoca a morte dos populares, além de proteger a pouca privacidade das vítimas dos massacres evitando, assim, mais uma cruel exposição não autorizada das mesmas.
        É comum a grande mídia tratar apenas os casos mais extremos, com falsa impressão de serem fatos isolados entre si. Nos grandes centros, há décadas, os favelados vivem o cotidiano silenciado pelo medo e sem saber quem é o pior: a polícia, o tráfico, a milícia ou a narcomilícia.
        Os casos mais recentes e de grande repercussão midiática têm conexões, mesmo invisíveis, com os fatos mais pretéritos e de natureza quase idêntica, inclusive no modus operandi dos assassinos. Nas dezenas de fatos memoráveis, para evitar excessos, o artigo seleciona fatos dos grupos de extermínio (militares - polícia, bombeiros, FAs).
        Chacina da Candelária, 1993. A Candelária é uma das principais igrejas históricas no centro da capital. As marquises de prédios adjacentes costumam ser abrigos para a população de rua, e sua praça às vezes é palco de manifestos populares de cunho político. Foi numa dessas marquises que um grupo de menores dormia na noite de 23/7/1993.
        Nessa noite, um Chevette e um táxi com placas cobertas pararam à frente da igreja. Armas saíram das janelas mirando os menores e seguiu-se tiroteio repentino e violento, após o qual os carros saíram rápidos. Saldo: 8 mortos, dos quais 6 menores. Vários outros menores ficaram feridos.
        À investigação posterior, os sobreviventes relataram a rotina de medo. Wagner dos Santos2, então adolescente, sobreviveu a 4 tiros e a um atentado na Central do Brasil em 1994, deu um testemunho relevante para a identificação dos criminosos, que foram apontados como milicianos.
        Os identificados: Marcus Vinícius Emanuel Borges, Claudio dos Santos, Marcelo Cortes, Jurandir Gomes França (serralheiro), Nelson Oliveira dos Santos, Marco Aurélio Dias de Alcântara e Arlindo Afonso Lisboa Jr. Os 3 primeiros, PMs, e os 3 últimos sem profissão específica.
        Ao fim dos julgamentos, alguns foram absolvidos, e outros condenados a mais de 200 anos de cadeia. No entanto, a despeito da condenação, eles na prática seguem livres, seja por indulto (perdão) ou liberdade condicional autorizada pela justiça. Se desconfia que tais liberdades tenham sido políticas.
        Um monumento foi erigido em homenagem às vítimas fatais, cujos nomes aparecem em placa ao pé da cruz de madeira, na praça à frente da igreja. O Brasil foi denunciado pela Anistia Internacional pelo crime como grave violação de direitos humanos, pela intenção de chacina.
        Vigário Geral, 1993. Moradores de Vigário Geral, favela da zona norte, já percebiam "movimento estranho". Mas não no dia 29/8 na Praça de Catolé do Rocha, quando um grupo de encapuzados super armados entrou atirando geral contra as residências e comércios ao redor. O grupo de extermínio ceifou 21 vidas.
        Traficantes reagiram à ação de imediato. Comércios e escolas fecharam, famílias se refugiaram como puderam. Entre as balas que ricochetearam em paredes e veículos, algumas acharam suas vítimas. Todas confirmadas inocentes pela própria Corregedoria da PMERJ, e pelo MP-RJ. A repercussão foi imediata e negativa, no país e no mundo.
        Como confirmaria a perícia investigativa, ao contrário dos relatos dos PMs envolvidos, as vítimas não tinham como opor resistência. A OEA1 julgou o caso como crime contra direitos humanos. Dos 51 acusados, somente om ex-PM Sirlei Alves Teixeira permanece preso.
        Diante da repercussão internacional, houve pesquisa de opinião popular em todo o país. A guerra urbana foi apontada entre as maiores preocupações, e virou tema de discursos eleitoreiros de "maior investimento em segurança pública" durante a corrida eleitoral de 1994. 
        Na época, famílias das vítimas obtiveram benefícios como reparação pelo Estado, mas anos depois houve suspensão. Em 2018, 25 anos depois do massacre, com transtornos do pânico, ansiedade genérica e depressão, foram à Alerj reaver o direito, que se tornou parte de PL para pensão vitalícia às famílias de vítimas das forças de repressão estaduais.
        Baixada Fluminense, 2005. A Baixada Fluminense é composta por vários municípios, a maioria deles pobre, em comparação com Duque de Caxias, a maior cidade. Nesses locais, o povo vive uma rotina incerta, entre surtos de grande violência e uma relativa calma desde, pelo menos, os anos 1970.
        O povo aprendeu a se adaptar a essa alternância irregular. Mas, em 2005, duas cidades da região viraram palcos de um atroz surto de violência: Nova Iguaçu e Queimados. Isso, após um tempo com clima de insegurança, junto a várias denúncias de corrupção nos bastidores da PMERJ.
        Essa situação constante forçou o governo do Estado substituísse os comandos em corporações da PMERJ nas duas cidades e em Caxias. Até que chega uma noite que ficaria na memória dos moradores. Era a noite de 31/3/2005 - aliás, como sabemos, uma data bem especial para militares.
        Foi o momento oportuno para que dois grupos de PMs à paisana fossem para a Baixada, um deles para Nova Iguaçu e outro para Queimados. Havia um esquema de hora marcada. Ao mesmo tempo, os dois grupos descarregaram suas armas de grosso calibre contra a população, ceifando na hora 29 vidas.
        É a maior chacina da história do RJ. O motivo espanta pela torpeza: vingança de PMs revoltados contra a citada substituição de comandos pelo governo estadual. Eles não esconderam o seu intento de aterrorizar os populares, uma vez que o temor destes também motivou a decisão governamental.
        A perícia contabilizou mais de 100 tiros, revelando que os criminosos entraram já executando à queima-roupa. Algumas vítimas foram baleadas na cabeça, outras mais de 10 vezes. Segundo a PCERJ, acredita-se que todas as vítimas (8 delas adolescentes) eram inocentes, pois não há passagem policial.
        A PMERJ admite que o mesmo grupo criminoso já atuava em Caxias antes da chacina ao revelar que, tempo antes, afrontou o alto comando de Caxias pondo à mesa a cabeça de uma de suas vítimas, como demonstração de como responde às contrariedades.
        Complexo do Alemão, 2007. O conjunto de favelas na zona norte é cercado principalmente pelo bairro da Penha, com sua Igreja da Penha. Mesmo que tenha a sua rotina dominada pelo tráfico, os moradores viveriam um momento de grande horror protagonizado pela polícia, em 27/6/2007.
        Nesse dia, 2600 agentes do Bope (elite da PMERJ), da PCERJ, da PF, das FAs e da Força Nacional de Segurança Pública invadiram as favelas às 8h da manhã, alegando atender chamado para controlar a violência do tráfico. O pesado tiroteio que se seguiu fez 19 vítimas fatais e vários feridos. 
        Já corria um informe de que traficantes que seriam do Alemão supostamente mataram dois PMs em Oswaldo Cruz, na zona norte. Mas até hoje não há provas dessa origem dos criminosos e do contexto dos homicídios.
        Segundo nota da OAB-RJ, 11 das 19 vítimas fatais não tinham qualquer passagem policial, muito menos tinha ligação com o tráfico. 13 corpos foram recolhidos pela PM e outros seis deixados à noite numa van em frente à delegacia da Penha. Dos feridos, 1 era PM, 5 traficantes.
        Houve grande cerco policial em torno do Alemão para a segurança das obras do PAC2 e até o fim dos Jogos Pan-Americanos. Relatório da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Pres. da República revelou ter havido execuções na operação que, aliás, nunca foi tratada como chacina que foi.
        Para justificar os assassinatos como execuções, o relatório apontou que 14 vítimas receberam tiros na cabeça e no tórax, e foi levantada a média de 3,84 tiros/vítima. O então secretário da SSP-RJ José Beltrame desclassificou o documento, acusando Brasília de "não ter enviado legistas para confirmar a execução".
        Jacarezinho, 2021. Na zona norte, Jacarezinho é uma das maiores favelas. O acesso a ela é fácil. Dominada pelo tráfico há décadas, é alvo de frequentes incursões policiais. Sempre acreditamos nos moradores como acostumados à violência, o que se revelou falso em 6/5/2021.
        No dia, 250 policiais, 4 blindados e 2 helicópteros da operação Exceptis foram a mais uma guerra (falida) contra o tráfico. A SSP-RJ alega que a invasão foi motivada por aliciamento de menores pelos traficantes para praticar assassinatos, roubos e sequestros de trens, descoberto em uma quebra de dados telemáticos autorizada pela Justiça.
        A entrada da PM foi invasiva, iniciando um tiroteio com reação imediata dos traficantes locais e desrespeitando a resolução 2020 do STF de coibir operações rotineiras nas periferias na emergência da C19, "salvo casos de caráter muito excepcional. O caráter seria revelado mais tarde.
        Do saldo sangrento, a PM anotou 21 mortos, "todos traficantes", mas as cenas terríveis revelam a verdade: 28 mortos (27 moradores e 1 PM). Notas de operações policiais sempre são desconfiáveis. Por isso, até hoje corre a forte suspeita de a maioria das vítimas não ter antecedente criminal.
        Segundo o comando da operação, o objetivo era capturar 21 investigados, daí a afirmativa inicial da PM no saldo letal. Destes investigados morreram apenas 3; 13 pessoas sem ficha criminal e 11 não identificados, daí a suspeita de maioria inocente e o reforço na tese de massacre, de execução.
        Em violência e letalidade, a chacina do Jacarezinho chegou a ser comparada ao caso da Baixada. Entidades de Direitos Humanos de órgãos como Alerj, OAB e MPU se imbuíram de apurar o caso e, pelas evidências periciais preliminares, se aponta forte intencionalidade de matar.
        Registros policiais afirmam que as vítimas teriam sido levadas vivas em hospitais, e tendo morrido depois. Mas, o procurador de Direitos da OAB-RJ Rodrigo Mondego afirmou que 20 delas já entraram mortas no hospital municipal Souza Aguiar, de acordo com laudos médicos documentados.
        "Compromisso particular". No calor dos fatos, o presidente Jair Bolsonaro sorriu e parabenizou efusivamente a PMERJ pela "operação" no Jacarezinho, e sem nenhuma prova, rebaixou as vítimas a "traficantes que roubam, matam e destroem famílias", em post no Twitter. Seu filho Eduardo, debochou da viúva de uma vítima que criticou a PM.
        As declarações chamaram a atenção pública, pois para ir ao RJ, o presidente alegou "compromisso particular", que na real foi uma reunião com o governador Claudio Castro, sem acesso à imprensa. As falas foram feitas após a reunião e antes de voltar a Brasília. Não foi mera coincidência de fatos.
        Um memorial às vítimas foi erguido na favela, mas foi breve: a PM o destruiu. A PCERJ atribuiu o memorial a uma "apologia ao tráfico de drogas", em flagrante depreciação às vítimas.
        Vila Cruzeiro, 2022. A Vila Cruzeiro é uma favela do Complexo da Penha, vizinho ao Complexo do Alemão. Assim como este, sofre há décadas com o domínio do crime organizado do tráfico, daí ser também outro alvo de incursões da PM.
        Os PMs estavam acompanhados por PFs e PRFs e suas viaturas. O objetivo teria sido a captura de 50 traficantes do RJ e de outros Estados como Bahia, Alagoas, Ceará, Rio Grande do Norte, Amazonas e Pará, ligados ao CV, que estariam de ida à grande favela da Rocinha, na zona sul carioca.
        Vestidos à paisana, os PMs foram descobertos e o que eles chamaram de "operação emergencial" se iniciou às 16h do dia 24/5. Foram envolvidos nessa "tarefa" 80 PMs, 26 PFs e um número não citado de PRFs. A Serra da Misericórdia foi o local de maior violência, e onde mais se concentrou o massacre.
        Foram apreendidos 14 fuzis, 12 granadas, 4 pistolas, 10 carros, 20 motos e R$ 4 milhões em drogas, com prejuízo de R$5,2 milhões ao CV. Dos 26 mortos, 3 eram do morro do Juramento e 16 sem passagem policial. Ainda assim, a PM classificou todos como suspeitos.
        Os relatos sobre o massacre envolvem também o uso de facas como arma pelos PMs, pois um dos corpos tinha perfurações típicas. Familiar da vítima relata que os PMs a induziram a comer cocaína, o que explicaria a quantidade de pó branco em torno da boca do cadáver.
        Quanto às respectivas presenças da PF e PRF, a da primeira é explicada pelas origens diversas dos traficantes. Já a do Grupo de Operações Especiais da PRF não se compreende, por não haver nenhuma via federal no Complexo da Penha e outras comunidades - o que exige maior apuração.

Reflexões

        O exposto nos revela denominadores comuns relevantes em todos os casos mencionados, como o modus operandi invasivo e sem aviso prévio aparente, geralmente resultando em mais de 10 mortos, e um inegável protagonismo policial na integridade dos processos. 
        Não por acaso, os moradores aprenderam a temer a polícia, mais para autopreservação e adaptar-se à rotina violenta através do silêncio. Sem outro recurso adaptativo pela falta de uma educação decente, os populares assim se comportam como uma forma de resistir ao terror imposto pelo Estado.
        A relação entre forças policiais e populares nunca foram amistosas, e a animosidade piorou com a ditadura. Por isso que, a despeito do destaque fluminense, chacinas contra populares são frequentes no país todo, em nome de todo e qualquer interesse elitista e político-econômico.
        Mas, as chacinas destacadas acima têm uma peculiaridade: expõem a conjectura pré-eleitoral por trás. Com a (talvez) exceção do caso de 2007, ocorrido após o pleito de 2006, as demais estranhamente coincidem com os períodos, sugerindo o hipotético insight.
        O insight parece se materializar em matérias de Carta Capital e Jornalistas Livres, ao citarem a reunião de Bolsonaro com Castro, os elogios às polícias e a recente afirmação de Castro de que todas as "operações cumpriram exatamente os preceitos" e chamou de "vagabundos" todas as vítimas.
        Não que o governador ignore a inocência da maioria delas, já admitida pelas instituições. O lance possivelmente por trás é que, mais do que por serem pobres e não brancas, poderiam ser eleitores de adversários de Bolsonaro, como o líder Lula.
        A presença da PRF numa área sem vias federais também desperta atenção. Logo após a câmara de gás improvisada que matou Genivaldo em Sergipe, e um vídeo de um policial sobre a prática, surgiu a sugestão de que a PRF na Vila Cruzeiro serviu para "dar uma forcinha extra no serviço", se necessário.
        A apreensão de materiais ilícitos e as mortes não revela ganho contra as drogas. Pelo contrário, as próprias polícias sabem que essa guerra se rebaixou a um pavoroso espetáculo midiático a escancarar a sinistra arte dos governantes de barbarizar uma nação. Sim, irônico, mas já fomos menos antipáticos.
        Pelos diversos meios, Bolsonaro e aliados escancaram ainda mais a barbárie de Estado como sua política pública, mediante higiene étnico-social. E o conseguiram graças ao bizarro pleito 2018. Ele dá indícios de que não pretende parar: até o fim de 2022, podemos ter mais notícias de chacinas por aí.
       
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Imagens: Google (montagem: autoria do artigo)

Notas da autoria
1. Organização dos Estados Americanos, que agrega todas as nações das Américas.
2. Por conta do seu testemunho e do atentado, o sobrevivente está na lista de Proteção às Testemunhas Ameaçadas do MPU.

Para saber mais
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Chacina_da_Candel%C3%A1ria (Candelária, 1993).
- https://wikifavelas.com.br/index.php/Chacina_de_Vig%C3%A1rio_Geral (Vigário Geral)
- https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/12/21/parentes-de-mortos-na-chacina-de-vigario-geral-brigam-por-pensao-25-anos-apos-o-massacre.ghtml
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Chacina_da_Baixada (2005)
- https://m.cbn.globoradio.globo.com/series/dez-anos-da-chacina-da-baixada/2015/03/23/DEZ-ANOS-APOS-CHACINA-QUE-DEIXOU-29-MORTOS-NO-RJ-PARENTES-DE-VITIMAS-AINDA-SOFREM-COM-P.htm
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Opera%C3%A7%C3%A3o_policial_no_Complexo_do_Alem%C3%A3o
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Chacina_do_Jacarezinho
- https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-07/maioria-dos-mortos-na-chacina-do-jacarezinho-nao-era-suspeita-em-investigacao-que-motivou-a-acao-policial.html
- https://noticias.uol.com.br/colunas/chico-alves/2022/05/11/policia-destroi-memorial-em-homenagem-as-vitimas-da-chacina-do-jacarezinho.htm
- https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2022/05/chacina-no-jacarezinho-completa-um-ano-com-24-das-28-mortes-arquivadas-pelo-mp/
- https://www.brasildefato.com.br/2021/05/10/rj-bolsonaro-parabeniza-acao-policial-que-terminou-com-28-mortos-no-jacarezinho
- https://www.brasildefato.com.br/2021/05/12/mortes-no-jacarezinho-e-o-horror-de-nosso-tempo
- https://jornalistaslivres.org/operacao-matou-25-jacarezinho-beneficia-milicia-de-bolsonaro/
- https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/as-operacoes-cumpriram-exatamente-os-preceitos-diz-castro-sobre-jacarezinho-e-vila-cruzeiro/
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Chacina_da_Vila_Cruzeiro
- https://www.brasildefato.com.br/2022/05/26/pesquisadoras-explicam-por-que-chacinas-como-a-da-penha-sao-inuteis-e-usadas-em-campanhas



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