A divulgação do fato aconteceu justamente num momento algo delicado para o cenário sociopolítico brasileiro, pois o presidente Jair Bolsonaro estava em evento na Cúpula das Américas, nos EUA de Joe Biden.
A coisa não soou bem para a equipe do presidente brasileiro, que se irritou com a divulgação do assunto em meio ao evento nos EUA. Mas, por quê? Bem, o objetivo do artigo é instigar reflexões sobre um fato que, mesmo com contornos aparentemente menos nebulosos no presente, ainda é visto em muitos prismas.
Bruno e Dom, ícones da floresta
Vale conhecer, em linhas gerais e breves, as biografias das vítimas do fato em apuração.
O indigenista- Bruno Araújo Pereira nasceu na Paraíba, mas cresceu em Pernambuco, onde, ainda garoto, se alegrava com histórias de expedições em lugares e contatos com povos desconhecidos. Mais tarde, se tornaria antropólogo especialista em povos originários da América do Sul.
Em 2000 saiu de Recife para realizar o sonho de trabalhar na Amazônia. Em 2010 entrou na Funai para assumir funções do extinto cargo de sertanista, tornando-se indigenista. Assumiu a Coordenação de Povos Isolados do Vale do Javari, saindo em 2016 para resolver um conflito intertribal na região.
Protetor- iniciada com desconfiança, a convivência de Bruno com os indígenas do Javari se tornou familiar e íntima. Os indígenas o viram como seu protetor, e conhecedor da intimidade da relação entre preservação cultural e ambiental. E, com isso, perdeu o sossego por conta de ameaças.
A era Jair Bolsonaro selaria o seu destino. Ainda em 2019, foi exonerado pelo então ministro da justiça Sérgio Moro, e passou a expedicionar voluntariamente nas florestas. Muitas de suas expedições foram cobertas por um importante jornalista e amigo: Dom Phillips.
O jornalista- Dominic Mark Phillips nasceu em um condado ao noroeste da Inglaterra. Era ainda jovem quando decidiu seguir a carreira jornalística. Aos poucos construiu um currículo sólido, como colaborador em importantes mídias como Washington Post, The New York Times, Financial Times e na britânica The Guardian, com reportagens internacionais.
Também escritor, escreveu Superstars DJs were we go!: the rise and fall of the superstar DJ, em 2009, versando sobre a ascensão desses artistas nos anos 1990 e queda nos anos 2000 no Reino Unido. Estava preparando um livro sobre a Amazônia, Como salvar a Amazônia?.
Em 2007 se radicou em Salvador, Bahia, onde se casou com Alessandra. Além de jornalista, Dom voluntariamente dava aulas de inglês para moradores pobres. Apaixonado pela Amazônia e seus povos, cobriu as expedições de um amigo especialmente valioso: Bruno Pereira. Amizade esta que propiciou uma visibilidade brasileira, mas que ajudou a selar o seu destino.
As muitas versões e ligações de um fato
Segundo menções na mídia, Bruno havia avisado à família que iria partir para a direção de Atalaia do Norte, no oeste amazonense, próximo à tríplice fronteira com Colômbia e Peru, com Dom Phillips, que já o acompanhava nas coberturas como preparativo para seu novo livro.
Segundo o G1 (Globo), Bruno e Dom estavam com sua equipe e dois guias indígenas em canoa, quando passaram pela comunidade ribeirinha de São Rafael, faltando pouco mais de rio para chegar a uma aldeia em Atalaia do Norte, quando a equipe teria então sumido.
O desaparecimento foi anunciado pela União dos Povos do Vale do Javari (Univaja), via Manoel Churimpa, líder indígena e amigo de Bruno. Segundo a entidade, Bruno, servidor de carreira, recebia constantes ameaças de morte por parte de garimpeiros, madeireiros e pescadores ilegais.
Antes da Polícia Federal, as buscas foram iniciadas pela própria Univaja, que após o insucesso confirmou o desaparecimento. Foi então que a equipe da entidade entrou em contato com autoridades, a começar pelo Comando Militar da Amazônia (CMA) para comunicar o fato.
Exército- O CMA foi contatado pela Univaja e então soltou uma nota, na qual disse que "aguarda autorização superior" para iniciar as buscas. Direta e curta, a nota levou saraivada de críticas nas redes, e logo veio nova nota, para abafar a saraivada crítica. Mas, já estava instalada mais fedentina no ar.
Mídias perceberam que um grupo pequeno de militares foi para a busca, de um caminhãozinho caçamba para um pequeno barco. Não houve sequer helicóptero, auxiliar tão essencial em buscas pela selva fechada. Isso só contribuiu para piorar a desconfiança pública na instituição e no governo.
PF- acionada para investigar o fato, a PF prendeu o pescador Amarildo da Costa Oliveira (Pelado) em 7/6, e em 8/6, o seu irmão Oseney. Segundo informes da PF à mídia, os dois suspeitos confessaram os crimes, envolvendo um terceiro suspeito, que foi capturado pelos agentes mais recentemente.
Com a forte repercussão internacional, alimentada pelo sumiço do britânico, houve uma sucessão de informações atravessadas, como vísceras humanas e objetos pessoais de Bruno e Dom achados. Outro informe era o do encontro dos dois corpos - o que ouriçou Bolsonaro e sua equipe nos EUA.
Depois houve o "desmentido oficial" de que os corpos ainda não tinham sido encontrados, mas já não havia mais como dissolver o clima fedido já instaurado. Clima esse que ainda perdura, mesmo após a perícia confirmar os restos mortais como sendo de Bruno e Dom em notícia mais recente.
Versões- o desencontro aparente de informações fez com que o fato fosse alvo de interpretações as mais diversas, o que deixou, por óbvio, o governo em situação desconfortável diante do mundo (já não estava melhor antes mesmo).
Ameaças de morte- nos últimos anos Bruno Pereira já não tinha mais sossego algum. Manoel Churimpa contou que ele relatara ameaças dos citados grupos ilegais, ainda na era Temer. O principal teor era de morte, revelando o quanto o currículo do indigenista os incomodava.
Mesmo sem relatos divulgados, é muito possível que Dom também recebesse ameaças, justamente por acompanhar Bruno nas expedições. Além de realizar o sonho de conhecer a floresta, o inglês via nas expedições o conteúdo para seu livro em andamento sobre a Amazônia e seus povos originários.
Dom foi ao encontro do presidente Jair Bolsonaro com jornalistas em 2019, e perguntou a ele sobre o que fazer diante dos dados assustadores de devastação na Amazônia. A resposta fria e seca: "primeiro você tem que entender que a Amazônia é do Brasil e não de vocês". Em post posterior no Twitter, o presidente classificou a pergunta como "cobiça".
"Crime político"- diante das manifestações populares virtuais nas redes, que cobram por revelar os mandantes das mortes de Bruno e Dom, a PF negou, em nota, que os homicídios foram executados a mando de alguém que porventura chefie, ou não, alguma organização criminosa.
Todavia, a Univaja contesta a nota da PF, e não só por base nas ameaças de morte recebidas pelo indigenista. Há outras variantes, a começar pela evidência escancarada dos crimes de execução, como a canoa de Dom e Bruno, resgatada de 20 m de profundidade d'água e cheia de sacos de areia.
A Univaja aponta que o crime organizado se movimenta em grande parte da Amazônia, com tráfico de drogas e armas, e caça, pesca, extração de madeira e minérios ilegais em áreas públicas preservadas e terras indígenas. Movimentando muitos milhões e atraindo gente de vários países, o crime organizado local age com tutela política e o ensurdecedor silêncio da omissão judiciária.
Posição de Bolsonaro- o presidente Jair Bolsonaro ainda estava na Cúpula das Américas quando se irritou com a sucessão de informes midiáticos sobre o encontro dos corpos. O que foi percebido pelos presentes, inclusive jornalistas e o presidente estadunidense Joe Biden.
Questionado pela mídia ao voltar ao Brasil, Bolsonaro disse que "eles se aventuraram em um local perigoso", alegando que as piranhas podem tê-los comido. A fala depreciativa do presidente aumentou a pressão internacional e deu mais trabalho à imprensa e à PF para melhorar a imagem do governo.
A declaração de pesar presidencial foi tão fria quanto todas as feitas a cada fato trágico noticiado, inclusive as mortes pela C19. Apesar da repercussão internacional, ele sequer se dirigiu às famílias de Bruno e Dom, mesmo protocolarmente. Naturalmente, essa frieza alimenta suspeitas sobre ele.
E, nesse dia 17, chamou a atenção pública a divulgação midiática da motociata em Manaus, com o sorriso de indisfarçável regozijo. Na capital do mesmo estado em que Bruno e Dom sumiram.
O fato repercutiria sem Dom Phillips? (valem outras reflexões finais)
Muito se tem conjecturado, quase sempre em tom de forte certeza, que os assassinatos de Bruno e Dom só deu tamanha repercussão porque "Dom é europeu e branco". Essa afirmativa que aponta para o suposto sobrevalor de um determinado povo, em geral branco e ocidental sobre os demais, vem sendo entoada para este fato, como em tantos outros. Virou parte de nossa cultura.
Mas, tal afirmativa pode não ser verdadeira aqui. Servidor de carreira da Funai, antropólogo como sua esposa, a quem ajudou na formulação da tese de doutorado, dono de currículo venerável, Bruno era um profundo conhecedor dos povos isolados do ainda relativamente bem preservado vale do Javari.
Remixada pelo produtor musical André Abujamra, a canção indígena entoada por Bruno, em vídeo que viraliza nas redes em todo o mundo é cantada em katukina, língua dos Kanamari, do Javari. Este é apenas um dos quatro idiomas originários que Bruno dominava com fluência. Talvez devido a isso, ele se destacava como profissional e ativista.
Mesmo sendo inglês e também dono de respeitável currículo, e ainda dando aulas voluntárias de inglês para alunos carentes de Salvador, Dom respeitava profundamente o amigo brasileiro e sua luta pela preservação da Amazônia e de seus povos com suas culturas ancestrais.
Dom não guiava Bruno, Bruno é quem guiava Dom, e dava a última palavra sobre para onde ir e o que fazer. A sua proximidade com os indígenas se deu graças ao brasileiro, este sim "um escudo para a floresta e os indígenas", segundo o líder indígena Manoel Churimpa.
Mas, ironicamente, pareceu ter sido "válida" a presença do britânico na tragédia para que déssemos a necessária visibilidade para um cargo que, mesmo extinto oficialmente por lei, sobrevive em suas funções de desbravar recantos antes desconhecidos e descobrir povos ainda desconhecidos ou isolados por completo: o sertanista.
Como sertanistas, os irmãos Villas-Boas desbravaram as florestas na região do Xingu e lutaram pela política de demarcação de terras indígenas como forma de proteger a floresta. Por trás da aparência romântica, o cargo sempre abriu portas para exposições nada alvissareiras. Sim, os irmãos já depararam com criminosos nas profundezas da floresta.
A ditadura acentuou a ambiguidade romântica-perigosa ao sertanismo. Por trás das propagandas na TV como desbravadores das riquezas florestais, com a Transamazônica de garota-propaganda, esses servidores enfrentavam perigos não só de criminosos locais, como a feroz vigilância dos militares que os acompanhavam e matavam indígenas friamente.
E, voltando ao tema central do texto, cabe salientar o quanto estes homicídios revelam sobre o brutal aparelhamento institucional que caracteriza o governo Bolsonaro. Ao negar haver mandante dos crimes, a PF parece muito mais afirmar a sua existência - que é inconteste de tão palpável.
As declarações de Bolsonaro a encobrir a ação criminosa ao alegar os perigos naturais dos rios da região para explicar as circunstâncias dos fatos, bem como a sua completa frieza em relação ao pesar dos familiares das vítimas, revelam como ele legitima as atividades ilegais e indiscriminadas na floresta amazônica.
Como salientaram as lideranças da Univaja, não há lógica em oito criminosos terem executado os dois homens com requintes de crueldade e cálculo, por "simples vontade". Há mandante, e certamente é este um agente político. O problema é apontar o boi errado para lhe dar um nome julgado como certo.
Bruno Pereira era tão conhecido das autoridades amazonenses quanto dos indígenas com quem se relacionava com tanta intimidade. Era um amazônida de coração, abertamente indigenista. E, daí, fosse um cabra marcado para morrer nas mãos daqueles que são tutelados pela classe política e, quiçá, pelos empresários que lucram com a exploração ilegal de recursos.
Bruno Pereira e Dom Phillips morreram pela floresta. Dom completou a visibilidade do sertanismo nas coberturas das expedições do amigo brasileiro, mostrando a face mais fascinante e contributiva para nosso saber a respeito das riquezas da floresta e dos que há milênios trabalharam para mantê-la de pé.
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Imagem: Google
Notas da autoria
1.
Para saber mais
- https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2022/06/06/saiba-quem-e-bruno-pereira-indigenista-e-servidor-da-funai-dado-como-desaparecido-no-amazonas.ghtml
- https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2022/06/15/bruno-pereira-indigenista-era-um-dos-maiores-especialistas-em-povos-isolados-do-brasil-e-realizou-sonho-de-trabalhar-na-amazonia.ghtml
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Dom_Phillips
- https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/06/06/dom-phillips-saiba-quem-e-o-jornalista-ingles-dado-como-desaparecido-no-amazonas.ghtml
- https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/06/15/dom-phillips-jornalista-fazia-trabalho-voluntario-teve-embate-com-bolsonaro-e-sentia-amor-profundo-pela-amazonia.ghtml
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Desaparecimento_de_Bruno_Pereira_e_Dom_Phillips
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Assassinatos_de_Bruno_Pereira_e_Dom_Phillips
- https://www.youtube.com/watch?v=ULZRStkng30 (rede TVT - crime de pescadores é só a ponta do iceberg)
- https://www.youtube.com/watch?v=FiDi9dfDP94 (rede TVT - para Univaja, os assassinatos são políticos)
- https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ansa/2022/06/17/pf-descarta-mandante-na-morte-de-dom-e-bruno-univaja-contesta.htm
- https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/06/17/dom-e-bruno-univaja-contesta-investigacao-da-pf-que-descartou-mandante.htm
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